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ESCALAS, TERRITÓRIO E CAPITAL

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (páginas 61-68)

Pesquisas sobre desenvolvimento local levantam uma questão fundamental antes de qualquer outra, a saber: as escalas. Local se refere a que dimensão? Sem a resposta a tal questão, prevalece o senso comum que aponta para o local como lugar: “onde estamos, onde trabalhamos, onde moramos”, um espaço percebido, vivenciado, é verdade, porém distante da nossa necessidade de delimitação do objeto de estudo. Partindo do local onde estamos, onde vivemos, chegamos a um conceito variável, pois moramos, trabalhamos, vivenciamos locais distintos dentro da mesma municipalidade, do mesmo país, do mesmo território. O local que

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mais nos aproxima de nossos fluxos de trabalho e renda é a municipalidade, embora esta possa conter, do ponto de vista produtivo, tantos locais quantos seu território e sua dinâmica permitirem.

O município é palpável, “juridicamente concreto”, sentido e, portanto, de entendimento relativamente tranquilo para todos. No entanto, o local a que nos referimos nesta tese é o território, o que traz dimensões analíticas mais complexas para a definição.

Território é aqui entendido como o local onde fluxos econômicos, relações sociais, atuações de agentes produtivos e indivíduos ocorrem. Neste sentido, distanciamo-nos do território politicamente definido e o conceito de município já não nos serve, pois o território pode ser maior, menor ou igual à delimitação político-administrativa de um município, estado ou país. Nosso interesse está na delimitação de um território que seja objeto de políticas específicas de desenvolvimento local e nas consequências para suas áreas contíguas e para o desenvolvimento das demais escalas analíticas (região, estado e país).

Território, conforme, destacado anteriormente, é composto por fluxos. Fluxos de pessoas, de mercadorias, de riqueza e de tudo o que tais considerações trazem implícito. São singulares: revelam uma determinada morfologia social, um determinado estágio de evolução tecnológica, um determinado padrão demográfico e determinadas condições infraestruturais.

Territórios podem ser redes de cidades, espaços naturais constituídos por bacias hidrográficas, ecossistemas homogêneos (VALE, 2007); mas o território que nos importa é o da aglomeração produtiva caracterizada pela especialização da produção, o território que emprestaria seu “selo” à produção. É o território onde o tempo se junta ao espaço em uma dimensão nitidamente cronológica: é a tradição produtiva, em geral, quem ancora a produção de hoje no território, mas é a tecnologia que tudo desmancha quem faz reviver a âncora tradicional. É o território que acumulou capital social nos termos de Putnam (2002) ou qualquer outro conceito que se possa forjar de capital que traduza marcos sócio-históricos e relacionais (capital relacional nos termos de Vale (2007), por exemplo). Para além dos fatores de produção tradicionais, o conceito de trabalho é alargado pela sinergia que advém da atmosfera produtiva marshalliana; o conceito de terra é reforçado pela tradição produtiva que impõe a marca regional (territorial) ao produto fabricado e o conceito de capital é amplamente aumentado ao incorporar não somente o estoque de tradições, aprendizados, mas também as capacidades relacionais, as possibilidades de estabelecimento de redes e de conseqüente endogeinização do desenvolvimento.

Um ponto importante para a nossa concepção de território é a associabilidade entre uma produção específica com o mesmo. Deste modo, para além de qualquer rede, aliança e

relacionamento existente entre os membros do território considerado e o resto do mundo, existiria uma característica de especificidade do que é produzido no território local. Há uma espécie de selo, formal ou não, que identifica a produção do território e este território é, portanto, agregador de valor ao que produz e marca como distintos os produtos que oferta ao resto do mundo.

O território, portanto, possui um conjunto de características que o diferencia de qualquer outro locus produtivo, conjunto este que poderíamos resumir no estoque de capital. Embora se considerem o capital financeiro e o capital produtivo, estamos aqui interessados em outras dimensões do capital. Categoria analítica importante para a análise, o capital se desdobra em múltiplas dimensões. Para efeitos de simplificação, podem-se considerar:

a) capital relacional b) capital social c) capital produtivo d) capital financeiro

A concepção de Bourdieu em O Poder Simbólico33 alarga o conceito de capital (para além das dimensões aqui consideradas, inclusive) e faz a ligação dos diferentes capitais ao relacionamento interclasses, conferindo-lhe [ao capital] papel importante na definição e na manutenção da coesão entre as classes sociais. Está em Bourdieu a noção de que portadores do mesmo tipo de estoque de capital são por este aproximados. É assim que o mesmo capital cultural tende concomitantemente a manter a coesão de uma elite que detém o conhecimento das artes e a aproximar seus membros em torno deste eixo, mas também a afastar de participação nesta elite os que não detêm tal conhecimento. Por outro lado, é o mesmo capital cultural que aproxima os atores que comungam do gosto pela música eletrônica e afasta os que dela não gostam. Deste modo, a definição de classes sociais sob a ótica da categoria capital confere uma visão maior da dinâmica relacional entre classes, pois o elemento comum que agrega os atores pode fazê-los transgredir definições pré-concebidas de participação em uma classe social. Um dos exemplos mais comuns de dinâmica que mantém a coesão seria a junção dos jogadores de golfe em um determinado campo: em geral, dado o estoque de capital financeiro34 necessário para a prática do esporte, a probabilidade de que alguém que, por critérios de classificação tradicionais, fosse membro das classes de menor poder aquisitivo da

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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005.

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sociedade, participasse da prática do esporte, seria pequena. Teríamos, então, o capital financeiro disponível atuando como elemento mantenedor do capital cultural que indica que, nas partidas de golfe, participam “homens de negócios” (e, neste caso, principalmente homens) e em tais partidas os negócios são discutidos e, por vezes, decididos.

A transgressão estaria, por exemplo, na junção de portadores de “capitais financeiros” distintos no mesmo local com o mesmo objetivo: na torcida por um jogo de futebol, em um baile funk. A tensão é latente, porém nem sempre se faz explicitar, viabilizando temporalmente a convivência. Questões fundamentais para o nosso conceito de território e capital são coesão e tensão, relacionamento e transgressão. Surgem, desde já, questões fundamentais para nossa análise:

a) como os detentores de capitais iguais se aproximam (seja de que tipo for o capital) e o que acontece quando a coesão é rompida? Em outras palavras: em que medida colaboração e concorrência se mantêm como binômios antagônicos garantidores da convivência entre agentes em uma mesma aglomeração?

b) o território se impõe à dinâmica do capital, ao seu movimento, ou o território, uma aglomeração produtiva, por exemplo, está refém desta dinâmica?

Uma hipótese não nos escapa: o território é portador de valor. Este valor, consubstanciado nas diversas dimensões do capital (financeiro, social, produtivo, cultural, relacional) confere valores estáveis ao mesmo tempo em que revela valores desestabilizadores, frutos da tensão permanente de objetivos, das relações entre seus membros e o exterior e entre os partícipes da produção local. Juntam-se aqui, portanto, dois eixos fundamentais: território e produção. Este é o nosso interesse: de que modo a produção se faz no território e de que forma dos valores deste território se apodera? De que modo transforma o intangível dos capitais sociais e relacionais em valor e de que forma tensiona as relações pré-existentes? De que maneira tais relações se transformam ou permanecem temporalmente, conferindo dinamicidade ao território que produz? E de que maneira o território internaliza a mudança e a transfere para a produção? São questões que possuem respostas pré- determinadas em alguns autores do desenvolvimento local, porém são respostas incompletas, uma vez que partem do pressuposto do aprisionamento das relações sociais em um modelo de preservação da produção territorial. Se é o selo que confere vantagem competitiva à produção do território, aquilo que o diferencia, é ele quem dá aos trabalhadores uma certa estabilidade,

uma singularidade inexistente em qualquer outro local35. Entretanto, a singularidade marca a diferença e tal diferença poderia gerar fragmentação territorial. O que iguala os partícipes e os torna desiguais naquele espaço e tempo dos demais habitantes do local? Trata-se de outra questão intrigante e que pode refletir a tensão da dinâmica das relações capitalistas de produção.

O território que interessa a esta tese é o da produção local, concretizada nas aglomerações produtivas, nos arranjos produtivos locais e nos sistemas locais de produção. Os conceitos que correspondem aos termos citados divergem, gerando incômoda polissemia. Partimos dos distritos industriais concebidos por Alfred Marshall, portadores da noção de atmosfera industrial que gera economias de aglomeração. Nitidamente de conotação territorial, os distritos são a base das regiões que marcaram o mundo nas últimas duas décadas, como ainda a eventual redenção para políticas de desenvolvimento. Embora se reconheça no economista inglês a concepção em tela, ela tem sofrido mutilações ou acréscimos de acordo com os interesses analíticos específicos e com os interesses político- econômicos mais imediatos. Trabalhamos com o conceito de arranjo produtivo local como sinônimo de distrito industrial marshalliano, um território com ambiente favorável ao desenvolvimento de atividades que têm ancoragem na tradição sócio-histórica local e que permite, ceteris paribus, a geração de emprego e renda em função das economias de aglomeração, que constituem uma das dimensões das externalidades positivas do arranjo, além de outras variáveis que gerariam efeito positivo sobre o emprego e a renda.

Alargaria o conceito de arranjo produtivo local (APL) a consideração de um Sistemas Locais de Produção (SLP), tão bem descritos por Suzigan et. al.36, para quem os SLP “configuram complexos sistemas de produção, em que se entrelaçam diferentes subsistemas – de produção, de comercialização, de prestação de serviços, de logística, entre outros”. Para nosso propósito, os SLP não agregam nada substancial ao conceito de APL, trazendo apenas uma perspectiva claramente etapista, colocando os SLP em uma dimensão superior, como sendo arranjos maduros. Para nossos objetivos, portanto, APL maduro e SLP terão o mesmo tratamento, ambos significando arranjos com estruturas mais ou menos complexas de comercialização e produção estabelecidas. O que importa, seja arranjo seja SLP, é verificar os

35 O selo não se confunde, necessariamente, com um selo formal, físico. Trata-se da tangibilização das

características territoriais no produto, características percebidas pelos consumidores idependente da aposição do selo “made in”.

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SUZIGAN, W.; GARCIA, R.; FURTADO, J. Sistemas locais de produção: indicadores, estudos de casos e políticas. In: FAURÉ, Y-A. & HASENCLEVER, L. Caleidoscópio do Desenvolvimento Local no Brasil: Diversidade das Abordagens e das Experiências. Rio de Janeiro: e-Papers, 2007. p. 52-79.

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freios e contra-freios presentes no que podemos chamar de capital sócio-relacional37. É neste sentido, na diferença de intensidade de capital relacional, que nem toda aglomeração produtiva é arranjo produtivo local. Mais ainda: nem todo SLP (ou APL maduro) é indutor de desenvolvimento que gera a redução de desigualdades e, portanto, não necessariamente deveriam estar na base de políticas de desenvolvimento que tenham este objetivo explícito ou, pelo menos, não deveriam ser a principal ou única ação para tal redução. Com conseqüências ainda mais perversas, o apoio a territórios específicos pode significar a geração de fragmentação deste mesmo território e de sua área contigua.

Não se desconsidera que economias de aglomeração advindas de proximidade territorial de empresas, fornecedores e outras instituições podem gerar potenciais arranjos. No entanto, como as relações sócio-econômicas e geopolíticas evoluem dinamicamente, afastamos da análise as considerações etapistas de desenvolvimento e as colocamos sob a crítica da eventual caducidade de modelos pré-concebidos. Não há como determinar, a priori, o período de tempo de maturação de um potencial arranjo no jogo das forças capitalistas de produção, mas a nossa hipótese é que a sobrevivência de um arranjo tal como foi concebido por seus partícipes depende diretamente da lógica de autovalorização do capital. Em síntese, o futuro do desenvolvimento local com base em arranjos ou sistemas locais de produção é incerto como não poderia deixar de ser, dados o grau de financeirização da riqueza mundial e a dinâmica da divisão internacional do trabalho. Por outro lado, parece-nos mais importante verificar se a existência de distintos capitais mantém a coesão das relações de produção locais e gera a sinergia necessária com as forças capitalistas externas aos arranjos. De outro modo, a pergunta que se faz é se o território dominado pela produção local garante a coesão necessária para a manutenção de fluxos de emprego e renda a longo prazo no jogo das forças capitalistas ou, de outro modo, se a coesão é suficiente para garantir a sobrevivência do arranjo.

É neste contexto que serão examinados os resultados e as possibilidades deste “modelo de desenvolvimento” que vem sendo apontado por alguns como um modelo pós-fordista, um marco na acumulação capitalista, que se estaria tornando flexível, contrariamente aos rígidos preceitos hierárquico-administrativos das ideias taylor-fordistas de outrora. À luz de experiências brasileiras já sedimentadas, verificaremos se o modelo é, de fato, um modelo de desenvolvimento alternativo ou se trata simplesmente de mais um modelo de inserção subordinada no movimento global do capital. Trata-se de alternativa ou de aderência (necessária ou involuntária) ao movimento do capital? Não nos importa, a priori, que a

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Para uma análise do capital relacional como categoria analítica, ver VALE, Gláucia Maria V. Territórios vitoriosos: o papel das redes organizacionais. Rio de Janeiro: Garamond/SEBRAE, 2007.

resposta caminhe em uma ou outra direção, mas que se compreendam os fenômenos em suas essências, desvelando-os, enfim, tornando-os mais compreensíveis na dinâmica capitalista e no movimento de mundialização do capital.

Uma pergunta que vários autores já propuseram será feita: “é a Terceira Itália o referencial replicável a qualquer país, independente do desenvolvimento de suas forças produtivas e de suas relações sócio-produtivas?” O consenso é quase estabelecido em torno do óbvio: não. Entretanto, é a Terceira Itália, um referencial para o desenvolvimento de modelos alternativos aos locais que apresentam estagnação, porém que possuem especial tradição produtiva? Talvez, é a resposta.

Uma vez mais, sistematizando as questões que se propõem neste trabalho, teríamos, sempre considerando o desenvolvimento territorial:

i. o estabelecimento de uma política de incentivos a arranjos produtivos locais na política industrial brasileira contribui para a geração de maiores níveis de emprego e renda? Caso a empiria aponte para resultados positivos, restam as questões da qualidade do emprego e da distribuição da renda como medidas mais eficazes de redução de desigualdades; caso contrário, ainda que não possamos classificar a política de arranjos produtivos como indesejável, ao menos haverá indicações para que seja atentamente verificada;

ii. os arranjos produtivos locais periferizam seus espaços contíguos ou permitem a sua inclusão? Qual a indicação de que os sistemas locais de produção geram frangmentação (ou não) do território nacional? Se periferizam, certamente não contribuem para a redução da desigualdade regional; se incluem, podem elevar o nível de integração, mas permanece a pergunta sobre até onde vai a inclusão e, qualitativamente, como ela insere o espaço contíguo no âmbito nacional/internacional. Dito de outra forma: o arranjo bem-sucedido torna-se hegemônico, polariza e impede o desenvolvimento de outros espaços a ele contíguos ou facilita a inclusão dos mesmos?

iii. como, uma vez que são condições sine qua non a flexibilidade e a adaptabilidade da mão de obra no arranjo produtivo local, este contribui para a efetiva geração de emprego (trabalho) e para a qualificação dos trabalhadores?

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É o arranjo um sistema que faz do trabalho refém das aspirações empresariais ou permite que a força de trabalho se desenvolva para além de suas próprias fronteiras? Como “sistemas abertos”, os arranjos estão em mutação e, por certo, não há condições de aprisionamento técnico da força de trabalho em seus limites territoriais.

iv. são os APLs, de fato, uma alternativa para o desenvolvimento que congrega distintas frações sociais ou seriam funcionais se considerarmos a globalização e a atuação das empresas transnacionais que, neste caso, teriam abarcados em sua lógica produtiva todos os arranjos produtivos?

v. são os APLs caracterizadores do pós-fordismo como querem alguns autores? São simplesmente uma reação, intracapitalista, da escala local? São instrumentos das escalas maiores (nacional, mundial) através de suas ferramentas (política industrial e de desenvolvimento, linhas de financiamento de organismos multilaterais) que também reproduzem o jogo de forças da escala global e torna os SLPs funcionais ao modo de produção vigente?

Desde a sua formação sócio-econômica38, o Brasil experimentou diversas conjunturas de crescimento e redução de nível de atividade e nível de emprego, gerando várias experiências de estabilização macroeconômica já bastante estudadas ao longo do tempo. Poucas foram nossas incursões em políticas de desenvolvimento nacional e menores ainda aquelas em desenvolvimento regional. As próximas seções procuram resgatar alguns planos brasileiros de estabilização e a “questão regional”, controversa, mas sempre presente no debate político e na academia.

2.3 PLANEJAMENTO E REDUÇÃO DE DESIGUALDADES – OS PLANOS

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