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Género – discussão de conceitos e enquadramento

Capítulo III. Eventos profissionais

III 2.6 Tendências futuras na área dos eventos

IV. 2 Género – discussão de conceitos e enquadramento

Se, à partida, estudar diferentes fenómenos pela perspetiva do género pode parecer fácil, sobretudo quando se olha para o género sob a ideia simplista de dividir e comparar a sociedade na perspetiva dicotómica de homens/mulheres, buscando as suas diferenças e similitudes (Hyde, 2007, 2014), a tarefa pode complicar-se quando exploramos os diferentes entendimentos que podem existir sobre o que é o género e como este se manifesta na sociedade atual. Compreender as questões relacionadas com o género requer ir para além do óbvio, para que consigamos reconsiderar aspetos que podem parecer evidentes e estabelecidos (Wharton, 2005).

Antes de mais, importa assim começar por discutir o que se entende por género. Este conceito, hoje proliferamente utilizado, com diferentes significados em diferentes contextos, ainda não está totalmente esclarecido, dada a complexidade que pode acarretar. A primeira referência que é importante desconstruir é a sua relação com o conceito de sexo. Muitas vezes ainda confundidos ou utilizados de forma indiferenciada, sexo e género não são a mesma coisa (Wharton, 2005; Rocha, 2008a; Alvesson e Billing, 2009; Bradley, 2013).

O termo sexo é usado, com frequência, para distinguir as pessoas ao nível biológico (Alvesson e Billing, 2009; Oakley, 2015). As diferenças a que se refere a categoria do sexo, as que distinguem homens e mulheres, e que são entendidas no seio da biologia como dimorfismo sexual, e incluem cromossomas, estruturas sexuais internas e externas, produção hormonal e aspetos fisiológicos (Wharton, 2005; Oakley, 2015).

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Para além da sua utilização numa dimensão biológica, ocorre também que alguns sociólogos têm usado termos como atribuição de sexo ou categoria de sexo, referindo-se aos processos pelos quais os significados sociais se ligam ao sexo biológico (Wharton, 2005). Estes processos podem, inclusive, começar antes do nascimento, a partir do momento em que há conhecimento do principal critério para a identificação do sexo, os genitais externos. Assim, nesta perspetiva, ainda antes de nascer, o processo de atribuição de determinadas características guiadas por características físicas é visto como uma questão simples (Wharton, 2005).

Excetuam-se neste contexto os casos em que não é fácil categorizar a pessoa, enquanto mulher ou homem, pelos critérios anteriormente referidos, os chamados casos intersexuais (Wharton, 2005). Estes casos, em que os genitais não permitem o desenvolvimento de feminilidades ou masculinidades, por fugirem à classificação binária, vêm colocar em causa o óbvio desenvolvimento da chamada ‘atitude natural’ (Hawkesworth, 1997 cit. por Wharton, 2005). De tal forma esta dicotomia natural tem sido posta em causa, que em vários países já existe legalmente o terceiro sexo, ou, em alguns casos, género não binário, sendo que existem diferenças no que diz respeito às condições que permitem aceder a esta classificação, nomeadamente biológicas ou de identidade de género. A Austrália foi pioneira neste reconhecimento legal, ao criar a categoria de sexo indeterminado, em 2003 (Holme, 2008), e, desde então, vários outros exemplos têm surgido, embora haja realidades bastante diferentes. Neste sentido, conseguimos compreender que mesmo as diferenças biológicas acarretam, muitas vezes ainda antes do nascimento, a associação de características que acabam por ser muito influenciadas pela sociedade e cultura em que esta pessoa vai nascer. Daí que alguns autores deem mais relevância à abordagem biossocial do sexo, que assume a construção do género como muito influenciada pelo sexo com que se nasce, dando este processo e práticas sociais sentido às características biológicas (Wharton, 2005). São indicadores, por exemplo, o corte de cabelo, o tipo de corpo, a voz, o vestuário ou comportamentos que permitem identificar a categoria de sexo das pessoas, já que, usualmente, pelo menos na maioria das culturas, as pessoas andam vestidas, ou seja, com os genitais tapados. Porém, mesmo este tipo de indicadores pode ser diferente consoante o período tempo, espaço e grupo social (Wharton, 2005; Bradley, 2013).

Por outro lado, mesmo quando se entende a diferença biológica entre homens e mulheres, há que ter em conta os contornos culturais que podem ser associados a estas categorias, ou seja, as ideias sobre biologia também elas são influenciadas pelo contexto social e cultural (Wharton, 2005; Alvesson e Billing, 2009), não sendo apenas uma questão da natureza diferenciar seres, mas construída histórica e culturalmente (Butler, 1990 cit. por Alvesson e

129 Billing, 2009). Um exemplo da influência cultural sobre a aceção biológica é a forma como se foram identificando diferenças no funcionamento do cérebro, atribuindo-se diferentes características a homens e mulheres, ideia que tem sido contestada em estudos recentes nas áreas da neurociência e da psicologia (Fine, 2011). Mais do que se identificarem cérebros femininos e masculinos (que inclusive deixam de fora outras possibilidades, como vimos acima), há hoje uma perceção de que o cérebro tem muito mais plasticidade do que se imaginava, sendo mutável, adaptável e influenciado por suposições culturais de género (Fine, 2011; Rippon, 2019). Ou seja, diferentes formas de tratamento entre rapazes e raparigas vão levar a que os seus cérebros se desenvolvam de forma diferente (Rippon, 2019). Podemos, então, concluir que os conceitos sexo e género podem ser mais vistos como sobrepostos do que distintos (Alvesson e Billing, 2009), ou seja, construídos simultânea e inseparavelmente (Wharton, 2005).

Deste modo, se os significados de género têm as suas raízes no mundo psicossocial e cultural (Oakley, 2015), os processos e práticas culturais serão a chave para se compreender o próprio conceito de género, quer ao nível individual quer ao nível da vida em grupo (Wharton, 2005; Alvesson e Billing, 2009). Será, então, importante analisar significados, valores e atitudes que, de uma forma complexa, podem ser abordados sob enquadramentos e perspetivas diferentes, como analisaremos no ponto IV 3.

O género, visto como a distinção padronizada, social e culturalmente produzida (Bradley, 2013), para distinguir o masculino e o feminino, é essencial para se compreender as pessoas, quer ao nível individual quer no que respeita ao seu enquadramento na vida em sociedade (Wharton, 2005), nomeadamente no seu contexto de trabalho, ajudando a compreender onde e como encontram encorajamento, ceticismo, apoio e sofrimento no contexto profissional (Alvesson e Billing, 2009). Dado o exposto, o termo género é utlizado, no âmbito da presente investigação, incorporando os aspetos sociais e culturais (Alvesson e Billing, 2009), e não apenas como critério de identificação biológica.

Uma outra perspetiva que importa explicitar neste enquadramento é a questão dos estudos de género versus os estudos feministas. Um aspeto que os distingue é o facto de os primeiros não se preocuparem apenas com o estudo das mulheres, mas também dos homens e das masculinidades, das comunidades LGBTI e outras configurações de identidade, havendo uma maior abertura no tratamento dos temas, e, ainda, uma consciência de que entre as mulheres, ou em qualquer outro grupo a estudar, pode existir diversidade, não sendo estas um grupo homogéneo. Assim, os estudos de género são mais abrangentes e implicam uma atitude mais aberta (Alvesson e Billing, 2009). Por outro lado, os estudos feministas tendem a ser mais focados nas desigualdades que colocam as mulheres num papel de subordinação, ou seja, na

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posição mais frágil, enquanto os estudos de género tendem a compreender as dinâmicas sem o pressuposto de que o grupo das mulheres é sempre o mais fragilizado, sobretudo em termos de relações sociais.

Na linha de Alvesson e Billing (2009), a presente investigação situa-se no campo dos estudos de género e não nos estudos feministas, no sentido em que consideramos que qualquer investigação deve ser mais do que ativismo político. Mesmo considerando que a consciência política é importante no contexto da reflexividade, para nós, é importante que este trabalho, e o consequente conhecimento que dele possa advir, não fique subordinado ao serviço de determinadas causas, devendo manter-se aberta a possibilidade de se encontrar qualquer configuração nas relações que se estabelecem entre o universo de análise em apreço, sobretudo tendo em conta que esta é uma investigação de exploração.

Segundo Alvesson e Billing (2009), os estudos de género têm vindo a centrar-se em três grandes pressupostos: i) o género é algo central e relevante de compreender no seio das relações sociais, instituições e processos; ii) as relações de género são caracterizadas por padrões de dominação/subordinação, desigualdades e oposições; iii) as relações de género são vistas como construções sociais. Neste sentido, o género pode ser o efeito de definições sociais, internalizações e reproduções do sentido que se dá ao que é ser homem ou mulher, tornando o estudo do processo de construção do género muito mais interessante do que o género per se, tendo em conta que em diferentes contextos estas construções podem ser diferentes (Alvesson e Billing, 2009). O género é aqui entendido como processo, experiência vivida, na forma como as pessoas se relacionam com os outros e como o género nos influencia enquanto indivíduos (Wharton, 2005; Bradley, 2013).

Bradley (2013) acrescenta ainda um outro pressuposto nos estudos de género, que nos parece merecer especial referência: mesmo o que é pessoal acaba por ser político, ou seja, mesmo o que possa ser considerado do foro privado (como o trabalho doméstico, por exemplo) é importante na agenda política. A autora usa este pressuposto para mostrar que as relações políticas de género, disparidades de poder entre mulheres e homens, afetam todas as pessoas em todos os aspetos das suas vidas, tenham ou não consciência disso. Vemos que, nos últimos anos, tem havido um aumento de consciência em relação a estes aspetos que parecem ser apenas do foro privado (Bradley, 2013), tendo esta sido levada a um extremo ainda maior a partir do movimento #Mee Too.

Por último, a autora relembra que o conceito de género é muito difuso, por se relacionar com todos os aspetos da atividade humana, afetando cada área da vida pessoal. Identificar-se como mulher ou homem vai afetar a aparência, como se fala, como se come e bebe, o que se veste, as atividades de lazer, a profissão, como se usa o tempo e como as outras pessoas se

131 podem relacionar connosco, isto é, o género é omnipresente (Beck 1992 cit. por Bradley, 2013). Decorrente deste aspeto, todas as organizações que fazem parte da sociedade (casamento, famílias, escolas, locais de trabalho, clubes, bares, organizações políticas, entre outras) são, também elas, influenciadas pelo género (Bradley, 2013).

Para melhor se compreender como o conceito pode ser entendido e estudado, analisaremos, no próximo subcapítulo, diferentes perspetivas de abordagem nos estudos de género, as quais poderão influenciar a forma como se investigam as diferentes dimensões do género, em diferentes contextos.