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3 ETHOS, DIVERSIDADE RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS

Ethos e direitos humanos:

3 ETHOS, DIVERSIDADE RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS

O ethos é diverso porque o ser humano é diverso, resultado das múltiplas interações subjetivas e intersubjetivas com o Outro em suas di- ferenças. Sendo diferente em si, não lhe é possível constituir-se na homogeneidade.

Somos todos diferentes e temos o direito de sermos assim res- peitados e tratados política, religiosa e legalmente. No entanto, histórica e cotidianamente convivemos com violências, escravidões, genocídios, colonialismos, perseguições e intolerâncias de várias ordens, entre elas a religiosa. Nesse sentido, somos portadores de morte e não de vida – bem supremo e valor maior.

O pobre, o dominado, o índio massacrado, o negro escravo, o asiático das guerras do ópio, o judeu nos campos de concentração, a mulher objeto sexual, a criança sujeita a manipulações ideológicas (também a juventude, a cultura popular e o mercado subjugados pela publicidade) não conseguirão to mar como p onto de par tida, p ura e simplesmente, a ‘estima de si mesmo’. O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída a sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam, clamando por justiça: Tenho fome! Não me mates! Tem compaixão de mim! – é o que exclamam esses infelizes. (DUSSEL, 2011, p. 18-19).

À medida que um grupo ou religião gera intolerâncias de caráter religioso, ele nega a dignidade e a prática dos direitos humanos. Seja qual for a manifestação, religiosa ou não religiosa, esta deve alicerçar seus princípios em um ethos de

corresponsabilidade para com o humano. O profundo respeito e reverência ao Outro, com o sentido de hierofania é sempre manifestação, revelação e mistério para nós – é Rosto – completamente diferente em suas diferenças (LEVINAS, 1980). Nesse sentido, devemos lutar contra qualquer prática que atente contra a vida e os direitos humanos.

O debate em torno dos direitos humanos visa a despertar para a luta e a conquista de direitos para assegurar a promoção da dignidade nos contextos onde ela tem sido desrespeitada. O Plano Nacional de Edu- cação em Direitos Humanos (BRASIL, 2006, p. 15) desafia e convoca para “em tempos difíceis e conturbados por inúmeros conflitos, nada mais ur- gente e necessário que educar em direitos humanos, tarefa indispensável para a defesa, o respeito, a promoção e a valorização desses direitos”.

Uma educação em e para os direitos humanos exige outra escola e outro educador. Precisamos de sujeitos comprometidos e responsáveis pela causa educacional, que é uma causa social, portanto, política. Falar em direitos humanos implica perceber que existem milhões de pessoas que ainda não têm seus direitos respeitados e reconhecidos. Por isso, pelo mundo muitas organizações governamentais e não governamentais estão cada vez mais unidas em torno de uma luta comum: garantir dignidade aos seres humanos em geral, mas especialmente aos que são desrespeita- dos e lesados em seus direitos.

A luta pelos direitos humanos é uma luta pela paz mundial, que se reverte no bem viver2 para todos os seres. Parte do respeito e da liber-

dade inalienável de todos os humanos – seres de direitos iguais. Uma educação pautada nessas premissas carrega em si possibilidades de e para outras vivências na/para dignidade humana.

Atitudes de justiça e injustiça são construções sociais que tanto podem ser coletivas como individuais, mas a mudança de hábito somente ocorre quando estamos convencidos dessa mudança, quando ela traz em

2 Conceito das culturas andinas e retomado por movimentos sociais da Bolívia e do Equador

contra as políticas neoliberais, uma ideia-força, um conceito inspirador e mobilizador que protagoniza uma outra forma de vida, ordem social, econômica e política de alcance planetário (OLIVEIRA, 2012).

si mesma um valor próprio. Essas mudanças são questões educadoras, olhares e vozes que se direcionam a várias direções. Essa construção é fundamental à medida que somos seres humanos que pertencem a algum lugar, ocupando determinado espaço. Esse pertencimento nos dá a dire- ção na vida e na educação.

Quando não sabemos e não reconhecemos em nós mesmos e nos outros a que mundo ou lugar nós pertencemos, nada é possível trans- formar para melhor. Situar-se e encontrar-se com e em alguém é um passo fundamental para acolhida e construção de novos saberes e novas práti- cas. Jaz aqui o solo primordial de um olhar para a outridade, um estabele- cer outras relações intersubjetivas e humanas. É fundamental entender como a ética da alteridade3 serve de mola propulsora para a ética da liber-

tação latino-americana. Por isso que

[...] o pensamento levenasiano, à medida que põe a responsabilidade ou o assumir-o-outro como princípio que antecede qualquer consciência reflexiva, permite à Filosofia da Libertação situar outrem como origem e raiz da afirmação do eu-próprio. Assim, Levinas se constitui num dos principais suportes teóricos da proposta libertadora latino-americana. (ROSA, 2011, p. 134).

Devemos lembrar que a filosofia da libertação latino-americana visa a pensar e refletir sobre as condições sociais e econômicas dos sujei- tos excluídos e oprimidos da América Latina. Trata-se de pensar o Outro como rosto, como corpo espoliado e sofredor. Nesse sentido,

partindo de Levinas, Dussel desenvolve a Ética da Libertação enquanto perspectiva em que o rosto do outro é assumido como critério de reflexão e ação. O encontro com o outro não permite que se estabeleça uma atitude de indiferença. O outro, que é sempre exterioridade em relação a mim, transborda toda totalidade e é livre de qualquer amarra ontologizante. Por isso, a relação que se estabelece é uma relação de respeito e de escuta, que não busca uma mera compreensão do outro a fim

3 Ética da Alteridade é o modo como nós tratamos respeitosamente o Outro ser humano.

Este modo é o da responsabilidade por todos aqueles que são excluídas do bem viver na

sociedade atual. Alteridade, porque a diversidade cultural e religiosa e não religiosa se constitui a partir de todas as diferenças existentes entre nós. Somos todos diferentes, e essa é uma riqueza natural. Quanto mais diverso for o mundo, mais aumentam as nossas responsabilidades.

de simplesmente dominá-lo. O outro se apresenta como realidade infinita. (ROSA, 2011, p. 134).

Para isso, é necessário considerar que somos seres naturalmente diferentes, constituídos como diferentes social e culturalmente. Essas di- ferenças ocorrem a partir da construção da pessoa no âmbito social e psi- cológico. Essa construção implica ser pensada a partir de diversos valores, tais como: morais, religiosos, simbólicos, sociais, etc.

Mas, ao mesmo tempo em que somos uma construção social, somos uma constante constelação entretecida pelas subjetividades e sa- beres (re)construídos e (re)elaborados constantemente. O nosso modo de ser e estar é o nosso modo diferente de ser,estar e pertencer de modo diverso como existentes. Existir significa relacionar-se, relacionar-se impli- ca em também haver conflitos, e conflitos significam que a diversidade se expressa e se impõe como dinamicidade da própria vida. Por isso, muitas vezes aquilo que não gostamos no Outro é justamente aquilo que é conflitante em nós mesmos. Nesse sentido e contexto, o desafio da diver- sidade cultural e religiosa se mostra em nós e entre nós.

Aqui reside o grande desafio da escola: educar para o reconheci- mento e respeito aos diferentes nas suas diferenças. Nesse sentido, a Re- solução CNE/CEB 4/2010 ressalta que esta deve oferecer uma educação de qualidade social:

Art. 9º A escola de qualidade social adota como centralidade o estudante e a aprendizagem, o que pressupõe atendimento aos seguintes requisitos:

I – revisão das referências conceituais quanto aos diferentes espaços e tempos educativos, abrangendo espaços sociais na escola e fora dela;

II – consideração sobre a inclusão, a valorização das diferenças e o atendimento à pluralidade e à diversidade cultural, resgatando e respeitando as várias manifestações de cada comunidade; [...]

IX – realização de parceria com órgãos, tais como os de assistência social e desenvolvimento humano, cidadania, ciência e tecnologia, esporte, turismo, cultura e arte, saúde, meio ambiente. (BRASIL, 2010).

A escola deve ser pensada em conjunto com a sociedade como um ethos da diversidade cultural, na sua totalidade dos diferentes em suas diferenças.

À medida que somos todos diferentes, os conflitos são inevitá- veis, mas é exatamente no âmbito dos conflitos, lugar das manifestações das diferenças, que nós nos construímos dialogicamente como identida- des. Abertura constante para o mundo, possibilidade de sermos sempre diferentes em cada endereço existencial. Por isso é necessário criarmos um espaço para o diálogo, um lugar do encontro de todas as vozes.

O ser humano se realiza na comunidade, na relação intersubjetiva do indivíduo com o outro, efetivada pela força da palavra dialógica Eu-Tu. O eu não passa de uma abstração. Ele só é na relação. Pode-se entender que o eu se torna realmente eu quando, ao proferir Tu, entra no domínio do nós. O eu torna-se real, atual wirklich, quando adentra na esfera

do nós. (ZUBEN, 2003, p. 17).

Essa condição comunitária acontece à medida que estabelece- mos o diálogo entre todos. Encontramos em Buber uma ontologia da re- lação, que não é uma abstração, mas é a própria experiência existencial se revelando:

A ontologia da relação será o fundamento para uma antropologia que se encaminha para uma ética do inter- humano. Diz-se então que o homem é um ente de relação ou que a relação lhe é essencial ou fundamento de sua existência. (BUBER apud ZUBEN, 2004, p. 31).

A razão moderna estabeleceu padrões de condutas de modo li- near, analítico padronizado, portanto homogêneo. Essa é a conduta das exclusões e das polarizações, do certo e do errado, do verdadeiro e do falso. Institui a verdade absoluta e em nome dela se mutila, invizibiliza e mata milhões de seres humanos. Essa verdade impõe como certo, nas cul- turas, uma única identidade; nas religiões, uma só crença; na filosofia, o dogmatismo racional; nas ciências, o positivismo.

Essas verdades assumidas e politicamente impostas como verda- des absolutas não conseguem lidar com os diferentes. Frente a essas dire- trizes que conduzem o ser humano às práticas de discriminação de qual- quer natureza, a Secretaria dos Direitos Humanos elaborou um Programa denominado Brasil sem Homofobia, lançado em 2004, visando ao

combate à violência e à discriminação contra GLTB e de promoção da cidadania de homossexuais, Brasil sem Homofobia sinaliza, de modo claro, à sociedade brasileira que, enquanto existirem cidadãos cujos direitos fundamentais não sejam respeitados por razões relativas à discriminação por: orientação sexual, raça, etnia, idade, credo religioso ou opinião política, não se poderá afirmar que a sociedade brasileira seja justa, igualitária, democrática e tolerante. (BRASIL, 2004, p. 13-14).

O Brasil assume a sua caminhada em direção ao enfrentamento e ao combate a todas as formas de discriminação, pois tem como meta de nação a construção de uma cultura de paz. Os direitos são assegurados quando verdadeiramente todos são tratados com dignidade e igualdades de direito. Uma cultura de paz requer de todos nós um comprometimento com a liberdade, a dignidade e com a vida. Por isso que,

[...] quando falamos em cultura, não nos limitamos a uma visão tradicional de cultura como conservação, seja dos costumes, das tradições, das crenças e mesmo dos valores-muitos dos quais devem, é evidente, serem conservados. A cultura de respeito à dignidade humana orienta-se para a mudança no sentido de eliminar tudo aquilo que está enraizado nas mentalidades por preconceitos, discriminação, não aceitação dos direitos de todos, não aceitação da diferença. (BENEVIDES, 2007, p. 1).

A argumentação da autora implica na construção de outra men- talidade que prioriza a liberdade, justiça, igualdade, solidariedade, coope- ração e a paz. É essa a outra cultura que deve ser construída na sociedade e nas escolas. É a conscientização para a não discriminação e exclusão. Benevides (2007, p. 7) enfatiza que “o objetivo desta educação na escola é fundamentar o espaço escolar como uma verdadeira esfera pública de- mocrática”.

Apenas com uma educação em/para/com direitos humanos pau- tada na ética da alteridade construiremos uma cultura de paz e uma soci- edade na qual todos os seres vivos devem ter seus direitos assegurados e garantidos.