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FUNDAMENTOS DOS DIREITOS DAS MINORIAS RELIGIOSAS CONTEMPORÂNEAS

No documento Diversidade Religiosa e Direitos Humanos (org) (páginas 168-170)

Novos movimentos religiosos e

FUNDAMENTOS DOS DIREITOS DAS MINORIAS RELIGIOSAS CONTEMPORÂNEAS

Em 1516, a Utopia, de Tomas More, foi publicada em Lovaina. Nela o autor apresenta os utopianos como crentes numa religião de cará- ter naturalista, dispostos a aceitar com ampla tolerância todas as religiões, inclusive o Cristianismo. Não por acaso, More coloca seu relato na figura de um navegante português, Rafael Hitlodeu, deste modo significando que o fato de todos os povos do planeta, e todas as religiões, terem entra- do (potencialmente) em contato, estarem frente a frente, implicava a ne- cessidade da aceitação da religião dos outros.

Este foi certamente um dos temas em que os intelectuais do Renascimento mais se opuseram à cultura medieval, dominada pelo direi- to eclesiástico e pela convicção de que todas as religiões não cristãs são obra do demônio. Esta ruptura com a Idade Média se prolongou em quase todas as obras renascentistas que apontam para uma república ideal, como a Cidade do Sol (1602), de Tommaso Campanella (1568-1639), ou a Nova Atlântida (1627), de Francisco Bacon (1561-1626). Muito antes, porém, já Pico Della Mirandola (1463-1496) escrevera o seu Discurso sobre a digni- dade do homem (1486), no qual discorre e argumenta acerca da dignida- de de todas as religiões, e de certo modo, como se todas concorressem para plenitude da religião (no Cristianismo).

Mas no ano seguinte (1517) à publicação da Utopia afixava Martinho Lutero (1483-1546) as suas 95 teses, convidando a Igreja a uma reforma de dogmas e práticas que, pela intolerância de parte a parte, e aos muitos interesses políticos em causa, gerou séculos de conflitos e a desagregação da Cristandade. Assim, enquanto por um lado essa Cristan- dade, pela voz das utopias e do humanismo, abraçava como irmãs, ou pelo menos conviventes pacíficas, as religiões mais distantes, entrava em guerra com os separatistas e os que lhe são mais próximos na doutrina.

Esse paradoxo permanece até aos dias atuais: convivemos mais facilmente com a religião desconhecida e de origem longínqua do que com aqueles que divergem de nós apenas em algumas questões doutri- nárias. É, pois, aqui que se inserem, como sucessoras das utopias renascentistas e do humanismo, as Declarações das Nações Unidas (ONU) acerca da tolerância e dos direitos das minorias religiosas que, sem indicar um sincretismo ou relativismo religioso, não aceito pela maioria, apontam e apelam para a convivência amistosa, a compreensão mútua e o estudo

desarmado das religiões diferentes. Vejamos um pouco de suas bases teó- ricas e históricas.

Do ponto de vista da religião a atribuição de direitos aos seres humanos e a sociedades diferentes radica numa atitude dupla: tolerância e respeito. Ambos se fundam numa postura fundamental: a aceitação da validade do outro. Isso significa que “eu” ou “nós” não consideramos que a minha/nossa religião seja a única válida (ao menos do ponto de vista subjetivo), e que aceito que o outro sustente ou organize uma religião diferente. A intolerância pode ter muitas origens ou fontes, entre as quais o desconhecimento e o preconceito, interesses de posição social e de po- der econômico, e conflitos de fronteiras. Quando por algum motivo um Estado ou poder político, erige a intolerância em norma legal fere-se gra- vemente o direito à expressão religiosa, geralmente de uma ou mais mi- norias. Inversamente o poder político tem a capacidade de, ao definir le- galmente a tolerância como norma, facilitar a vida religiosa livre para to- das as pessoas.

O primeiro decreto de tolerância com amplas repercussões na história do Ocidente foi o chamado Decreto de Milão, publicado pelos imperadores romanos Constantino e Licínio em março de 313, no qual, após explicitar a liberdade concedida aos cristãos para que exercessem o culto de sua preferência dizia:

Todos os demais terão garantida a livre e irrestrita prática de suas respectivas religiões, pois está de acordo com a estrutura estatal e com a paz vigente que asseguramos a cada cidadão a liberdade de culto, segundo sua consciência e eleição. Não pretendemos negar a honra devida a qualquer religião e seus adeptos. (BETTENSON, 49/50, item 6).

As declarações internacionais contemporâneas, como a Declara- ção dePrincípios sobre a Tolerância (UNESCO, 1995) destacam, como o Império em 313 – embora com outra linguagem - a necessidade de uma disposição ou cultura da paz, ampliando a ideia de convivência como sen- do uma “harmonia na diferença” (art. 1,1) e ressaltam a sua necessidade especial no mundo atual, marcado pela mundialização e mobilidade (art. 3,1); mas no artigo sobre Educação (4º) não explicita, como o decreto imperial, “a honra devida à religião” como tal, apenas a necessidade da tolerância e a educação para a compreensão. O ambiente atual é laico, de completa separação entre religião e política (ao menos na intenção) o que

não acontecia na Antiguidade. Porém, ao estimular os Estados e outras instituições a promover instrumentos que reforcem a tolerância religiosa (art. 5º) está implicitamente fomentando a necessidade da consciência do estudo das religiões alheias, pois somente na abertura ao conhecimento se podem dirimir os preconceitos e criar disposições de aceitação.

Do ponto de vista histórico, a humanidade viveu algumas situa- ções de notável convivência e harmonia entre as religiões, não só no Im- pério Romano desde Constantino até os Decretos de Intolerância (380) de Teodósio (379-395), mas, também, em outras ocasiões e espaços como na Península Ibérica, na Idade Média, quando judeus e cristãos gozaram de longos períodos de liberdade e construíram junto com os muçulmanos uma sociedade próspera, culta e modelar.

No entanto, toda a história da humanidade foi palco de frequen- tes crises e conflitos motivados pela animosidade e agressividade por mo- tivos religiosos. Na atualidade, esse é o caso de minorias, quer pertencen- tes a grandes religiões (com milhões de adeptos), inseridas em socieda- des diferentes – como os cristãos coptas no Egito muçulmano ou os mu- çulmanos no Brasil – quer os que pertencem a separações ou divisões que permanecem no interior da sociedade que os originou, ou, ainda, os mi- lhares de pequenos grupos e movimentos religiosos que a cada dia sur- gem em algum lugar do mundo.

É, sobretudo, à proteção dessas minorias que se dirige a Declara- ção Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas (ONU, 1992), que defende não só o direi- to à existência (art. 1°) das minorias religiosas, mas também a professar e praticar sua própria religião e atuar na vida política, criar associações (art. 2°) e, enfim, não sofrer nenhuma restrição imposta pela sociedade pelo fato de pertencer a uma determinada religião, a não ser naquilo em que fere as leis maiores dessa sociedade ou Estado.

No documento Diversidade Religiosa e Direitos Humanos (org) (páginas 168-170)