• Nenhum resultado encontrado

A nova fase da minha investigação implicava procurar, sob a fragmentação das disciplinas, o que pode querer hoje dizer a velha ideia da unidade das ciências, sob que formas e figuras se manifesta ela ainda; perseguir, sob a poeira das disciplinas, a vocação da ciência enquanto perspectivação compreensiva de esferas progressivamente mais alargadas da realidade natural e humana; reconhecer o imprescindível valor do princípio da unidade das ciências na construção de uma cultura que não seja a mera acumulação de saberes especializados mas a sua integração num todo significativo. Uma dupla operação, em suma: procurar perceber os mecanismos disciplinares responsáveis pela “fragmentação e especialização” exponencial que, de forma avassaladora, ameaçam hoje o secular (e majestoso) edifício da ciência; por outro lado, colocar a questão da sua “unidade”19.

É que, para lá de todas as diferenças entre as diversas disciplinas científicas, de todas as fronteiras que delimitam os seus territórios, de todas as clivagens de linguagens, métodos e propósitos que as animam, todas “as ciências” são “Ciência”. A sua multiplicidade deixa-se dizer e pensar na dimensão holística deste singular magestático — “A ciência”.

Quer isto dizer que — e regressando à questão do ensino das ciências ao ser professor de física, de química ou de geologia, o professor de cada uma dessas ciências representa, isto é, está investido da sagrada missão de representar — tornar presente pela palavra e pela sua própria presença — quer a ciência particular para o ensino da qual especifica e profissionalmente se preparou, quer A ciência

na sua globalidade para a qual, honestamente, não deve — e verdadeiramente

não pode nunca — sentir-se preparado.

18 É esta hipótese que organiza o nosso livro, Pombo (2004), Interdisciplinaridade: Ambições e Limites.

19 Esta investigação deu origem ao nosso estudo Pombo (2006), Unidade da Ciência. Programas, Figuras e Metáforas e, mais recentemente, O. Pombo; J. Symons; J.M. Torres (Eds.), (2010), Unity of Science: New Approaches - Otto Neurath and the Unity of Science.

Ora, é justamente aqui, na compreensão do que possa ser A ciência, que, a nosso ver, mais se faz sentir a utilidade para o ensino das ciências de uma reflexão minimamente informada e exigente que procure descortinar a natureza específica dessa específica atividade humana, que procure compreender a origem da sua fragmentação e o sentido da sua unidade.

Se, como pretendemos, a formação de um professor de ciências tem que incluir uma reflexão epistemológica e interdisciplinar aprofundada que lhe permita desenvolver uma consciência crítica relativamente ao seu próprio saber, à natureza, métodos e limites da ciência particular que se propõe ensinar, às relações que essa ciência estabelece com todas as outras, que as várias ciências estabelecem entre si, e que “A ciência”, enquanto específica atividade humana, estabelece com todas as outras atividades humanas; se, porventura hoje mais que nunca, é necessário, a um futuro professor de ciências, pensar os traços fundamentais da ciência contemporânea, face aos quais unicamente poderá procurar uma direção geral, orientadora do seu ensino; se, nessa situação actual, é urgente destacar o problema da especialização exponencial dos conhecimentos cujos efeitos na escola e no ensino das ciências são demasiado graves e urgentes para poderem ser ignorados; por outro lado, importa reconhecer os sinais, por enquanto tímidos, de uma racionalidade transversal que, em conflito com essa fragmentação, teria na interdisciplinaridade a sua forma atual de manifestação e na ideia de unidade das ciências a sua raiz primordial. Reconhecer (na Ciência) a pregnância (epistemológica) desses sinais para, (na Escola), remediar a perda do sentido de unidade, ou pelo menos de convergência, das diversas formas de conhecimento e atividade humanas e tentar obstar ao empobrecimento cultural daí decorrente.

Por outras palavras, se a fragmentação do conhecimento científico constitui o perigo maior a que o projeto racional da ciência (enquanto meio de alargamento da compreensão do homem no mundo) e da escola (sem a qual a própria ciência não seria possível) parecerem hoje condenadas, há sinais que nos permitem manter uma certa esperança na continuidade dessas magníficas instituições humanas. Não se trata de propôr soluções de regresso a uma irrecuperável unidade do saber, mas tão só de apontar, na ciência e na escola que são hoje as nossas, arranjos estruturais que permitam vias integradas de acesso à complexidade do mundo e dos seus problemas. Num primeiro momento, bastará talvez reconhecer, sob as turbulências, as rupturas, os farrapos, sob o mar agitado das superfícies, a tranquilidade antiquíssima daquele oceano ao qual, como dizia Leibniz, o corpo inteiro das ciências pode ser comparado20. Bastará talvez

(re)começar por (re)conhecer, na pluralidade das suas figuras e manifestações, a unidade da razão que, hoje como ontem, atravessa a ciência e a escola. 20 Como Leibniz escreve (1903, p. 530-531): “o corpo inteiro das ciências pode ser considerado

como o oceano, que é inteiramente contínuo e sem interrupção ou separação, ainda que os homens nele concebam partes e lhes dêem nomes de acordo com a sua comodidade”.

Referências

BACHELARD, G. La Formation de l’Esprit Scientifique, Contribution à une

Psychanalyse de la Connaissance Objective. Paris: Vrin, 1975.

______ La Philosophie du non. Pour une Philosophie du Nouvel Esprit

Scientifique. Paris: Presses Universitaires de France, 1975.

______ Le Rationalisme Appliquée. Paris: Presses Universitaires de France, 1975.

______ Le Matérialisme Rationnel. Paris: Presses Universitaires de France, 1980.

BARNES, B. T.S. Kuhn and Social Sciences. London: The Macmillan Press. BRINGUIER, J.-C. Conversations Libres avec Jean Piaget, (trad. port. de Luís Soczka, Conversas com Jean Piaget), Lisboa: Bertrand, 1978.

CRITTENDEN, P. J. “Anarchistic Epistemology and Education”, Methodology

and Science, 16, 211-229, 1983.

DONNELY, J. The Work of Popper and Kuhn on the Nature of Science. In: J. BROWN; A. COOPER; T. HORTON; F. TOATES; D. ZELDIN (edrs.) Science in

Schools. Milton Keynes: Open University Press, 1986.

DUSCHL, R.A. Research on the History and Philosophy of Science. In: D.L. GABEL (org.), Handbook of Research on Science Teaching and Learning. p. 443-465, New York: The Macmillan Publishing Company, 1994.

ENNIS, R. H. Research in Philosophy of Science bearing on Science Education. In: P. D. ASQUITH (ed.). Current Research in Philosophy of Science. p. 138- 170, East Lansing: Philosophy of Science Association, 1979.

FEYERABEND, P. K. Philosophy of Science 2001. In: R. COHEN; M. WARTOFSKY (eds.), Methodology, Methaphysics and the History of Science. p. 137-147, Dordrecht / Boston / Lancaster: D.Reidel Publishing Company, 1984.

______ Against Method. London/New York: Verso, 1988. (edição revista). ______ Science in a Free Society. London: New Left Books, 1978.

______ How to Defend Society Against Science. In: I. HACKING (ed.), Scientific

Revolutions. p. 157-167, Oxford: Oxford University Press, 1981.

______ Dialogo sul metodo. (trad. port. de António Guerreiro). Lisboa: Presença, 1991.

GIL, F. Mimésis e Negação. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984.

GUSDORF, G. Refléxions sur l’Interdisciplinarité (trad. port. de Homero Silveira).

Convivium, v. XXIV, nº 128, p. 19-50, 1985.

HEIDEGGER, M. Die Frage Nach Dem Ding. (trad. franc. de Jean Reboul e Jacques Taminiaux). Paris: Gallimard, 1971.

HENRY, W.; HODYSH, E. The Kuhnian Paradim and it’s Implications for The Historiography of Curriculum Change, Pedagogica Histórica, v. 17, nº 1, p. 75- 87, 1977.

HODSON, D. Philosophy of Science, Science and Science Education, Studies in

Science Education, v. 12, p. 25-57, 1985.

KUHN, T. S. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1962.

______ The Essential Tension. Selected Studies in Scientific Tradition and

Change. Chicago: The University of Chicago Press, 1977.

______ A Função do Dogma na Investigação Científica. In: M.M. Carrilho (org.).

História e Prática das Ciências, p. 43-75, 1979.

LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A. Criticism and the Growth of Knowledge, (trad. port. de Octávio Mendes Cajado e Pablo Mariconda), São Paulo: Cultrix, 1979. LEIBNIZ. Opuscules et Fragments Inédits de Leibniz. Extraits des Manuscripts

de la Bibliothèque Royale de Hannover par Louis Couturat. Paris: Alcan,

1903.

MCLUHAN, M. The Gutenberg Galaxy: The Making of Typographic (trad. franc. de Jean Paré) 2 vols. Paris: Gallimard, 1977.

MARION, J.-L. A Interdisciplinaridade como questão para a Filosofia. Presença Filosófica, nº IV, v. 1, p. 15-27, 1978.

MATTHEWS, M. History, Philosophy and Science Teaching. A Brief Review,

Synthèse, History, Philosophy and Science Teaching, v. 80, nº 1, p. 11-7, 1989a.

______ History, Philosophy and Science Teaching. A Bibliography, Synthèse,

History, Philosophy and Science Teaching, v. 80, nº 1, p. 185-196, 1989b.

PALMADE, G. Interdisciplinariedad e Ideologias. Madrid: Narcea, 1979. PIAGET, J. (Org.) Les Structures Mathématiques et les Structures Opératoires de l’ Intélligence. In: J. Piaget (Org.). L’Enseignement des Mathématiques. Paris / Neuchâtel: Delachaux e Niestlé, 1955a. p. 1-33.

______ (Org.) L’Enseignement des Mathématiques. Paris/Neuchâtel: Delachaux e Niestlé, 1955b.

POPPER, K. R. Conjectures and Refutations. The Growth of Scientific

Knowledge. London: Routledge and Kegan Paul, 1972.

______ Objective Knowledge. An Evolutionary Approach. Oxford: Oxford University Press, 1986.

______ Auf der Suche nach einer besseren Welt. (trad. port . de Teresa Curvelo e João Carlos Espada). Lisboa: Fragmentos, 1989.

POMBO, O. Eticidade / Racionalidade na Comunicação e Ensino do Conhecimento Científico, CTS. Ciência, Tecnologia e Sociedade, v. 10, p. 76- 81, 1989.

______ Para um Modelo Reflexivo de Formação de Professores, Revista de

Educação, v. III, nº 2, p. 37-45, 1993.

______ A Matemática e o Trabalho de ‘Dar a Ver’. In: PROFMAT / 92, Actas do

Encontro Nacional de Professores de Matemática de 1992. Viseu: Associação

de Professores de Matemática, 1994a, p. 35-39.

______ Contribuição para um Vocabulário sobre Interdisciplinaridade. In: O. Pombo, T. Levy e H. Guimarães. A Interdisciplinaridade: Reflexão e Experiência. Lisboa: ed. Texto, 1994b, p. 92-97.

______ Problemas e Perspectivas da Interdisciplinaridade, Revista de Educação, v. IV, nº 1/2, p. 3-11, 1994c.

______ Interdisciplinaridade: ambições e limites. Lisboa: Relógio d’Água, 2004. ______ Unidade da ciência. Programas, figuras e metáforas. Lisboa: Duarte Reis, 2006.

POMBO, O; SYMONS, J.; TORRES, J.M. (Eds.) Unity of Science: New

Approaches- Otto Neurath and the Unity of Science. Dordrecht/Heidelberg/

London/New York: Springer, 2010.

ROWELL, J. A. Piagetian Epistemology: Equilibration and the Teaching of Science, Synthèse, v. 80, nº 1, p. 141-162, 1989.

SAVARY, C. La Conception kuhnienne de la Science et le Concept d’Idéologie,

Dialogue, v. XVII, nº 2, p. 266-285, 1987.

THOM, R. Vertus et Dangers de l’Interdisciplinarité. In: R. Thom, Apologie du

Logos. Paris: Hachette, 1990, 9. 636-643.

VAIDEANU, G. L’Interdisciplinarité dans l’Enseignement: Essai de Synthése, (trad. port de Ana Paula Jordão Esboço de Síntese). In: Guimarães; Conceição; Pombo; Levy (Orgs). Antologia II. Lisboa: Projecto Mathesis /DEFCUL, 1992, p. 99-39.

A interdisciplinaridade é entendida como um contato ou diálogo entre, pelo menos, duas áreas, além das fronteiras que costumam definir as disciplinas. Ela é altamente desejável e frequentemente indispensável para o crescimento do conhecimento, mas pressupõe troca: troca implica em ter algo também para oferecer, mais do que intenções. Além disso, é preciso lembrar que as delimitações que definem as disciplinas surgiram como impossibilidade de se entender ou estudar tudo ao mesmo tempo; são, portanto, circunstanciais. O entendimento do mundo não é delimitado por fronteiras. Para meus alunos, costumo chamar a ciência de gramática, que usamos para decifrar, ler e entender o funcionamento do mundo.

A ciência que desenvolvemos e a cultura em que vivemos imersos, e que pretendemos ensinar, tem sua origem principal na cultura grega e que começa a tomar forma mais definida a partir do século V a.C. É com Aristóteles (384-322 a.C) que esse paradigma se desenvolve. É essa busca pelo entendimento do mundo que começa a tomar formas mais definidas, e que teria sua vigência por muitos séculos, chegando incólume até a revolução de Galileu em 1609. Essa primeira grande síntese do conhecimento, pelo menos ocidental, é nitidamente uma visão multidisciplinar. Aristóteles é o primeiro a sistematizar todo o conhecimento de forma global, isto é, envolvendo as diferentes áreas do saber. Seus estudos sobre os seres vivos e sobre a constituição das coisas com os quatro elementos (terra, água, ar e fogo), embora em áreas diferentes, se articulam com os dos movimentos e o da própria astronomia. Mesmo as categorias de coisas tão distintas como os movimentos na superfície da Terra, a queda dos corpos e os movimentos do céu, embora diversos em sua natureza, se articulavam numa visão integrada que pretendia ser um modelo de funcionamento, um paradigma para o mundo. Os corpos na superfície da Terra só se moveriam com a aplicação de uma força. A queda dos corpos era explicada como a busca do centro do universo, a Terra. Os movimentos do céu pertenciam a uma categoria especial e as estrelas estavam fixas na superfície interna da esfera celeste. Com a subida do Cristianismo ao poder temporal, o modelo aristotélico foi, além de incorporado, sacralizado. Só a revolução do heliocentrismo, a partir

Interdisciplinaridade no ensino