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4 ESCOLA, DIVERSIDADE E LIBERDADE RELIGIOSA

No documento Diversidade Religiosa e Direitos Humanos (org) (páginas 111-114)

Capítulo IV Diversidade religiosa

4 ESCOLA, DIVERSIDADE E LIBERDADE RELIGIOSA

A promoção da diversidade cultural religiosa está intrinsecamen- te ligada à questão da dignidade humana e o respeito a todas as espécies sobre o planeta. Não é mais possível conceber a vida em uma visão antropocêntrica, ou seja, aquela que concebe o ser humano como a espé- cie mais importante na Terra. Somos todos seres vivos – animais, vegetais, minerais e, por isto, merecemos o direito à diversidade em seu sentido mais amplo.

A consideração da diversidade como fator de desenvolvimento humano está presente na Declaração Universal da Diversidade Cultural, proclamada pela Unesco, em 2001. Nesta, a defesa da diversidade cultural está relacionada ao compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que per- tencem a minorias e povos autóctones.

Ao abordarmos as religiões afro-brasileiras em nosso país, é ne- cessário refletir sobre como a diversidade religiosa é trabalhada pela es- cola. Diante do complexo processo histórico de formação étnico-cultural do povo brasileiro, em que algumas culturas e tradições religiosas ainda continuam vítimas de preconceitos e discriminações, qual é a responsabi- lidade da escola na promoção da liberdade religiosa?

Inicialmente, vale lembrar que na Declaração Universal dos Direi- tos Humanos (ONU, 1948) as pessoas têm o direito à liberdade de cons- ciência, de credo, bem como à proteção de seus locais de culto. Ainda na década de 1980, a ONU (1981) proclamou a Declaração sobre a Elimina- ção de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação fundadas na Reli- gião ou Convicção, que em seu art. 1º dispõe:

Toda pessoa tem o direito de liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito inclui a liberdade de ter uma religião ou qualquer convicção a sua escolha, assim como a liberdade de manifestar sua religião ou suas convicções individuais ou coletivamente, tanto em público como em privado, mediante o culto, a observância, a prática e o ensino. Direito este igualmente assegurado pela Constituição brasileira (1988) que afirma ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias.

Na esteira da proteção à liberdade religiosa, o Programa Nacio- nal dos Direitos Humanos/PNDH-3 (BRASIL, 2010), em seu objetivo estra- tégico VI, que dispõe sobre o respeito às diferentes crenças, liberdade de culto e garantia da laicidade do Estado (ação programática d), estabelece “o ensino da diversidade e história das religiões, inclusive as derivadas de matriz africana, na rede pública de ensino, com ênfase no reconhecimento das diferenças culturais, promoção da tolerância e na afirmação da laicidade do Estado”.

Soma-se a isso uma importante iniciativa que vem consolidar ainda mais a luta contra a intolerância religiosa. Trata-se da Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, que institui o Dia Nacional de Combate à Intole- rância Religiosa, a ser comemorado anualmente em todo o território nacio- nal no dia 21 de janeiro11.

Pensando especificamente no caso da escola, com base nesses marcos normativos, inicialmente é preciso lidar com a invisibilidade das religiões afro-brasileiras ao longo dos séculos, situação que tem gerado preconceitos e estereótipos dos mitos, ritos e entidades religiosas. Afinal, tudo que não conhecemos passamos a temer, evitar e, em muitos casos, perseguir.

A continuidade da discriminação religiosa tem feito com que es- tudantes demonstrem o receio de explicitar a sua pertença religiosa. Sen- do a escola espaço de formação de diversas identidades, tais como gêne- ro, étnicas, religiosas, socioculturais, etc., gera-se neste espaço fenôme- nos de reprodução e/ou, em caso contrário, enfrentamento de preconcei- tos e intolerâncias. Significa dizer que a escola refletirá os mesmos pre- conceitos elaborados na sociedade, mas, paradoxalmente, poderá criar condições para o questionamento destes. Estes preconceitos e intolerân- cias não permanecem restritos à escola, mas estendem-se por todo o teci- do social.

11 “A data é uma homenagem à memória de Mãe Gilda, yalorixá do Terreiro Abassá de

Ogum, um dos mais tradicionais da Bahia. Ela teve sua fotografia publicada em um jornal evangélico de grande circulação, associada ao charlatanismo. Depois de sofrer a invasão e depredação de seu templo religioso, a mãe de santo apresentou problemas de saúde que culminaram com a sua morte, provocada por um infarto, em 21 de janeiro de 2000.” (Secretaria Geral da Presidência da República, 20 de janeiro de 2010).

Corrobora com isso, a Lei nº 10.639/200312, que estabeleceu o

ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira nos sistemas de ensino, ratificando a importância do combate ao preconceito, ao racismo e à discriminação. Posteriormente, a Lei nº 11.645/2008 dá a mesma ori- entação quanto à temática indígena. Podemos considerar que são leis afir- mativas para a educação formal, ou seja, reconhecem a escola como lugar da formação de cidadãos e de conhecimento das matrizes culturais do Brasil.

Por sua vez, o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana afirma que os desa- fios da qualidade e da equidade na educação só serão superados se a escola for um ambiente acolhedor, que reconheça e valorize as diferenças e não as transforme em fatores de desigualdade. “Garantir o direito de aprender implica em fazer da escola um lugar em que todos se sintam valorizados e reconhecidos como sujeitos de direito em sua singularidade e identidade” (BRASIL, 2003, p. 2).

A educação, como um direito que pode garantir mais oportuni- dade de acesso a outros direitos, precisa reconhecer que existem sujeitos que utilizam códigos socioculturais diferentes para sua constituição identitária.

No caso dos praticantes dos cultos afro-brasileiros, os grupos se organizam comunitariamente, partilham saberes, experiências de vida e axé (força vital), nos processos de iniciação, na sacralização de seres dos reinos vegetais, minerais e animais, nas festas e nos rituais fúnebres. Tais experiências constituem-se em formas diferenciadas de estabelecer e com- preender a relação entre cultura e natureza (SANTOS, 2009).

Para seus adeptos, ingressar nas religiões afro-brasileiras foi o final de um longo caminho em busca de aceitação. Excluídos, devido à sua situação social ou individual, encontraram aí a possibilidade de exercer uma prática religiosa aberta, acolhedora, isenta de preconceitos e tabus e um grupo de convivência. Este grupo caracteriza-se justamente por se aglutinar em torno da identidade espiritual e aceitar a diversidade no pla-

12 A Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, altera a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de

1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.

no material13, e não só está disposto a aceitar pessoas em situação de

desespero e rejeição, como transforma esta inclusão numa verdadeira missão a ser cumprida.

Entretanto, a pessoa que adentra “no santo” precisa também fa- zer conviver sua condição de religioso com outros papéis sociais nos dife- rentes espaços, inclusive a própria família carnal, ou seja, sua família de sangue.

Entrar “no santo” representa, para muitos, o final de um longo trajeto de buscas, inquietações, dúvidas e, em muitos casos, rompimento do isolamento social, com a superação de características individuais que tornavam o sujeito um ser excêntrico e deslocado de seu tempo e grupo social. “Entrar no santo” é, enfim, encontrar uma comunidade de reconhe- cimento identitário nos planos material e espiritual.

No documento Diversidade Religiosa e Direitos Humanos (org) (páginas 111-114)