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CAPÍTULO III: RELAÇÃO JURÍDICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL PÚBLICA

3.4 Os benefícios eventuais e os benefícios de prestação periódica

3.4.1 Benefício De Prestação Continuada

3.4.1.5 Estado de miserabilidade

Já tivemos oportunidade de mencionar que o Programa Nacional de Assistência Social utiliza duas classificações para aqueles que estão em necessidade: pobres são os que ganham até ½ do salário mínimo e miseráveis ou indigentes, os que ganham até ¼ do salário mínimo. O BPC é destinado para aqueles que estão em situação de miserabilidade. A aferição dessa miserabilidade será feita pelo somatório dos valores percebidos por todos os membros da família, dividido pelo número de seus integrantes.386

É correto que o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), por decisão da maioria absoluta de seus membros, desde que respeitados o orçamento da seguridade social e a disponibilidade do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS), poderia propor ao Poder Executivo a alteração dos limites de renda mensal per capita (art. 39 da LOAS), mas essa postura, até o ano de 2011, ainda não aconteceu.

A concessão do BPC apenas para os miseráveis já foi motivo de discussão nos tribunais e pela doutrina. A doutrina reiteradamente alerta que a ___________________________________________________________________ 386

Art. 4º, inciso VI, do Dec. nº 6214/07: Renda mensal bruta familiar: a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pelos membros da família composta por salários, proventos, pensões, pensões alimentícias, benefícios de previdência pública ou privada, comissões, pró-labore, outros rendimentos do trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos auferidos do patrimônio, Renda Mensal Vitalícia e Benefício de Prestação Continuada, ressalvado, nos termos do art. 19, do mesmo decreto, que o valor do Benefício de Prestação Continuada concedido a idoso não será computado no cálculo da renda mensal bruta familiar, para fins de concessão do Benefício de Prestação Continuada a outro idoso da mesma família.

161 Constituição Federal nada menciona acerca de valores, e que a LOAS, nesse aspecto, ao constituir o limite de ¼ do salário mínimo, como requisito objetivo para a concessão do benefício, na realidade, limitou o alcance constitucional do benefício da prestação continuada, o que, por si só, configuraria violação ao princípio da dignidade humana, portanto, eivado de vício material.

Corroborando essa posição Ivanete Boschetti, afirma que o legislador introduziu um caráter mais restritivo em relação à necessidade, extremamente discutível, a saber:

“o que a LOAS fez não foi somente reafirmar o tradicional critério de “incapacidade”. Ela também introduziu uma linha de pobreza escandalosamente restritiva – o direito à assistência só é garantido a quem vive em condições de miserabilidade, “medida” como uma renda mensal per capita de ¼ do salário mínimo.387

Postura mais contundente foi assumida por Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, ao afirmar que o BPC acabou tendo um papel de exclusão da cidadania, e que:

É realmente uma lástima que a lei ordinária, que deveria apenas disciplinar o ACESSO ao benefício, tenha praticamente inviabilizado este acesso, ou quando não, transformado a obtenção do benefício num ATESTADO de incapacidade.388

O próprio texto da LOAS disciplina que a assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.389

Diante desse conflito, a Procuradoria Geral da República propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade, que recebeu o nº 1.232/DF (DJ 01.06.2001), por entender haver sido violado o art. 7º, inciso IV390

, da CF/88.

___________________________________________________________________ 387BOSCHETTI, Ivanete. Seguridade Social e Trabalho – Paradoxos na Construção das Políticas de Previdência e Assistência Social no Brasil. Brasília: LetrasLivres: Editora UnB, 2006, p. 270.

388

FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Avanços que ainda se fazem necessários em relação ao Benefício da Prestação Continuada. In Proteção Social da Cidadania: inclusão de idosos e pessoas com deficiência no Brasil, França e Portugal. Org. Aldaiza Sposati. São Paulo: Cortez, 2004, p. 183. 389

Art. 1º da Lei 8.742, de 07.12.1993. 390

IV - salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.

162 Os ministros não enfrentaram a questão de fundo, ou seja, o critério de exigência da renda limitado ao máximo de ¼ do salário mínimo, ser ou não constitucional, mas apenas declararam que havia sido estatuído em lei um requisito, não competindo a Suprema Corte a sua flexibilização. Afirmaram, acertadamente, caber ao legislador, e não ao juiz na solução do caso concreto, a criação de outros requisitos para a aferição do estado de pobreza daquele que pleiteia o benefício assistencial.391

O Ministro Ilmar Galvão acresceu, ainda, que a LOAS trouxe uma hipótese objetiva de prestação assistencial estatal, ao fixar cálculo da renda.

A ADIN foi julgada improcedente no mérito, em 27/08/98, e os intérpretes entenderam que o julgamento não teria força vinculante. Por esse motivo, por via concreta, os cidadãos, com renda superior a ¼ do salário mínimo, continuaram a pleitear o BPC junto ao Poder Judiciário, e alguns magistrados de primeiro grau, analisando caso a caso e fazendo a ponderação, concediam o benefício, o que demandou outras reclamações392

perante o STF, entre eles o de nº 2.303, cuja relatora designada foi a Ministra Ellen Gracie.

Nessa ação o Plenário decidiu, em 13/05/2004, pela constitucionalidade do art. 20, § 3º, da Lei nº 8.472/93, que previa o limite máximo de ¼ do salário mínimo, de renda mensal per capita da família, como único critério de aferição da miserabilidade, para efeito de concessão do BPC, critério esse também reconhecido como constitucional. Não havia mais espaço para interpretações diversas.

Mas ,como as relações sociais são dinâmicas, outras legislações foram sendo construídas, no campo da hipossuficiência. A lei nº 9.533, de 10.12.97, regulamentada pelos Decretos nº 2.609/98, 2.728/99 e 4.102/2002, da Secretaria da Assistência Social, autorizou o Poder Executivo a conceder apoio financeiro aos Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima, associados a ações socioeducativas, para aqueles cuja renda familiar per capita fosse inferior a ½ salário mínimo.

___________________________________________________________________ 391Esse posicionamento foi mantido quando do julgamento da Rcl 2264-SP, DJ 30.05.2005; AgR 2.264/SP, Rel. Min. Ellen Gracie DJ 30.05.2005. Posições contrárias Rcl n° 4.422/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 30.6.2006; Rcl n° 4.133/RS, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 30.6.2006; Rcl n° 4.366/PE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 1.6.2006.

392Rcl nº 2.733, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 07/12/2004; Rcl nº 2.298, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 04/06/2004.

163 O Programa Nacional de Acesso a Alimentação - PNAA, foi criado pela Lei nº 10.689, de 13 de junho de 2003393, para atender as camadas mais necessitadas da população, que percebam renda mensal per capita inferior a ½ mínimo. Até mesmo o Manual explicativo do Bolsa Família demonstra essa tendência ao afirmar:

A identificação das famílias com perfil para participar do Bolsa Família é feita por meio do Cadastro único para Programas Sociais do Governo Federal, que é um instrumento de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa renda e deve ser obrigatoriamente utilizado para seleção de beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal que estejam direcionados ao atendimento desse público (renda de

até meio salário mínimo per capita ou famílias que auferem

mensalmente renda igual ou inferior a três salários mínimos).394

Os aplicadores do direito passaram, então, a interpretar que o legislador tornou mais elástico o conceito de miserabilidade adotado anteriormente. Fundamentavam na Lei de Introdução ao Código Civil, onde há o preceito que lei posterior revoga a anterior, quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

O BPC foi regulamentado pela lei nº 8.742, no ano de 1993 e as legislações posteriores, ao determinarem um critério da renda mais abrangente, demonstraram uma mudança, por parte dos Poderes Executivo e Legislativo, na ampliação dos critérios assistenciais para a concessão dos benefícios, deslocando o critério de ¼ para ½ salário mínimo. Desse modo, muitos magistrados, de primeiro grau, permaneceram concedendo os BPC para os idosos e deficientes, cuja renda chegasse até o limite de ½ salário mínimo, quando a situação de necessidade justificasse.

Novamente a questão chegou ao tribunal superior. Em sede de recurso especial a questão material da miserabilidade foi objeto de apreciação e julgamento no Superior Tribunal de Justiça. Os Ministros do STJ se posicionaram em sentido mais elástico, afirmando que é possível se cotejar a carência por outros ___________________________________________________________________ 393

Esse programa foi abarcado pelo Programa do Fome Zero. 394

BRASIL. Guias e Manuais 2010 - Orientações para a Fiscalização e Controle Social do Programa Bolsa Família. Secretaria Nacional de Renda de Cidadania/MDS. Brasília-DF. Setembro de 2010, 2010, p. 09.

164 meios de prova e que o critério de ¼ do salário mínimo, devia ser tido como um limite mínimo, no seguinte sentido:

O critério de aferição da renda mensal previsto no § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93 deve ser tido como um limite mínimo, um quantum considerado insatisfatório à subsistência da pessoa portadora de deficiência ou idosa, não impedindo, contudo, que o julgador faça uso de outros elementos probatórios, desde que aptos a comprovar a condição de miserabilidade da parte e de sua família. 395

O Min. Napoleão Nunes Maia Filho do STJ, reiteradamente, nos Recursos Especiais repetitivos, vem se posicionando no sentido de que o STJ, tem compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, e que o dispositivo em comento, deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente ao cidadão social e economicamente vulnerável. O ministro entendeu, com acerto, que o STF tem reinterpretado o art. 203 da Constituição da República.396

Dessa forma, o Tribunal julgou que a limitação do valor da renda per

capita familiar, não deveria ser considerada a única forma de se comprovar a

necessidade. Era possível provar por outros meios a inexistência de condições para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, em razão de ser “apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade”, ou seja, “presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo”.397

Com essas decisões houve uma flexibilização, por parte do Superior Tribunal de Justiça, na concessão do Benefício de Prestação Continuada para aqueles que percebessem renda superior a ¼ do salário mínimo, desde que se provassem sua condição de necessidade. Dessa forma, outros meios de prova da miserabilidade passaram a ser aceitos, mas desde que limitado ao limite de ½ salário mínimo.

___________________________________________________________________ 395AgRg no REsp 946253-SP. Rel. Ministra Jane Silva (Desemb. Convocada do TJ/MG) – 6ª Turma - DJe 03/11/2008; REsp 1112557-MG - RECURSO ESPECIAL 2009/0040999-9, Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 3ª Turma, j. 28/10/2009, p. DJe 20/11/2009, RSTJ vol. 217 p. 963. No mesmo sentido AgRg no REsp 507210, AgRg no Ag 1117071, AgRg no REsp 1125402, AgRg no REsp 938279, todos do ano de 2010.

396

O STF já reinterpretou o conceito de família na ADPF 132-RJ e AD 4277. Resp 1.112.557-MG. Terceira Seção. Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho. j. 28.10.2009.

397REsp 1112557-MG - RECURSO ESPECIAL 2009/0040999-9, Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 3ª Turma, j. 28/10/2009, p. DJe 20/11/2009.

165 Esse julgamento refletiu nas Turmas dos Juizados Especiais Federais398

que, mantiveram a concessão do benefício, o que motivou a impetração de outras Reclamações, entre elas a de nº 4374 MC/PE, por parte do Instituto Nacional de Seguridade Social. O instituto alegou que as várias decisões399 estariam em desrespeito à autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI nº 1.232/DF.

Na reclamação mencionada acima, foi proferido a seguinte decisão por parte do Rel. Ministro GILMAR MENDES:

O Tribunal parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de 1/4 do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição.

Entendimento contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão proferida na Rcl 2.303/RS, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3º do art. 20 da Lei n° 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art. 203, inciso V, da Constituição.

A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode

ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3º do art. 20 da Lei n° 8.742/93.

Portanto o Ministro sinalizou provável vício de inconstitucionalidade por omissão, em razão do legislador não ter estabelecido, outros critérios que permitissem auferir, se o idoso ou o deficiente tem ou não, capacidade de se manter,

___________________________________________________________________ 398]A Turma Nacional de Uniformização havia editado a Súmula nº 11, com a seguinte redação: A renda mensal, per capita, familiar, superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo não impede a concessão do benefício assistencial previsto no art. 20, § 3º da Lei nº 8.742 de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante. (Súmula cancelada em 24.04.2006) 399Nesse sentido acórdão de lavra do Desembargador Federal Sérgio Nascimento nos autos do Proc. nº 2006.03.99.018133-9, p. DJU nº 230, seção 02 de 30/11/07, pp.853-998 (nº 880/00, Avaré-SP): “Tem-se, ainda, que o artigo 20, parágrafo 3º, da Lei nº 8.742/93, não é o único critério objetivo para a aferição da hipossuficiência, razão pela qual é de se reconhecer que muitas vezes o quadro de pobreza há de ser aferido em função da situação específica da pessoa que pleiteia o benefício, pois, em se tratando de pessoa portadora de deficiência, é através da própria natureza dos males que a assolam, do seu grau e intensidade, que poderão ser mensuradas suas necessidades. Difícil, portanto, enquadrar todos os indivíduos em um mesmo patamar e entender que somente aqueles que contam com menos de ¼ do salário-mínimo para sobreviver possam fazer jus ao benefício de amparo social”. No TRF 1ª Reg. AC 200138000437327. Rel. Juíza Federal Rogéria Maria Castro Debelli (Conv.) e-DJF1. Data: 26/01/2009, p. A: 34.

166 por si ou por sua família. Embora nos pautemos pela constitucionalidade do § 3º do art. 20, a questão ainda não foi pacificada.

Tramita no Supremo Tribunal Federal, duas outras ações em que foram reconhecidas a Repercussão Geral sobre a renda familiar ser de ½ ou ¼ para fins de concessão do benefício assistencial, a saber: Recurso Extraordinário nº 567985-3-MT - Relator Min. Marco Aurélio, julgado em 08/02/2008 e Recurso Extraordinário nº 580.963-PR, Relator Min. Gilmar Mendes, julgamento em 16/09/2010. Em ambas foi declarada a repercussão geral, e na última, entenderem que o tema alcança relevância econômica, política, social e jurídica, bem como ultrapassa os interesses subjetivos da causa. Até dezembro/2011 ambas ainda não haviam sido julgadas.