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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

6.5 Espaço da língua

Uma discussão sobre o uso da língua em Brazil-Maru e Circle K Cycles deve ser precedida pela diferenciação entre os termos língua e linguagem. Em Linguagem, língua,

linguística, Margarida Petter (2005) alerta para a importância da separação dos conceitos,

destacando que em inglês há uma só palavra – language – para ambos. Petter (2005) também

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“…in which the setting and the age are secondary to the representation of characters.”

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“…generic hybridity structurally enables her [Yamashita] to place variegated worldviews side by side.”

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menciona o uso geralmente não especializado do termo linguagem, às vezes se referindo à comunicação entre os animais, o que, segundo a autora, não é linguagem, assim como não há “outras ‘linguagens’ – música, dança, pintura, etc.” (PETTER, 2005, p. 17). Para Ferdinand de Saussure, a língua “não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente” (SAUSSURE, 1994, p. 17). Comentando a noção saussuriana de língua, Hall (1992) faz uma significativa conexão entre língua e identidade: “Falar uma língua não significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e originais; significa ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais” (HALL, 1992, p. 40). Dessa forma, o trabalho de Saussure (1994) sobre a língua é, para Hall (1992), uma evidência de que não somos “um”, pois não somos os autores das palavras que utilizamos e nem controlamos o significado que adquirem somente porque nos expressamos. Essa condição é uma das bases principais para a noção de um sujeito contemporâneo descentrado, defendida por Hall (1992) em A identidade

cultural na pós-modernidade, noção também muito pertinente ao sujeito diaspórico.

Por isso, no que se refere à diáspora, a língua constitui uma questão central. Em “Diaspora and Language”, Jacob M. Landau (1986) destaca a relevância e as funções da língua no contexto da diáspora tanto em relação à terra natal quanto ao país hospedeiro. Para muitas diásporas, a língua da terra natal não é apenas um meio de comunicação, mas o “gênio da nacionalidade” (LANDAU, 1986, p.78).403 Por isso, preservá-la é uma questão de defesa e sobrevivência. No capítulo terceiro desta tese, destacamos como a língua materna é um elemento cultural de grande importância, tanto para os japoneses de Brazil-Maru quanto para os brasileiros de Circle K Cycles. No país hospedeiro, a comunidade diaspórica enfrenta, como assinala Landau (1986), a expectativa de que os “recém-chegados deveriam aceitar a língua local e se adaptar a ela” (LANDAU, 1986, p. 76),404 condição também ilustrada nas obras de Yamashita.

Mais que uma questão embutida na dimensão ficcional, a língua é também fundamental no tocante às formas literárias escolhidas pela autora. Em suas obras, o uso da língua tende a refletir os problemas linguísticos de seus personagens diaspóricos ficcionais.

Brazil-Maru é redigido em inglês, embora Yamashita mantenha algumas palavras e

expressões em português, como bicho-de-pé, berne, saúva, pistoleiro e filho-da-puta e do japonês como furoshiki, ukiyoe e shakuhachi. A não tradução dessas palavras pode ser atribuída à dificuldade de se encontrarem equivalentes em língua inglesa, visto que certos

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“genius of nationhood.”

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conceitos ou ideias são mais bem expressos pela língua da tradição cultural em que existem, mas expressam, principalmente, uma circunstância linguística frequente na diáspora.

Assim, a utilização de palavras em línguas estrangeiras tem a função de exprimir, em termos literários, a sensação que se tem na diáspora. Em Brazil-Maru, a inclusão dos estrangeirismos ilustra, mesmo que discretamente, o entre-lugar linguístico do sujeito diaspórico. Em Circle K Cycles, por sua vez, o uso de palavras estrangeiras é levado ao extremo, indicando uma intenção mais radical por parte da autora de mergulhar o leitor nesse entre-lugar diaspórico por meio da língua, fazendo-o vivenciar o problema da dificuldade de comunicação na diáspora. O efeito de se folhear um capítulo inteiro em japonês, entre as páginas 99 e 106 de Circle K Cycles, é o de uma sensação de desconforto e estranhamento, semelhante à vivida pelas personagens brasileiras do livro, que, em sua maioria, desconhecem o idioma japonês. O capítulo em português tende a provocar sensação semelhante no leitor cuja língua materna é a inglesa.

Se o uso radical do japonês e do português, em certos capítulos de Circle K

Cycles, causa estranhamento, a mistura do japonês e do português tem outro efeito. Em várias

ocasiões, Yamashita põe no papel o registro da expressão oral híbrida do sujeito na diáspora, que combina vocábulos do português com os do japonês. O “portonês” falado pelas personagens, assim como as colagens que mesclam as três línguas, ilustram processos de negociação e a transformação que refletem o hibridismo cultural na diáspora, algumas vezes amenizando choque cultural por meio do aspecto cômico do “portonês”. Dentre os verbos conjugados pelos decasséguis, podemos citar: “wakatar” (compreender), “gambatear” (persistir), “shigotar” (trabalhar), “tsukaretar” (ficar cansado) e “wasuretar” (esquecer). Algumas expressões que misturam um verbo em português com um substantivo em japonês são: “dar um sampo” (dar uma andada), “estar hantai” (estar de cabeça pra baixo), “ser

mattaku japonês ou gaijin” (ser puramente japonês ou estrangeiro), “fazer kampai” (fazer um

brinde), “sair do teiji” (sair da rotina) e “ué, sugoi, né?” (uau, é surpreendente, não é?).

É relevante observar que o “portonês” de Circle K Cycles não está presente em

Brazil-Maru, obra em que os termos estrangeiros são usados, mas não se fundem à outra língua,

da mesma forma que em Circle K Cycles. Em Brazil-Maru, o olhar de Yamashita é sensível à questão linguística na diáspora, mas em Circle K Cycles, além de perceber a dificuldade, a autora evolve em sua forma de representá-la literariamente. A questão se torna ainda mais complexa se observarmos que Circle K Cycles não combina somente a língua da terra natal com a do país hospedeiro dos sujeitos diaspóricos representados, mas envolve também o inglês, a

língua da escritora, transpondo o hibridismo linguístico para uma dimensão que mescla o ficcional e o não-ficcional.

A complexidade do hibridismo linguístico de Yamashita leva, em muitas ocasiões, à necessidade de inserção de notas explicativas, traduções, e até mesmo um dicionário decasségui, inserido na página 10, antes do prólogo. Em certas partes da obra, porém, não encontramos definições ou explicações, talvez propositalmente. Assim, ao fazer do hibridismo linguístico uma estratégia estilística radical em Circle K Cycles, Yamashita traduz o caráter híbrido do entre-lugar diaspórico em que se encontram as personagens para uma linguagem literária. Por fim, a opção da escritora de usar termos e expressões estrangeiras e mesmo de escrever capítulos inteiros em pelo menos três línguas diferentes, pode ser interpretada sob outra ótica. Jonathan Culler (1999) lembra como obras literárias, particularmente os romances, “ajudaram a criar comunidades nacionais através de sua postulação de, e apelo a, uma comunidade ampla de leitores, limitada, mas em princípio aberta a todos que podiam ler a língua” (CULLER, 1999, p. 43). Essa única língua nacional é desestabilizada em Yamashita, pois o uso de três línguas desconstrói o princípio monolíngue das literaturas de cunho nacional, que costumam eleger e priorizar uma língua dita nacional, em detrimento de outras que possam existir internamente a seu território. Ao romper com a homogeneidade linguística na obra literária, Yamashita se expressa por meio de uma estratégia linguística diaspórica ou transnacional, aproximando o uso da língua no texto à condição diaspórica.