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2 A FORMAÇÃO DO LEITOR: DO ENSINO FUNDA MENTAL AO ENSINO MÉDIO

Aplicado aos letramentos escolares, o conceito de literatura é tomado em seu sen- tido restrito, conforme já afi rmamos neste texto. Ao se tratar das orientações cur- riculares para o ensino da literatura, consideram-se, portanto, em primeiro plano, as criações poéticas, dramáticas e fi ccionais da cultura letrada. Tal primazia visa a garantir a democratização de uma esfera de produção cultural pouco ou menos acessível aos leitores, sobretudo da escola pública, fora do ambiente escolar. Res- ponsabilidade da escola que, nos últimos trinta anos, tem sido apontada com algu- ma relevância nos estudos sobre o ensino da Literatura na educação básica.

... a Literatura como conteúdo curricular ganha contornos distintos conforme o nível de escolaridade dos

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CONHECIMENTOS DE LITERATURA

Confi gurada como bem simbólico de que se deve apropriar, a Literatura como conteúdo curricular ganha contornos distintos conforme o nível de es- colaridade dos leitores em formação. As diferenças decorrem de vários fatores ligados não somente à produção literária e à circulação de livros que orientam os modos de apropriação dos leitores, mas também à identidade do segmento da escolaridade construída historicamente e seus objetivos de formação.

Quando se focaliza a leitura literária dentro do ensino da Literatura no ensino médio, evidencia-se a questão da passagem de um nível de escolaridade a outro, muitas vezes não mencionada. O ensino da Literatura no ensino fundamental, e aqui nos interessa de perto o segundo segmento dessa etapa da escolaridade (da 5ª à 8ª série), caracteriza-se por uma formação menos sistemática e mais aberta do ponto de vista das escolhas, na qual se misturam livros que indistintamente denominamos “literatura infanto-juvenil” a outros que fazem parte da literatura dita “canônica”, legitimada pela tradição escolar, infl exão que, quando acontece, se dá sobretudo nos últimos anos desse segmento (7ª ou 8ª série).

Observando as escolhas dos jovens fora do ambiente escolar, podemos cons- tatar uma desordem própria da construção do repertório de leitura dos ado- lescentes. Estudos recentes apontam as práticas de leitura dos jovens fundadas numa recusa dos cânones da literatura, tornando-se experiências livres de siste- mas de valores ou de controles externos. Essas leituras, por se darem de forma desordenada e quase aleatória (PETRUCCI, 1999, p. 222), podem ser chamadas de escolhas anárquicas.

A ausência de referências sobre o campo da literatura e a pouca experiência de leitura – não só de textos literários como de textos que falem da Literatu- ra3 – fazem com que os leitores se deixem orientar, sobretudo, por seus desejos

imediatos, que surgem com a velocidade de um olhar sobre um título sugestivo ou sobre uma capa atraente. Encontram-se na base desses desejos outros pro- dutos da vida social e cultural, numa confl uência de discursos que se misturam. Sendo assim, a produção, a recepção e a circulação da Literatura por quaisquer que sejam os públicos-leitores, crianças, jovens ou adultos, não mais podem ser estudadas como fenômenos isolados das outras produções culturais, pois, caso contrário, corre-se o risco de apresentar uma visão distorcida das condições que possibilitam a apropriação desses bens.

Se fora da escola ocorrem as escolhas anárquicas (já que o jovem escolhe a partir de uma capa, do que se lê entre seus amigos, do número de páginas, etc.), dentro dela

3 São raras as publicações culturais, impressas ou eletrônicas, que se dirigem especifi camente ao público jovem ou adoles-

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o procedimento é muito diferente: as escolhas na escola contam com aspectos siste- máticos que as orientam, mesmo em se tratando daqueles leitores mais vorazes.

A operação de fi ltragem inicia-se antes de os livros chegarem às escolas, por es- tarem elas inseridas em contextos socioculturais para os quais o mercado editorial (aqui se incluem as formas de circulação e distribuição de livros) funciona dife- rentemente de acordo com as variações sócio-econômicas de cada comunidade de leitores.4 Identifi cam-se fi ltros seletivos que variam segundo o letramento literário

das comunidades, antes mesmo que os livros tomem seu lugar nas estantes. Geralmente esses livros são obras que já passaram pelo crivo de leitores ex- perientes, como os das instâncias críticas responsáveis pela organização dos catá- logos das editoras, ou pelas premiações, quando se tem acesso a seus resultados. Os percursos dos fi ltros passam também por estratégias das editoras no contato direto com os possíveis mediadores, que se faz no exercício diário de seus divul- gadores, em peregrinação pelas escolas da cidade. Ainda antes de chegarem aos leitores alunos, em algumas instituições, os livros passam pelo crivo mais apura- do de bibliotecários e professores, para, só depois de avaliados, serem repassados aos alunos.

Portanto, quando se coloca a questão das escolhas e das preferências dos jo- vens leitores na escola, não se pode omitir a infl uência de instâncias legitimadas e autorizadas, que, contando com seus leitores consultores para assuntos da ado- lescência e da infância, já defi niram o que deve ser bom para jovens e crianças, em sintonia com resultados de concursos, avaliações de especialistas, divulgação na imprensa, entre outros setores que se integram ao movimento do circuito da lei- tura na sociedade. Também não se pode esquecer que algumas dessas instâncias legítimas e autorizadas podem estar a serviço de um rentável mercado editorial. Enfi m, todo esse aparato, para o bem e para o mal, é colocado em funcionamen- to, sobretudo por se tratar de aplicação de recursos orientados para a compra de livros, responsável pela composição de acervos de bibliotecas.

É evidente, então, que se coloca não só o problema da Literatura, mas o da lei- tura, em práticas reais de letramento literário, menos submetidas, como se sabe, a restrições de valor do ponto de vista das instituições literária e escolar. Parte-se, assim, do princípio de que os jovens, no ensino fundamental, lêem Literatura à sua maneira e de acordo com as possibilidades que lhes são oferecidas.

Portanto, embora haja uma relativa preocupação, sobretudo nas séries fi -

4 Graça Paulino aborda a disparidade geográfi ca de circulação de livros de literatura que se restringem “às alamedas da

cidade, evitando perigosas vielas sem recursos”, importante questão, segundo a autora, a ser recuperada pelos estudos que tratam da democratização do letramento literário (PAULINO, Graça. Letramento literário: por vielas e alamedas. Revista da Faced, n.º 5., Salvador, Faced/ UFBA, 2001, p. 124).

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nais do ensino fundamental, de inclusão do repertório de obras consagradas e consideradas mais difíceis, as práticas escolares de leitura literária têm mostrado que os alunos do ensino fundamental iniciam sua formação pela literatura in- fanto-juvenil, em propostas fi ccionais nas quais prevalecem modelos de ação e de aventuras. Os livros para jovens dessa vertente editorial representam, como se sabe, grande fatia do mercado brasileiro, movimentada sobretudo pelas deman- das escolares.

Constata-se, de maneira geral, na passagem do ensino fundamental para o ensino médio, um declínio da experiência de leitura de textos fi ccionais, seja de livros da Literatura infanto-juvenil, seja de alguns poucos autores representati- vos da Literatura brasileira selecionados, que aos poucos cede lugar à história da Literatura e seus estilos. Percebe-se que a Literatura assim focalizada – o que se verifi ca sobretudo em grande parte dos manuais didáticos do ensino médio – prescinde da experiência plena de leitura do texto literário pelo leitor. No lugar dessa experiência estética, ocorre a fragmentação de trechos de obras ou poemas isolados, considerados exemplares de determinados estilos, prática que se revela um dos mais graves problemas ainda hoje recorrentes.

Concluído o ensino fundamental, supõe-se que os alunos que ingressam no ensino médio já estejam preparados para a leitura de textos mais complexos da cultura literária, que poderão ser trabalhados lado a lado com outras modalida- des com as quais estão mais familiarizados, como o hip-hop, as letras de músicas, os quadrinhos, o cordel, entre outras relacionadas ao contexto cultural menos ou mais urbano em que tais gêneros se produzem na sociedade.

As práticas escolares de leitura desses textos levam a crer que as modalidades mencionadas anteriormente não constituem de fato um problema na esfera da recepção, visto que há uma grande expectativa entre os alunos quanto à sua lei- tura, corroborada pela ampla difusão na mídia e no contexto social circundante. O problema quanto à apropriação literária de tais produções culturais se lo- caliza, na maioria das vezes, na aceitação irrestrita de tudo, sem que se discuta seu valor estético.

É necessário apontar ainda que os impasses peculiares ao ensino médio li- gam-se mais signifi cativamente aos textos que se encontram mais afastados no tempo e/ou que possuem uma construção de linguagem mais elaborada do pon- to de vista formal, próprios da cultura letrada que se quer e se deve democratizar na escola. Esses impasses podem resumir-se a três tendências predominantes, que se confi rmam nas práticas escolares de leitura da Literatura como deslocamentos ou fuga do contato direto do leitor com o texto literário:

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a) substituição da Literatura difícil por uma Literatura considerada mais digerível;

b) simplifi cação da aprendizagem literária a um conjunto de informações exter- nas às obras e aos textos;

c) substituição dos textos originais por simulacros, tais como paráfrases ou resu- mos (OSAKABE; FREDERICO, 2004, p. 62-63).

Esse quadro geral de deslocamentos só será revertido se se recuperar a di- mensão formativa do leitor, em processo iniciado no ensino fundamental, que, no ensino médio, se perde em objetivos pragmáticos, formulados, sobretudo, nos manuais didáticos, que, mais para o mal que para o bem, vêm tradicionalmente cumprindo o papel de referência curricular para esse nível da escolaridade. Acre- ditamos que os manuais didáticos poderão, a médio prazo, apoiar mais satisfa- toriamente a formação do leitor da Literatura rumo à sua autonomia.5 Se isso

ocorrer, os livros didáticos deverão manifestar sua própria insufi ciência como material propício para a formação plena de

leitores autônomos da Literatura, ao incluir, nas suas propostas didáticas, a insubstituível leitura de livros.

A lacuna no contato direto com a Litera- tura percebida no ensino médio leva a consi- derações sobre as escolhas, já que os três anos da escolaridade e a carga horária da discipli- na demandam uma seleção que permita uma formação o mais signifi cativa possível para os alunos. O livro didático, como lembramos anteriormente, pode constituir elemento de

apoio para que se proceda ao processo de escolha das obras que serão lidas, mas de forma alguma poderá ser o único. Os professores devem contar com outras estratégias orientadoras dos procedimentos, guiando-se, por exemplo, por sua

Acreditamos que os manuais didáticos

poderão, a médio prazo, apoiar mais satisfatoriamente a formação do leitor da Literatura rumo à sua

autonomia.

5 O Programa Nacional do Livro do Ensino Médio. (PNLEM), implementado como programa piloto a partir de 2005,

terá, com certeza, um impacto decisivo no redimensionamento dos objetivos do ensino da Literatura nessa fase da escola- ridade, o que já se observa como resultado da política de avaliação do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático, que tem por objetivo a distribuição de livros didáticos para alunos do ensino fundamental, e por isso desenvolve, desde 1996, um processo de avaliação pedagógica que assegure a qualidade dos livros).

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própria formação como leitor de obras de referência das literaturas em língua portuguesa, selecionando aquelas cuja leitura deseja partilhar com os alunos. As- sim, pode-se recuperar, na sala de aula, aquela coerência, de que fala Antonio Cândido (1995, p. 246), que se apresenta na construção literária poética, fi ccional ou dramática, em seus diversos gêneros, responsável pela ordenação do caos. A leitura integral da obra literária – obra que se constrói como superação do caos – passaria, então, a atingir o caráter humanizador que antes os deslocamentos que a evitavam não permitiam atingir. Colocada a necessidade, fi ca-nos uma questão de natureza complexa, pois pressupõe ordenação e valores: que livros escolher?