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Finalmente, é possível o ensino interdisciplinar das ciências da natureza?

A resposta a esta questão não é trivial, exige um exercício disciplinar por um lado que despretensiosamente valorize os objetivos de estudo e procedimentos de uma determinada área e aquilo que se considera como conhecimento reprodutível, válido ou verdadeiro; que considere a construção estética do conhecimento e que com humildade compreenda que um saber problematizador e cientificamente organizado resulta da superação do senso comum.

A continuidade do desafio é a abertura para o diálogo com outros saberes, com outras concepções e visões de mundo, o diálogo que a través da linguagem nunca pode ser neutro e inconsciente. Para Freire (1996), o processo educativo deve ser problematizador e sob este ponto de vista o diálogo democrático, que dê voz ao aluno como sujeito e não objeto do processo educativo deve partir do próprio saber do senso comum do aluno. A valorização do saber do aluno pode permitir ao professor ajudar ao aluno a cruzar informações de diferentes campos do saber, a não fragmentar nem dividir, mas compreender, ou pelo menos vislumbrar o todo. Para poder ensinar aos nossos alunos a olhar o todo – devemos necessariamente utilizar a linguagem – e a linguagem sempre impõe um ponto de vista não apenas sobre o mundo, mas também ao uso da mente em relação a esse mundo (Bruner, 2004). Para o autor, a linguagem impõe uma perspectiva a partir da qual se podem ver as coisas e uma atitude com relação ao que olhamos, “[...] el mensaje en si puede crear la realidad que el mensaje encarna y predisponer a aquellos quienes lo oyen a pensar de um modo particular com respecto a el”.

Isto significa que além da contar o que a ciência faz, o professor de ciências, através do diálogo com colegas e com os seus alunos, poderia estimular a pensar no que a ciência faz como o faz e por que o faz. Esta é a diferença fundamental entre ciência e filosofia da ciência (Gonçalves, 1991 apud Praia et al, 2002). Neste sentido, cremos que o processo formativo dos professores formadores e dos próprios professores de ciências deve incluir a perspectiva epistemológica como um processo reflexivo e problematizador que possibilita, entre outras coisas, o diálogo interdisciplinar.

Uma boa formação em epistemologia tem importantes consequências como afirmam Praia et al, (2002):

Não temos, pois, receio em afirmar que professores bem preparados nesta vertente estão em condições privilegiadas para promover estratégias de ensino e propor atividades de aprendizagem, longe já de uma mudança conceptual redutora, mas, neste contexto, de

verdadeiramente interessar os estudantes pela vivência de situações problemáticas, capazes de suscitar uma autêntica compreensão dos múltiplos e complexos problemas que se colocam, hoje em dia, ao cidadão. Trata-se de gerar uma mudança de atitudes, de promover novos valores, de pensar e refletir na e sobre a ciência a partir de novos quadros de referência. Trata-se, agora, de discutir situações dilemáticas e de incerteza – para uma consciência dos problemas que afetam a humanidade, para uma ética da responsabilidade. Também este conhecimento é indispensável para outra compreensão do conteúdo científico, abandonando o factual, o episódico e melhorando, assim, o entendimento da complexidade da construção do conhecimento científico. (Praia et al. 2002, p.141)

Como defendido por Infante-Malachias e Correia (2007), uma proposta interdisciplinar que enriqueça a formação universitária dos alunos precisa ser fundamentada teoricamente e compreendida por todos os seus membros e também:

É necessário que os profissionais envolvidos no processo de criação e implantação de grades curriculares baseadas na interdisciplinaridade e na resolução de problemas reflitam sobre a sua própria formação disciplinar e dialoguem sistemática e continuamente com os profissionais de outras áreas com a intenção de produzir conhecimento teórico e empírico que possa orientar e alimentar as transformações inseridas nos currículos de cursos de graduação e, mais do que isto, seja modelo de atuação coletiva para os graduandos que estão embebidos nesse processo. (Santos; Infante-Malachias, 2008)

Para Freire (1996), o diálogo é condição essencial para a prática educativa que visa à autonomia do aluno. O que podemos chamar de método tradicional

sui generis de deposição de conteúdo não cede espaço para uma relação aluno-

professor verdadeiramente democrática e dialógica. Pensamos, ao igual que Praia et al (2002), que a epistemologia pode ajudar os professores de ciências a melhorarem as suas próprias concepções sobre a ciência e a fundamentar a sua prática educativa. Esta visão pode contribuir com o diálogo interdisciplinar, uma vez que o questionar, discutir e refletir acerca da pertinência de conexões entre ciência/epistemologia/educação em ciência o professor fará as suas opções científico-educacionais com fundamentos (Praia et al, 2002).

Para finalizar estas reflexões, nos parece importante destacar que o ensino de ciências da natureza, deveria ser também um caminho para a reflexão e o pensar certo freireano. Isto significa que a partir da especificidade e da visão de mundo das disciplinas, se poderiam abrir espaços de diálogo, de reflexão e de encantamento interdisciplinar.

Uma possibilidade de abordagens interdisciplinares no ensino de ciências na utopia de Freire que é sempre esperançosa, uma vez que a história é tempo de possibilidades, é sem dúvida para nós a proposta da professora Dra. Olga Pombo “conduzir os nossos alunos da Doxa para a Episteme.”

Agradecimentos

Agradeço a dedicação e o profissionalismo do professor Dr. Carlos Alberto dos Santos, da professora Dra. Aline Quadros e da equipe de coordenação do SLIEC, empenhados na tarefa de idealizar o seminário sobre Interdisciplinaridade e de organizar este livro para divulgar e democratizar a discussão. À colega professora Dra. Silvana Santos pela parceria e ricas discussões e aos meus alunos do Grupo de Pesquisas em Epistemologia e Ensino de Ciências – GruPEpEC, pelo estímulo constante a pensar e a duvidar das nossas certezas.

Referências

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Introdução

Sabemos que o ensino de ciências no Brasil apresenta desafios importantes no que diz respeito à sua qualidade e à sua utilidade. A seguir está um pouco da história do Curso de Licenciatura em Ciências Naturais da Faculdade UnB Planaltina – DF, seu início, a proposta de ensino e, particularmente, seu Projeto Político Pedagógico construído pelos professores do curso.

No curso queremos construir junto com nossos alunos um conhecimento rico sobre as possibilidades de ensinar e divulgar ciência considerando as adversidades das nossas escolas e também a diversidade do nosso público.

Aqui, consideraremos a diversidade e a adversidade elementos possibilitadores de uma educação inovadora, que trabalha com as possibilidades locais, mas vislumbrando as competências globais necessárias para o aprendizado de ciências. Ensinar e aprender ciências é oportunizar aos alunos uma reflexão coletiva sobre os fenômenos humanos e sociais a partir da leitura, interpretação e discussão dos fenômenos naturais. Ao ensinar ciências, estaremos estimulando nossos alunos a olhar o mundo, interpretar os fenômenos, procurar relações entre eles e levantar possibilidades de resoluções de problemas do cotidiano. O que defendemos neste curso é o ensino contextualizado de ciências, voltado para a promoção da vida e da sua qualidade, priorizando a formação docente dos nossos alunos.