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Um grupo de professores comprometido com as mudanças curriculares (Caso 3)

Uma pesquisa, referente à evolução das relações de um grupo de professores (Valadares, 2002) durante um período de sete anos, forneceu informações singulares sobre o processo e as etapas de uma mudança curricular ampla numa escola. O grupo de professores do período noturno trabalhou no sentido de programar e aperfeiçoar uma mudança curricular nos moldes da proposta da Escola Plural. Tratou-se, portanto, de uma mudança curricular mais ampla do que a reorganização do ensino das ciências e da matemática, entretanto esta última condicionou fortemente a possibilidade de sucesso de todo o projeto.

A análise por nós realizada localizou duas grandes etapas na experiência: a) o processo de implantação coletiva da reforma, que durou aproximadamente quatro anos e correspondeu à conquista progressiva de uma atuação objetiva (com abandono das ilusões iniciais por parte do grupo); b) a estabilização das mudanças mais significativas respondendo às tentações de atividades rotineiras, que correspondeu ao desafio enfrentado pelo grupo maduro para a manutenção de sua criatividade. A primeira etapa foi interpretada de maneira bastante direta pelo modelo proposto por Kaës (1993), explorando tanto os organizadores grupais quanto o APG e caracterizando as mudanças a partir dos intermediários construídos. A segunda fase focalizou a oscilação do grupo entre o polo homeomorfo e isomorfo, localizando os intermediários que contribuíram para os sucessos e os que falharam na manutenção de um clima produtivo satisfatório. O desenvolvimento deste grupo permite apontar para uma espécie de caminho comum e interpretar os encontros e desencontros que podem acontecer em nossas escolas, mesmo quando os professores estão fortemente motivados para realizar mudanças curriculares.

O convite originário

O diretor “seduziu” um grupo de professores do período noturno para elaborar e promover um projeto coletivo e uma mudança curricular nos moldes da Escola Plural (Belo Horizonte, 1995), que tinha como objetivo a construção

de uma escola inclusiva. A proposta de um projeto interdisciplinar (“BH ontem e hoje”) tinha como meta enfrentar as dificuldades no turno da noite, principalmente o absenteísmo dos professores e os altos índices de evasão e repetência dos alunos. Há, neste momento inicial fundador, uma identificação ainda “confusa” com o objeto de desejo do diretor. Os professores estão reunidos em torno de um ideal comum: direcionar a escola para novas formas de aprender e ensinar (contrato narcísico). Porém, esse acordo se sustenta na construção de uma “zona de silêncio”: as hostilidades estão recalcadas, as dúvidas sobre a validade do projeto e sobre a capacidade do grupo em realizá-lo não serão levantadas e propostas de retorno aos tempos anteriores à fundação estão proibidas (pacto denegativo).

O projeto foi articulado em torno de um somatório de conteúdos relacionados com as várias disciplinas: organização da cidade, fundação e transferência da capital, construções e vias públicas (traçados, formas), transformação do espaço, problemas atuais (saúde, transporte, saneamento). Este projeto se baseou na autoridade do diretor e permitiu localizar o lugar de cada membro bem como engendrar fantasias de realização pessoal. Entretanto, a insegurança de não corresponder às expectativas e o medo de ser excluído diminuíram a capacidade de tomar decisões, culminando no nascimento de um líder do grupo: uma coordenadora, com alguma experiência em projetos coletivos, tornou-se depósito das expectativas e ansiedades do grupo. O vínculo grupal estabelecido carregava consigo a passividade. De fato, ela conseguiu manter o grupo operante durante todo o projeto, mesmo se afastando do projeto original (explorou materiais elaborados precedentemente em outros contextos e os ofereceu para o grupo). Durante sua coordenação contou com o “silêncio” do grupo, que assegurou uma coesão grupal inicial: parecia aos membros do grupo que expressar ou reivindicar o retorno ao projeto inicial poderia ter o significado de quebrar a harmonia que estava sendo estabelecida. Essa dependência teve um caráter transitório, pois a volta dos desejos individuais e as exigências do trabalho em equipe proporcionaram novas alternativas para a tarefa. No final deste projeto, outro coordenador foi eleito pelo grupo, iniciando- se outra fase grupal.

A fase de envelope grupal

Uma nova fase, segundo o relato do grupo, iniciou-se com o projeto “Arte de viver”, em 1996. Nesse momento, duas normas foram consideradas prioritárias para o funcionamento do grupo: a substituição do colega quando este faltasse e a separação entre professores que trabalhavam com o ensino fundamental e médio. As aulas foram distribuídas pelos professores em função do projeto e os membros do grupo deviam se dedicar integralmente ao ensino

médio, pois em caso contrário não se poderia contar com a disponibilidade plena de cada um para enfrentar os desafios que surgissem. Estes desafios e o surgimento de novas tarefas (o projeto foi construído em parceria com os alunos) garantiram um investimento de cada um, provocando relações novas de solidariedade e coordenação de tarefas. A organização curricular, como aparece nos textos organizados pela escola, manifesta uma complexidade ausente no projeto anterior. O objetivo mais importante foi compreender as causas das doenças sexualmente transmissíveis, relacionando-as às questões sociais, políticas e econômicas. Todas as disciplinas estruturaram seu conteúdo de acordo com esta meta.

No folder feito pelos coordenadores para o relato do projeto em outras escolas e instâncias da Secretaria Municipal foram destacadas as estratégias coletivas de trabalho como o grande avanço conseguido, mas também foi mencionado o não engajamento e a saída de dois professores do projeto naquele ano. A ilusão grupal funcionou aqui em sua versão ideológica, como resolução de conflitos pela abolição do espaço psíquico.

O momento mitopoético

A partir de 1997, o grupo impulsionou-se no sentido de ser mais criativo e autônomo. Um novo projeto foi elaborado: “BH 100” (cem anos da cidade de Belo Horizonte). Os professores assumiram o compromisso de identificar os problemas, propor ideias e enfrentar os desafios. As reuniões pedagógicas passaram a ser um espaço no qual as contradições e conflitos eram explicitados, onde cada um apresentava as suas opiniões e sugestões para o trabalho, agora sem receio de perder sua identidade e sem medo de se defrontar com o diferente. O espaço institucional foi utilizado em toda a sua potencialidade: (re) agrupamentos constantes dos alunos entre turmas referência, grupos temáticos e por dificuldades de aprendizagem; dois ou mais professores por turma, em função da temática; leitura da obra literária por todos os professores com seus alunos; participação de todos os professores nos movimentos extra-escola, independente das disciplinas que lecionavam; e, planejamento em conjunto de todas as ações.

Em resumo, podemos ver que nesta fase cada membro cooperava na atividade de acordo com a sua capacidade individual e as exigências impostas pelo seu submetimento ao grupo, e defrontava-se, em estreito contato com a realidade externa, com a necessidade de resolver os obstáculos que surgiam. A construção curricular, principalmente a relacionada com o ensino das ciências e matemática, contemplou o perfil e as concepções prévias dos alunos, as questões mais urgentes no campo da saúde coletiva e os conteúdos disciplinares;

conseguiu ultrapassar tanto o currículo orientado fundamentalmente pelos livros didáticos quanto às prescrições a priori das intervenções interdisciplinares, que pretendem ignorar as competências disciplinares dos docentes participantes. Podemos inferir que, à medida que ocorreram processos de diferenciação entre os membros houve uma maior aproximação entre os conteúdos selecionados, o perfil dos alunos e as necessidades temáticas dos professores. Além disso, a instituição, representada pelo diretor, fundador do grupo em sintonia com o ideario e o movimento da Escola Plural, forneceu um reconhecimento e um aval implícito à atuação do grupo durante toda sua primeira etapa. Podemos considerar esta sustentação contínua como o intermediário mais fundamental para a evolução do grupo.

Em síntese, uma característica importante do desenvolvimento do grupo analisado durante a primeira fase foi a prevalência do homomorfismo, caracterizada por uma melhora na comunicação entre os membros do grupo, por sua passagem de uma situação de passividade inicial para outra de grande criatividade e por uma flexibilidade na forma do grupo se relacionar com outros grupos, internos e externos à escola.

O desenvolvimento do grupo analisado após atingir a fase mitopoética permitiu colocar algumas questões e propor algumas reflexões. A partir de 1998, cada membro procurava cooperar nas atividades de acordo com a sua capacidade individual e as exigências impostas pela sua adesão ao grupo, e defrontava-se, em estreito contato com a realidade externa, com a necessidade de resolver os obstáculos que iam surgindo. Foi promovido sistematicamente o planejamento em conjunto de todas as ações por parte dos professores, independente das disciplinas que lecionavam; entretanto, esse processo não aconteceu sem dificuldades, sendo a principal a necessidade de encontrar uma rotina capaz de sustentar-se com pouco esforço e simultaneamente de fomentar as iniciativas novas.