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Capítulo III. Eventos profissionais

I.2 Problemática e justificação da investigação

I. 3.1 Filosofia da investigação

A apresentação de uma investigação é sempre balizada por pilares filosóficos (Finn, Elliot- White e Walton, 2000) que sustentam a estratégia e os métodos escolhidos (Saunders, Lewis e Thornhill, 2009) como:

(1) A ontologia, ou seja, o entendimento sobre como o mundo funciona, no que o faz como ele é, por outras palavras, qual é a natureza do ‘conhecível’ ou qual é a natureza da ‘realidade’ (Ayikoru, 2009);

(2) A epistemologia, isto é, a forma como enquanto seres humanos podemos compreender e aprender sobre o mundo e sobretudo sobre o mundo das pessoas (Bazeley, 2013) ou, por outras palavras, qual o entendimento que temos sobre como existimos enquanto seres

9 conhecedores, como nos envolvemos ativamente no mundo e como refletimos sobre a nossa experiência no mundo (Shaw, Dixon e Jones III, 2010); e

(3) A axiologia, ou seja, a natureza dos valores e o papel que a perceção de quem investiga tem na investigação (Wilson, 2014).

Mais do que deixar implícito o posicionamento que temos sobre estas questões, pretendemos apresentar, de forma breve, o que ajudou a estabelecer as fronteiras da investigação, acabando por influenciar as opções em relação ao tema e ao campo de análise, os métodos escolhidos (Holdaway, 2000), bem como a sua aplicação, e a própria análise dos resultados. Desta forma, apresentamos a nossa reflexão sobre estas escolhas, defendendo-as, em alguns casos, em relação a alternativas que poderíamos ter adotado (Saunders, Lewis e Thornhill, 2009).

No que diz respeito à ontologia, entendemos que a realidade existe a partir de uma multiplicidade de construções mentais intangíveis, dependendo, por isso, da forma como individualmente e em sociedade essas perceções são construídas (Lincoln e Guba, 1998). Neste sentido, assumimos uma visão subjetivista da realidade, em que as perceções e ações dos atores sociais criam os fenómenos sociais (Wilson, 2014), sendo, portanto, muito imprevisível devido ao caráter ‘acidental’ das interações individuais e da forma complexa e contingente como os sujeitos estão incorporados em diferentes sociedades e culturas, que também acabam por produzir grandes variações em termos de ações e perceções (Shaw, Dixon e Jones III, 2010). Ou seja, as pessoas podem ter diferentes perceções sobre a mesma experiência, associando-lhes, por isso, diferentes significados (Ziakas e Boukas, 2014).

Deste modo, o acesso aos dados no trabalho empírico tem necessariamente de incluir métodos que possibilitem chegar às perceções individuais, nomeadamente, e neste caso, entrevistas semiestruturadas e grupo focal, para que se possa depois analisar se estas são convergentes, ou não, ou se sobre determinadas categorias há perceções mais ou menos comuns e porquê. Para além de identificar padrões ou constatar factos, compreender o porquê é um aspeto fundamental para que se aprofundem as razões e o sentido que tais representações veiculam (Fernandes, 1996).

Por conseguinte, em relação à epistemologia colocamo-nos num paradigma construtivista. A natureza da relação entre quem produz conhecimento e o que é conhecível (Ayikoru, 2009) assenta na teoria de que a realidade é socialmente construída e interpretada e por isso só pode ser conhecida a partir das perceções que os atores sociais podem dar sobre essa realidade (Blaikie, 2004). A estas perceções são atribuídos significados que constituem construções pessoais e sociais, e que no contexto dos eventos incluem todas as experiências,

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sentimentos e pensamentos bem como o subsequente sentido de relevância que as pessoas ganham pela sua participação no fenómeno (Ziakas e Boukas, 2014). Assim, o significado nos eventos é uma manifestação complexa de forças de interação que moldam uma tapeçaria polissémica de entendimentos e perceções, a qual inclui dimensões pessoais, existenciais, ontológicas e socioculturais que caracterizam a expressão simbólica do(s) significado(s) e os processos da sua construção (Ziakas e Boukas, 2014). Por outro lado, no que diz respeito ao género, é também numa perspetiva individualista, da vivência da sua identidade, mas também na dinâmica com a sociedade, que é possível compreender esta dimensão que permite organizar a vida social (Wharton, 2005; Alvesson e Billing, 2009).

Importa-nos, então, conhecer o sentido dessas perceções, ou seja, quais as suas estruturas de referência, e como as experiências vividas fazem sentido naquela que entendem como a sua realidade (Saunders, Lewis e Thornhill, 2009). Deste modo, quem investiga torna-se construtivista porque acaba por impor alguma ordem à existência aparentemente caótica (Fernandes, 1996).

Consideramos, assim, que a escolha de um estudo descritivo seja o mais adequado à investigação desenvolvida, no sentido em que procura especificar as propriedades do fenómeno (Gil, 2008; Vilelas, 2009), avaliando, neste caso, diversos aspetos e dimensões da gestão de eventos profissionais, mas sobretudo a dimensão do género.

Deste modo, em vez da análise objetiva de regularidades integradas num sistema organizado por leis gerais que regem os fenómenos, que apresenta hipóteses prévias, usa técnicas de verificação sistemática e procura explicações causais dos fenómenos, no sentido de confirmar generalizações preexistentes (paradigma positivista) (Fernandes, 1996; Finn, Elliot-White e Walton, 2000; Ayikoru, 2009; Wilson, 2014), o mais importante será “a análise dos processos sociais onde se encontra a lógica social dos fenómenos, o que só poderá ser realizado a partir do centramento das análises das racionalidades dos sujeitos” (Guerra, 2006, p. 15).

Desta forma, não é nossa intenção chegar a uma generalização dos resultados pela forma como encaramos o mundo e o seu conhecimento, sobretudo pelo facto de estarmos a trabalhar a dimensão do género tão influenciada pelo contexto cultural local e as experiências de vida de cada um (Wharton, 2005; Alvesson e Billing, 2009), embora seja importante ter em conta que, ao mesmo tempo,

“[n]ão estamos perante indivíduos isolados pelo individualismo metodológico, mas perante actores que agem tendo em conta a percepção dos outros e balizados por constrangimentos sociais que definem intencionalidades complexas e interactivas. Assim, o ponto de partida associa a análise da racionalidade dos actores à atenção aos modelos

11 de interacção entre os sujeitos e os sistemas sociais, no contexto de um “sistema de ação” socialmente construído onde os contextos transcendem as situações imediatas” (Guerra, 2006, p. 9).

Quanto à axiologia, e na linha do posicionamento ontológico e epistemológico, assumimos que esta investigação é muito marcada por quem a desenvolveu, na medida em que a investigadora, no seu perfil, contexto e histórico pessoal teve peso nas escolhas efetuadas, mas também porque foi o primeiro instrumento para a recolha e análise dos dados (Sardan, 2008; Marshall e Rossman, 2011; Veal, 2018).

Frequentemente identificada como bias, não encontramos para a expressão uma tradução para a língua portuguesa que enquadre todas as suas dimensões, pelo que será utilizada enquanto uma preferência ou inclinação que inibe um julgamento imparcial, o que pode levar a uma direção oblíqua e, por isso, uma visão enviesada ou até baseada em preconceitos e, por isso, tendenciosa. Este tipo de enviesamento pode ser influenciado pela cultura em que quem investiga se insere, por questões de género, experiência profissional ou gostos pessoais. Assim sendo, é importante compreender como os seres humanos que investigam são socializados e como se reflete essa socialização nas formas de estruturar e colocar rótulos no contexto empírico que vai ser explorado (Funder, 2005). De acordo com Queirós (2019, p. 1), “se atendermos aos enviesamentos políticos e valores socioculturais, obtemos um conhecimento mais correto, mais preciso do que aquele que se pretende universal”. Ou seja, deve assumir-se que quem investiga entra no terreno com mente aberta mas não vazia (Fetterman 1998 cit. por Funder, 2005).

Se esta é uma questão que se coloca frequentemente em relação à investigação qualitativa, dada a maior dependência e envolvimento de quem investiga na aplicação dos métodos, não menos importante é para a investigação quantitativa. Se não, veja-se: desde o desenho da investigação as escolhas também são influenciadas pela bias. A forma como encaramos o tema a tratar, as perspetivas de abordagem e a própria questão de investigação, mesmo que assentes no processo de rutura com o senso comum, são sempre influenciadas por quem comanda a investigação. Mais adiante, a forma como se questiona o objeto de estudo, seja através de um questionário que nos leva a resultados mais quantitativos, ou através de perguntas mais abertas realizadas diretamente por quem investiga, podem enviesar as respostas que são dadas (Saunders, Lewis e Thornhill, 2009).

Deste modo, ter a clara consciência de que qualquer investigação é influenciada pela pessoa que a conduz é o primeiro passo para se evitar que este enviesamento possa comprometer os resultados, sendo que o reconhecimento destas influências é importante para a validade e confiabilidade dos resultados.

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Importa, pois, referir alguns dos aspetos que consideramos terem tido mais influência nas escolhas que fomos fazendo ao longo do processo, sendo que, para além das questões mais pessoais, apresentamos outras perspetivas que consideramos relevantes para o processo: Pessoal / Bias – Como mulher caucasiana, de 42 anos, agnóstica, mãe de dois filhos, classe média, docente do ensino superior politécnico, que faz parte da população ativa desde os dezasseis anos, tendo passado por diversas experiências profissionais que lhe permitiram contactar com pessoas muito diferentes, vários são os aspetos que podem ter influenciado a forma como a investigação foi estruturada, tanto pelas crenças e valores que podem estar associadas a estas características, como também pelas implicações que estas podem ter tido nas relações interpessoais que se estabeleceram no trabalho de campo. Um dos exemplos mais flagrantes é o facto de uma mulher fazer investigação sobre género. Se, por um lado, pode levar a uma repulsa ou postura ‘politicamente correta’ por parte das pessoas entrevistadas ou observadas, por outro, pode ter levado também a um exagero em termos de lamentos por parte das mulheres entrevistadas, numa postura de confidencialidade baseada na identificação do género com a entrevistadora, sem referir outras dimensões que possam ter ficado por abordar para quem não se identifica numa visão dicotómica de género.

Outro aspeto relevante nesta perspetiva pessoal é a grande paixão da investigadora pelos eventos. Neste sentido, o envolvimento emocional com o tema pode ser visto como um entrave à clareza no decorrer da investigação. No entanto, o facto de haver uma consciência deste aspeto, bem como a forma como se estruturou a investigação em termos metodológicos, a constante atenção em termos da aplicação dos métodos e, ainda, o acompanhamento por parte dos orientadores, permitiram que esta dimensão emocional fosse mais aproveitada do que limitativa.

Imersão no tema – A experiência profissional da investigadora permitiu um importante conhecimento do mercado dos eventos profissionais, a vários níveis. No presente, esta relação profissional permite uma imersão no tema pela constante pesquisa e contacto com antigos estudantes que trabalham em eventos profissionais, permitindo uma atualização regular para a lecionação de conteúdos nestes domínios. Porém, também a experiência profissional na prestação de serviços em eventos, há alguns anos, promoveu a criação e manutenção de uma rede de contactos com diferentes intervenientes deste meio. Esta familiaridade permitiu um acesso a mais informação, tal como Marshall e Rossman (2011) indicam, mas o facto de já não estar regularmente no terreno enquanto profissional (apenas pontualmente, em termos de consultoria voluntária) permite algum distanciamento, também importante no âmbito da investigação científica.

13 Grau de revelação prévia do contexto de investigação – Sobre este aspeto houve diferentes abordagens, consoante o método utilizado. No caso das entrevistas semiestruturadas e do grupo focal, houve uma total revelação, tendo sido feita uma breve apresentação da investigação e dos seus objetivos, antes da sua aplicação. No entanto, na observação direta nem sempre houve revelação a todos os intervenientes nos eventos observados. Um dos problemas de se revelar totalmente e de se explicar o propósito da investigação é que as pessoas começam a agir de uma forma não natural, orientadas pelo que consideram que devia ser a sua prestação em relação ao que a investigação pretende aferir (Sardan, 2008; Marshall e Rossman, 2011). A fim de evitar estas situações, e porque a utilização da observação direta teve como propósito confirmar os resultados das entrevistas semiestruturadas, considerámos, conscientemente, que a melhor opção seria não dar a conhecer a todos os intervenientes qual o nosso papel, embora a experiência nos levasse a adaptar a estratégia inicial, como será explicado mais detalhadamente no ponto V. 2.2.3.

Intensidade e extensividade – Em relação a este aspeto, no que diz respeito às entrevistas semiestruturadas e ao grupo focal, a postura da investigadora foi pouco imersiva e durou pouco tempo. Logo, tal como Marshall e Rossman (2011) indicam, foi mais importante encontrar formas de criar pontes e relações de confiança cruciais para se conseguirem dados de qualidade. Os maiores desafios foram sentidos na observação direta, já que o papel da investigadora não estava identificado para a maior parte dos intervenientes, impossibilitando, em alguns casos, criar estas relações de confiança e, assim, dificultando o acesso à informação, até porque em algumas circunstâncias não se percebia o que fazia ali uma pessoa a observar e a tirar notas.

Resumindo, se por um lado o perfil pessoal pode ter influenciado negativamente a investigação pelo caráter de subjetividade que lhe pode ter sido incutido, por outro lado, o envolvimento e paixão pelo tema foram fulcrais para despoletar o processo de investigação e, em fases mais difíceis, para manter a convicção de que o trabalho devia prosseguir. Esta proximidade com o mercado foi ainda relevante para o acesso aos dados, sobretudo no que diz respeito à facilitação em fazer observação direta em eventos profissionais.

Numa outra perspetiva, a investigadora, enquanto instrumento da pesquisa e com a sua proximidade ao fenómeno dos eventos profissionais, pode ter trazido uma maior subjetividade, devido aos desafios da separação do ‘eu’ profissional do ‘eu’ investigadora (Marshall e Rossman, 2011). Porém, houve uma forte preocupação no sentido de manter a necessária distância, sendo que os cuidados que tivemos a este nível se refletiram em alguns aspetos práticos.

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Numa primeira fase, a revisão bibliográfica, bem como as entrevistas exploratórias sobre o tópico e o campo de análise, obrigou-nos a uma distância em relação às ideias preconcebidas que tínhamos. Também na preparação do trabalho de campo houve uma preocupação em estabelecer procedimentos normalizados, dada a proximidade a alguns dos intervenientes no processo de investigação. Por exemplo, em alguns casos, as relações prévias que tínhamos com quem estava a ser observado ou inquirido eram marcadas por claras diferenças hierárquicas. O facto de terem sido estudantes, professores, patrões, colegas de trabalho, pessoas que já tinham sido coordenadas pela investigadora no âmbito de eventos profissionais, ou lhe tinham prestado serviços também neste contexto, pode ter levado a resultados que noutras situações isentas de relação interpessoal prévia teriam sido diferentes. A título de exemplo, no caso de estudantes, pode ter havido o desconforto de assumir que a inquirição/observação pretendia aferir a aquisição de conteúdos lecionados, quando, na verdade, o que se pretendia conhecer era, de facto, a sua perceção sobre as implicações do género no âmbito das suas ações nos eventos profissionais. Numa outra perspetiva, houve também algumas pessoas entrevistadas/observadas que mantêm relações pessoais, de amizade, com a investigadora, o que dificulta também o necessário distanciamento para uma recolha o mais independente possível.

As soluções que encontrámos para enfrentar estes desafios e criar uma “distância empática” (Patton, 2002, p. 49, cit. por Marshall e Rossman, 2011, p. 112), situaram-se sobretudo a dois níveis. Em primeiro lugar, houve uma preocupação em aplicar o princípio da diversidade sobre esta questão, no que diz respeito à constituição do universo de análise (como será detalhadamente apresentado no ponto V. 2.1.1). Tentámos, assim, que os resultados não ficassem demasiado marcados pelo tipo de relação de quem interveio com quem investiga. Num segundo nível, houve uma preocupação em normalizar os procedimentos para que o contexto fosse o mais próximo possível para cada uma das pessoas que enquadrou o estudo. São disso exemplo os procedimentos abaixo apresentados:

• email de enquadramento que apresentava a investigação e solicitava a entrevista (semiestruturada ou grupo focal);

• estrutura e perguntas dos guiões iguais para todos (embora houvesse diferentes guiões para diferentes tipos de intervenientes);

• forma de tratamento na preparação da saída igual para todos (incluindo o cartão de agradecimento, que não seria necessário no que diz respeito à disponibilização dos contactos da investigadora, sobretudo para as pessoas com as quais existem relacionamentos pessoais);

• tipo de linguagem e postura (embora o tratamento fosse diferente no caso das pessoas com quem já existem relações pessoais, houve o cuidado de mudar a postura,

15 a entoação, e até a linguagem assim que a entrevista começava, sem, no entanto, tornar o discurso demasiado construído);

• tentativa de manter o tempo previsto para cada entrevista, evitando, por exemplo, misturar conversas sobre outros assuntos no meio das entrevistas (tentámos que outros assuntos fossem tratados antes ou depois da entrevista, marcando claramente o momento de início e fim da entrevista com a gravação);

• no caso das entrevistas semiestruturadas, tentámos que o local escolhido fosse neutro no que diz respeito ao tipo de relacionamento interpessoal da investigadora com a pessoa que estava a ser entrevistada (por exemplo, tentámos não realizar entrevistas em espaços que sejam usuais no âmbito do relacionamento que temos com quem estava a fazer a entrevista).

Para a definição destas estratégias foi muito importante a revisão bibliográfica sobre a metodologia e, mais especificamente, os métodos a aplicar, sobretudo no sentido de evitar que estes fossem dilemas a tratar a posteriori (Marshall e Rossman, 2011).

Toda esta preocupação em relação ao papel da investigadora e aos seus impactos em termos de reflexividade foram bastante importantes, sem, no entanto, se perder aquele que é o principal foco da investigação, ou seja, o nosso tópico, a questão e os objetivos da investigação.