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2 MITOS E RITOS: PARA COMPREENDER A RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA

No documento Diversidade Religiosa e Direitos Humanos (org) (páginas 104-107)

Capítulo IV Diversidade religiosa

2 MITOS E RITOS: PARA COMPREENDER A RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA

Os mitos e ritos são engendrados ao longo de milênios e trans- formam-se continuamente, adquirindo novos contornos de modernidade, ainda que alicerçados em sólidas bases de tradição. Mircea Eliade (1992, p. 84-85) afirma a respeito dos mitos que

3 Geralmente negras, tornaram-se, com o passar dos anos, um símbolo turístico da Bahia,

Estado brasileiro marcado pela presença cultural dos descendentes de africanos. As “baianas” popularizaram-se em canções que se tornaram antológicas, de compositores notáveis como Dorival Caymmi, com “O que é que a baiana tem?”, na qual este autor louva a vestimenta da baiana descrevendo minuciosamente os detalhes de seus trajes. Na esteira do encantamento com a figura da baiana, o também compositor Ary Barroso apresenta com detalhes as delícias da comida e a beleza da mulher negra em “No Tabuleiro da Baiana”. Em Salvador, capital da Bahia, já se comemora no dia 25 de novembro o “Dia da Baiana” e o acarajé, comida típica da culinária local e com relevante significado na ritualística do Candomblé, considerado patrimônio cultural da cidade.

[...] o mito conta uma história sagrada, quer dizer um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo... Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão seus gestos constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados... Uma vez dito, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta... O mito proclama a aparição de uma nova situação cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma criação: conta-se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser. É por isto que o mito é solidário da ontologia: só fala das realidades, do que aconteceu realmente, ou que se manifestou plenamente. Os mitos das religiões afro-brasileiras são, portanto, engendra- dos nas interpretações das populações de origem africana sobre seus mis- térios, símbolos e acontecimentos, e constituem, de fato, marcos históri- cos, à medida que gestam explicações sobre a realidade vivida. Para exemplificar e tornar mais clara a ideia da representação das realidades vividas, vamos examinar um mito central na religiosidade afro-brasileira: a criação do mundo.

Oxalá é o nome brasileiro de Obatalá, responsável pela criação do mundo e da humanidade. Ele é filho de Olórun, deus supremo, que lhe delegou poderes para governar o mundo. Na cultura brasileira, foi sincretizado com a devoção católica ao Senhor do Bonfim. Oxalá tem duas formas: Oxaguiã, a da mocidade, um guerreiro com vigor e nobreza; e ainda Oxalufã, da velhice, cheia de bondade, com uma figura nobre e cur- vada ao peso dos anos, apoiado em seu “paxorô” (cajado). Na África, con- tinente originário, tem muitos nomes. É o rei dos orixás e dos homens, a mais querida e respeitada entre as entidades afro-brasileiras.

A forma envelhecida de Oxalá, Oxalufã, é o orixá responsável pela criação, patrono da fecundidade e da procriação. É uma entidade purifica- dora, e foi lavado com água doce após ter sido espancado e preso durante anos, por engano, ao visitar o reino de Xangô, o reino de Oyó. Este último, ao descobrir a falha, fez tudo para homenageá-lo, lavando-o em banhos curativos, rito que deu origem à cerimônia “Água de Oxalá”.

Segundo Cacciatore (1977), esta é uma cerimônia de purificação e abertura do tempo sagrado – das grandes festas – realizadas nos Can- domblés Nagô e Jeje. No Brasil, tem relação com esta manifestação a fa- mosa Lavagem do Bonfim, realizada em Salvador entre 15 e 17 de janeiro.

Nesta ocasião, os praticantes das religiões afro-brasileiras, trajados ma- jestosamente com vestimentas brancas, evocando Oxalá, portam jarros d’água, entoam cânticos, realizam rezas e preceitos ritualísticos enquanto lavam as escadarias da Igreja do Bonfim. Esta é feita em honra de Obatalá (Oxalá). Interessante notar nesta cerimônia sincrética como os ritos afro- brasileiros se entrecruzam com o catolicismo: Oxalufã é sincretizado com Nosso Senhor do Bonfim (Jesus Cristo na Cruz, padroeiro da Catedral). Sua cor também é branca, seu dia é sexta-feira e sua saudação é “Epa Babá”. Sua natureza em certos mitos é tanto masculina como feminina; sacerdote supremo, divino.

Oxaguiã é a forma de Oxalá jovem, guerreiro. Também veste bran- co e às vezes é sincretizado com Jesus, quando Menino. Também é conhe- cido como Orixáguinhã (VERGER, 1999).

Roger Bastide (1985), importante pesquisador francês que inves- tigou a cultura popular de origem africana no Brasil, já apontou que as populações negras trazidas para cá pertenciam a diferentes civilizações e provinham das mais variadas regiões africanas. Segundo Yvie Favero (2010), suas religiões eram partes de estruturas familiares, organizadas social ou ecologicamente a meios biogeográficos4.

Esses grupos praticavam suas religiões em seus ambientes cultu- rais de origem e com a vinda para o Brasil na condição de escravos, impe- didos de praticar seus rituais e compelidos a integrar uma sociedade cuja estrutura lhes é exógena, a população negra começa a desintegrar, na nova terra, suas tradições culturais historicamente consolidadas. Na sequência, como resposta a este desmoronamento, começa a elaborar suas estratégias de sobrevivência religiosa. Então, apesar da perseguição, os negros africanos refazem suas tradições no novo continente e elas adqui- rem, assim, o formato “afro-brasileiro”, já influenciadas e sincretizadas com as culturas com as quais entram em contato quando chegam ao território brasileiro.

Evidentemente, sua condição de escravo levava à subalternidade suas matrizes culturais em relação ao poder constituído hegemônico das elites de origem europeia, ocidental e cristã. Significa dizer que sua cultu- ra foi subjugada, oprimida e violentada por ser considerada oriunda de um grupo inferiorizado na hierarquia social do país.

No aspecto religioso, especificamente, as religiões de matrizes africanas foram perseguidas física e simbolicamente. A repressão abateu- -se sobre qualquer tentativa de expressá-las, e surgem, então, as estraté- gias de sobrevivência religiosa, que vão do sincretismo à transmutação dos ritos, símbolos e espaços sagrados; ou seja, vão da assimilação de traços culturais das religiões dominantes, principalmente da católica, à alteração de ritos e mitos, de forma a amenizar as “africanidades” de suas características e, assim, minimizar a perseguição5.

O sincretismo com a função de sobrevivência ocorrerá principal- mente com a religiosidade católica, da qual decorre a formação das Ir- mandades, como, por exemplo, as Irmandades de Nossa Senhora do Ro- sário dos Pretos, mas também será consequência de interação com outras matrizes espirituais não hegemônicas como as indígenas, resultando nos cultos afro-indígenas.

É preciso compreender que, no passado, nos séculos em que era vigente o sistema escravista, o poder colonial e suas instituições de ori- gem europeia, ocidental e católica eram hegemônicas e disseminavam seus valores simbólicos como os únicos válidos. É o que denominamos etnocentrismo e, neste caso, eurocentrismo, a concepção de que o centro principal do mundo nos mais variados aspectos, está em uma única raiz étnica, a europeia.

Nesta lógica, o simbolismo oriundo das populações marginaliza- das e escravizadas era ameaçador e passível de violentas punições. Assim, sob os domínios do Cristianismo, a população negra no Brasil logo com- preenderá que deverá apropriar-se da simbologia deste para conseguir fazer resistir suas tradições e crenças.

No documento Diversidade Religiosa e Direitos Humanos (org) (páginas 104-107)