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Estratégias delimitativas nas “Histórias da Religião de Israel”

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REFLEXÕES PARA UMA NOVA “HISTÓRIA DA RELIGIÃO DE ISRAEL”

2.1.2 Estratégias delimitativas nas “Histórias da Religião de Israel”

O segundo e, talvez, principal percalço aos grandes teóricos de “religião” do passado foi a questão da complexidade . Émile Durkheim (2008, p. 33), p.ex., disse ser 32

impossível alcançar um conceito de religião a partir de religiões complexas, visto que elas se constituem de um “denso emaranhado de cultos múltiplos, variáveis de acordo Como apontou Turner (2017, p. 283-284): “In Western societies, the study of ‘religion’ as a topic of 32

anthropological inquiry was initially undertaken by theologians who wanted to understand how Christianity as a revealed religion could be or was differentiated from other religions. The problem of religious diversity arose as an inevitable consequence of growing colonial contact with other religious traditions such as Buddhism and with phenomena that shared a family resemblance, however distant, with organised religion such as fetishism, animism, and magic”.

com as localidades, os templos, as gerações, as dinastias, as invasões etc”, com uma complexa mistura entre superstição popular e dogma . Foi isso que levou o sociólogo 33

ao estudo de religiões “primitivas” que, em sua opinião, não teriam tantas camadas 34

de sentido. Outro pesquisador, Mírcea Eliade, absteve-se do problema delimitando seu conceito de “hierofania” às camadas letradas. Parafraseando o autor: preferia-se o 35

padre à aldeia. Assim, as hierofanias que não se enquadravam eram consideradas “restos de hierofanias decaídas” , não tendo espaço na pesquisa, sendo consideradas, 36

em último caso, meros acintes (ou acidentes) no contexto da ortodoxia vigente. 2.1.2.1 Cânon como estratégia delimitava

É importante notar que as estratégias de delimitação dos pesquisadores acima não era uma forma de evitar ou, tampouco, negar a complexidade dos fenômenos “sob o microscópio”, mas foi elaborada justamente para superar tal dificuldade, como forma de atingir “riscos controlados” na avaliação de dados. Não é de se espantar, portanto, que a mesma dificuldade foi e tem sido enfrentada pelos historiadores da religião de Israel nos séculos 20 e 21, que tentaram resolver a questão da complexidade da “Religião do Antigo Israel” com duas estratégias de delimitação antagônicas. Por um lado, houve obras cuja ênfase esteve na manutenção de valores da fé contemporânea. Essas são as chamadas “Teologias do Antigo Testamento” . Seu título é apropriado, 37

por tratarem de visualizações sincrônicas e canônicas, que correspondia ao desejo de 38

continuidade de religiões modernas. Estas procederam virtualmente como Eliade, marginalizando o popular em prol da narrativa totalizante.

Embora possa se argumentar que tais esforços sejam salutares à manutenção da fé contemporânea , eles ocultavam uma armadilha metodológica , primeiro por não 39 40

contemplarem e notabilizarem os múltiplos centros de sentido da fé israelita (ao contrário de obras como: ALBERTZ, 1994; GERSTENBERGER, 2007; ZEVIT, 2001) e,

Para uma opinião similar do posicionamento de Durkheim, cf. RÜPKE, 2015, p. 344-366, 2018, p. 5-10 33

Tal conceito de “primitivismo” foi duramente criticado pelo antropólogo Pierre Clastres (2011). 34

Para Eliade (2003, p. 17), hierofanias ocorreriam quando “o homem toma conhecimento do sagrado”, 35

especialmente porque ele “se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano”. Um exemplo seria a história de Jacó em Betel: ELIADE, 2013, p. 12, 187

36

Invocamos as “Teologias do Antigo Testamento” apenas exemplarmente. Elas não serão nosso foco. 37

Mas veja a exploração diacrônica recente de Konrad Schmid (2019), que tenta ultrapassar tais limites. 38

O que não quer dizer que Histórias da Religião não sejam igualmente devedoras ao seu contexto. Veja 39

p.ex., as análises de algumas obras seminais em LEVINSON, 2008; KURTZ, 2018; ELREFAEI, 2016. O maior esforço é o traçado de uma estrutura sincrônica via teologia bíblica dogmática, alegoria, 40

história da salvação, narrativo/literária etc. A complexidade, nesses casos, costuma ser desconsiderada (BRUEGGEMANN, 1992, p. 1-44; CHILDS, 2011, p. 11-29, 196-207; GOLDINGAY, 2003, p. 1-41, 2006, p. 1-20, 2009, p. 1-50).

em segundo lugar, por projetarem aos tempos do “Antigo Israel” um conceito anacrônico e acrítico de cânon como representação da totalidade da fé dos povos que habitaram a região e período (LIM, 2017; McDONALD, 2013, 2017; McDONALD; SANDERS, J., 2013; PURY, 2010; SCHMID, 2012, 2013, p.271-283; ZENGER, 2003). Fora isso, não raras vezes tais esforços, pela quantidade de material analisado, ficaram alheios às descobertas históricas e arqueológicas da região, o que impossibilitou o diálogo acadêmico especializado (HESS 2007, p. 15-18; MILLER II, 2016, p. 1).

2.1.2.2 “Antigo Israel” como estratégia delimitativa

Por outro lado, temos as obras geralmente chamadas “Histórias da Religião de Israel”, cuja abordagem diacrônica focaliza rupturas históricas e, consequentemente, lida prioritariamente com problemas advindos da arqueologia, epigrafia, além da crítica histórico-literária. Entretanto, por mais que tenham mantido um mesmo objetivo central — i.e., reconstruir práticas religiosas —, tais obras seguiram duas tendências 41

igualmente antagônicas no que concerne à sua delimitação. Uma tendência pode ser vista nas obras que, a exemplo das “Teologias do Antigo Testamento” mencionadas acima, procuram reconstruir a história da religião do período a partir da imposição da delimitação pelo conceito “Antigo Israel”. Embora nomeie a disciplina, tal conceito é idiossincrático, como sugeri acima, visto não ser bíblico e tampouco histórico. Ainda que seus usos ambíguos no tempo e espaço não sejam suficientes para comprovar meu argumento , relembro da pesquisa de Phillip R. Davies (2015) que, no início nos anos 42

1990, argumentou convincentemente que o que chamamos de “Antigo Israel” é uma construção acadêmica. Isso se confirmou, nas últimas décadas, especialmente a partir da arqueologia siro-palestinense do início do Ferro, que reconheceu ao menos dois povos populando as montanhas de Israel no período (cf. CLINE, 2009; YASUR-LANDAU; CLINE; ROWAN, 2017). Ademais, devo assinalar a insensatez de se pesquisar sociedade periféricas complexas, diversas em modos de produção e sem aparato burocrático e/ou

Caso haja algum. A falta de um conceito de “religião” torna o objetivo difícil de discernir, haja vista não 41

sejam apresentadas fronteiras entre “religião”, “ritual”, “práticas religiosas”, “culto” etc.

O que seria “Antigo Israel”? Seriam as doze tribos formadas a partir filhos de Jacó, segundo o relato 42

bíblico? Seria a unidade política chamada Israel, nas montanhas de Efraim e áreas adjacentes, cuja capital era Samaria? Seria o povo — ou unidade política? (cf. HUDSON, 2018) — de Siquém que, após desterro assírio, habitou o vale de Siquém e cultuou no monte Gerizim? Seria a unidade política do Período Persa das montanhas de Judá? A indefinição pressupõe a ideologia no uso do termo. Noll (2007, 2013) nesse aspecto, sugeriu o uso da nomenclatura “Religião Canaanita” para a disciplina.

religioso unificado, num período superior a 600 anos . Esse ponto foi levantado por 43

Brent A. Strawn (2016), na afirmação que o primeiro obstáculo à disciplina seria sua amplitude cronológica, que torna a quantidade de evidências gigantesca.

São por essas razões que considero o título “Antigo Israel” inapropriado, pois: (1) impõe construções literárias à investigação de realidades históricas; e (2) é impraticável em tamanha amplitude cronológica e geográfica. Como resultado, as obras com tal escopo favorecem reconstruções totalizantes e generalistas e desprezam unidades menores do “Antigo Israel” , em nome da suposta “distinção israelita”, não fazendo jus 44

à riqueza de evidências. Tais pesquisas seguiram linhas gerais do texto bíblico, seja na periodização (ALBERTZ, 1994; FOHRER, 2012; HESS, 2007; SCHMIDT, 2004) ou utilização de fontes hipotéticas (HARAN, 1978; WELLHAUSEN, 1885). Tal postura aparentemente reflete, como veremos adiante, a utilização metonímica do conjunto literário chamado “Antigo Testamento” pela disciplina “História da Religião de Israel” por acadêmicos que “identificaram a história da literatura com a história da religião e equipararam tais histórias à história do povo de Israel” (KURTZ, 2018, p. 286-287) . 45

2.1.2.3 Conceitos histórico-geográficos como estratégia delimitativa

Há obras entretanto que, cônscias da insensatez de unir tal amplitude geográfica e cronológica, procuraram investigar padrões recorrentes e práticas localizadas. Essa tendência, que deveria substituir a tendência generalista dos arqueólogos sul- levantinos, foi mencionada por Pirhiya Beck (2000, p. 181):

A tendência dos arqueólogos nas últimas décadas de ver o “Sul do Levante” como uma unidade cultural é inaceitável, visto que tal abordagem obscurece as características distintivas de de cada região nessa área. Acredito que o estudo de características específicas de cada cultura contribuirá para uma melhor compreensão da interação entre as várias unidades étnicas e

O “período israelita” é convencionalmente abrigado entre 1200 aEC (Ferro IA) e 586 aEC (Ferro IIC) e a 43

região de “Israel e seus vizinhos”, como tem sido chamado nos últimos anos, abriga áreas diversas como a planície costeira norte, Galiléia, região de Samaria, Vale de Jezreel, montanhas de Judá, deserto do Negev. A insensatez de se perceber tais áreas de forma uniforme, suscitou esforços de tipologização regional. Isso pode ser visto em obras de referência contemporânea como, p.ex., o APIN.

Devo lembrar que o uso do conceito de “Israel Moderno” é igualmente problemático. Hudson (2018, p. 44

1) acertou ao dizer que “what was a century of ‘Bible and spade’ has now become ‘flag and spade’ in certain sectors of archaeology in the Southern Levant”. Veja, p.ex., o nome dos levantamentos arqueológicos na região, que designam áreas nomeadas de acordo com conceitos bíblico-teológicos. Hudson defende que o conceito deva ser sempre construído, sem subentender definição substancial. Ing.: “identified the history of literature with the history of religion and equated those histories with the 45

history of the people of Israel”. Embora a crítica de Kurtz seja direcionada especificamente às obras de Julius Wellhausen e Hermann Gunkel, acreditamos que seja um bom diagnóstico do campo.

políticas que atuavam no Levante durante a primeira metade do primeiro milênio. 46

O argumento de Beck, pedindo por estudos tipológicos específicos de cada cultura, demonstra uma convergência que se tornou consenso nas primeiras décadas do século 20. Isso não quer dizer, porém, que todas as questões tenham sido respondidas satisfatoriamente. Alguns, ao invés de investigarem distinções e peculiaridades dos locais pesquisados, enfatizaram interconexões (HUNDLEY, 2013; GGIG) ou elencaram evidências sem compreendê-las como sistema, tornando suas conclusões fragmentadas (ALBERTZ; SCHMITT, 2014, p. 265-286; ZEVIT, 2001) . Outra 47

questão problemática, quando aplicada à religião, foi a insistência de alguns pesquisadores em tipologias baseadas em perspectivas étnicas e/ou políticas . Nesse 48

aspecto, Christoph Uehlinger (2006a), em seu estudo sobre os templos de Tel Arad e Horvat Qitmit, argumentou que a designação étnico-política aplicada às evidências do período pode ser infrutífera, visto pressupor um (desacreditado) aniconismo judaíta que só faz sentido em uma análise tendenciosa das evidências (cf. CARDOSO, S., 2016; CORNELIUS, 1997; METTINGER, 1997a, 1997b; UEHLINGER, 1997, p. 97-172).

2.1.2.4 Perspectivas preliminares

Acredito, nesse aspecto, que a segunda revisão necessária para o estudo da História da Religião de Israel é rever seu escopo enciclopédico, que geralmente abrange geograficamente toda a região de Canaã e cronologicamente todo o Período do Ferro (c. 1200-586 aEC). Das estratégias referidas acima, penso ser imprudente a utilização de uma análise generalista e que impõe o conceito fabricado “Antigo Israel” à evidência histórica. Concordo com Beck que haja necessidade de estabelecer marcas distintivas regionais, especialmente a partir da cultura material, que oferece acesso em primeira mão à evidência histórica. Tal movimento não pode ser realizado, porém, a partir de conceitos igualmente anacrônicos de ordem étnica e política, como

Ing.: “the tendency of archaeologists in recent decades to view the ‘south Levant’ as one cultural unit is 46

unacceptable since such an approach blurs the distinctive characteristics of each region in that area. I believe that the study of the specific features of each culture will contribute to a better understanding of the interaction between the various ethnic and political units that were active in the Levant during the first half of the Ist millennium”.

A tipologia de locais cúlticos de Rudiger Schmitt é um exemplo. Embora criteriosa, sua pesquisa impõe 47

achados fragmentários ao “Antigo Israel” como todo. Mazar (2015b, p. 25-55) reagiu dizendo que, apesar dos esforços, eles apenas refletiam aspectos físicos e não aspectos mais profundos, estes melhor representados pela evidência textual.

Como, p.ex., religião “edomita”, “filistéia”, “israelita” etc. Marcas desse pensamento podem ser vistas 48

argumentou Uehlinger. Uma solução possível, em minha opinião, é a delimitação por considerando fronteiras naturais e do histórico ocupacional dos sítios, aliados a uma perspectiva comunicacional. Discutirei tal proposta na segunda etapa desse capítulo.

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