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4 POSSIBILIDADES DE MEDIAÇÃO

4.2 O professor e o tempo

Os professores, pressionados por programas panorâmicos, sentem-se obrigados a cobrir toda a linha do tempo (assim como se sentem pressionados a cobrir to- dos os pontos de gramática), fazendo uso da história da Literatura, ainda que isso não sirva para nada: aulas “chatas”, alunos e professores desmotivados, aprendi- zagem que não corresponde ao que em princípio foi ensinado.

Podem-se destacar alguns pontos positivos e simultaneamente negativos da adoção da história da Literatura no ensino tal qual se tem cristalizado: 1. resolve o problema da seleção de obras, pois constitui um corpus defi nido e nacional- mente instituído, mas elimina as peculiaridades regionais; 2. resolve o problema da falta de preparação e de conhecimento literário que possa existir entre os pro- fessores, já que esses lidam com a reprodução de uma crítica institucionalizada, porém esse procedimento impede o professor de ser ele próprio um leitor crítico e estabelecer suas próprias hipóteses de leitura para abraçar as investidas mais livres de seus alunos na leitura; 3. permite cobrir um tempo extenso, numa linha que vai do século XII ao século XXI, destacando momentos reconhecidos da tra- dição literária, porém tal extensão torna-se matéria para simplesmente decorar, e características barrocas, românticas, naturalistas, etc. confundem-se frenetica- mente, sem nada ensinar; 4. permite tomar conhecimento de um grande número de títulos e autores, mas, em virtude da quantidade e variedade, a leitura do livro é inviabilizada e entendida como secundária; e 5. permite ao aluno o reconheci- mento de características comuns a um grande número de obras, porém obriga a obra a se ajustar às peculiaridades da crítica e não o contrário.

Quando propomos a centralidade da obra literária, não estamos descartando a importância do contexto histórico-social e cultural em que ela foi produzida, ou as particularidades de quem a produziu (até porque tudo isso faz parte da própria tes- situra da linguagem), mas apenas tomando – para o ensino da Literatura – o cami- nho inverso: o estudo das condições de produção estaria subordinado à apreensão

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CONHECIMENTOS DE LITERATURA

do discurso literário. Estamos, assim, privilegiando o contato direto com a obra, a experiência literária, e considerando a história da Literatura uma espécie de apro- fundamento do estudo literário, devendo, pois, fi car reservado para a última etapa do ensino médio ou para os que pretendem continuar os estudos especializados.11

Conhecer a tradição literária, sim, mas decorar estilos de época, não. Auto- res de um mesmo período histórico escrevem dentro da convenção da época, mas muitos − os melhores, talvez − se livram dela (muitas vezes uma camisa- de-força), escrevendo obras inteiramente transgressivas (o romantismo é rico em exemplos dessa natureza), e mesmo autoparódicas. Ora, a história literária que chega à escola ignora as trans- gressões, ou então lida com elas como se fossem exceções: tanto a convenção quanto a transgressão são aspectos da produção da época, e não há por que excluir inteiramente uma delas, nem por que obrigar as obras literárias a se ajustarem às características temáticas e formais que determinada história li- terária perpetrou. Tampouco se pode adotar um cânone asséptico do ponto de vista moral (sabemos que determinadas obras são excluídas do repertório es- colar em virtude de sua moral contrária a valores de determinado grupo, da esco- la, da família...), buscando responder à exigência de uma certa visão pedagógica ofi cial. Antonio Cândido, em texto de 1972, afi rma:

Dado que a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artifi cial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe pa- rece adaptado aos seus fi ns, enfrentando ainda assim os mais curiosos paradoxos – pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem freqüentemente o que as convenções desejariam banir. Aliás, essa espécie

... privilegiando o contato direto com a obra, a experiência literária, e considerando a história da Literatura uma espécie

de aprofundamento do estudo literário ...

11 Há aqueles mais radicais, como José Hildebrando Dacanal, que, já em 1980, com a postura provocativa que o carac-

teriza, sugeria: “Eliminar estes conceitos e categorias [grupo, escola e estilo] das aulas, das provas, do vestibular e dos exames supletivos; [...] jogar o texto no contexto histórico, diretamente, quando o nível dos alunos assim o permitir. Na Universidade, por exemplo; [...] deixar as discussões bizantinas sobre periodização, conceitos e categorias para os cursos de pós-graduação, onde os alunos têm tempo a perder...”. DACANAL, J.osé H.ildebrando. Vade retro, periodização!. Era uma vez a literatura... (Porto Alegre: Ed. da Universidade/ UFRGS, 1995, p. 77 ).

12 “A literatura e a formação do homem”, conferência pronunciada na XXIV Reunião Anual da Sociedade Brasileira para

o Progresso da Ciência (SBPC), em São Paulo, foi publicada pela primeira vez em Ciência e Cultura, v. 24, n. 9, 1972. Há também uma publicação mais recente em Remate de Males,: Revista do Departamento de Teoria Literária da Unicamp, Campinas: n.º especial, 1999.

78 ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO

de inevitável contrabando é um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe. (CÂNDIDO, 1972, p. 805).12

É urgente que o professor, ele próprio, se abra para as potencialidades da literatura e faça um esforço para se livrar dos preconceitos didáticos que o obri- gam a cobrir um conteúdo mensurável e visível, como são as escolas literárias, em prejuízo de um conteúdo menos escolarizado e mais oculto, que é a leitura

vagarosa da Literatura, pensando-se sobretudo no romance, talvez o gênero mais

popular dentre os literários.

No caso da Literatura, o tempo é crucial. A leitura de um romance, por exem- plo, requer planejamento do professor para orientar a leitura e tempo para o alu- no ler o livro. Trazer para a sala trechos da obra (a partir dos quais seja possível recuperar aspectos signifi cativos da obra que está sendo lida) e a esses dedicar uma ou mais aulas não é perder tempo, pelo contrário, é imprimir à escola um outro ritmo, diferente daquele da cultura de massa, frenético e efêmero, opondo a este o ritmo mais lento do devaneio e da refl exão.13

Textos curtos, com densidade poética, são instrumentos poderosos para sensi- bilizar o aluno, ainda que muitos professores observem a resistência, sobretudo do jovem do sexo masculino, à fruição do poema, considerado por este “coisa de mulher”. No entanto, todo professor observa também o prazer na leitura em voz alta, na entonação, na concretude da voz (o prazer do signifi cante, diz Barthes, em O prazer do texto). Oferecer ao aluno a oportunidade de descobrir o sen- tido por meio da apreensão de diferentes níveis e camadas do poema (lexical, sonoro, sintático), em diversas e diferentes leituras do mesmo poema, requer dedicação de tempo a essa atividade e percepção de uma outra lógica analítico- interpretativa que não aquela de um academicismo estereotipado, que acredita que ensinar poesia é ensinar as técnicas de contar sílabas e classifi car versos e rimas.14 Contos e crônicas também devem ser cuidadosamente selecionados para se não desperdiçar o tempo precioso a eles dedicado em sala de aula. Por serem mais curtos que novelas e romances, devem motivar o leitor pelo modo como apresentam o assunto, exigindo, como o poema, um aprofundamento que leve o

13 Alfredo Bosi, em Plural, mas não caótico (in: BOSI, A.lfredo (Org.). Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo:

Ática, 1987), analisa os diferentes ritmos das diferentes culturas que convivem globalmente.

14 Mais uma vez recorremos a Antonio Cândido, para retomar as lições contidas no seu Estudo analítico do poema (pu-

blicado em edição caseira pelos alunos da FFLCH da USP, em 1993), no qual se destacam três etapas efi cazes para uma penetração no gênero: comentário, análise e interpretação. Trata-se de um opúsculo destinado ao ensino superior, mas perfeitamente adaptável ao ensino médio.

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CONHECIMENTOS DE LITERATURA

leitor à percepção de suas camadas composicionais. São gêneros propícios a uma sensibilização inicial do aluno.

A escola não precisa cobrir todos os estilos literários. O professor pode, por exemplo, recortar na história autores e obras que ou responderam com mestria à convenção ou estabeleceram rupturas; ambas podem oferecer um conhecimento das mentalidades e das questões da

época, assim como propiciar prazer estético. A partir desse recorte, ele pode planejar atividades de estudo das obras que devem ser conduzidas segundo os seus recursos crítico-te- óricos, amparado pelo instrumental que acumulou ao longo de sua for- mação e também pelas leituras que segue fazendo a título de formação contínua.

Poemas, contos, crônicas, dramas, são gêneros que, assim como os romances, têm suas próprias exigências de fruição e estudo. Por exemplo, analisar aspectos técnicos dos poemas sem antes lê-los mais de uma vez, silenciosamente, em voz alta, sem antes sentir com o corpo sua força sugestiva, sem antes comentá-los, perceber e entender as imagens, as relações entre som e sentido, entre os elemen- tos da superfície textual, é obrigar a um afastamento deletério dessa arte.

Pelo exposto, evidencia-se um problema de currículo: se quisermos que o alu- no leia e considerarmos que esse é o meio mais efi ciente para ele conseguir o saber que a escola almeja, então é preciso mudar o currículo, retirar dele o que é excessivo e não essencial. Torná-lo realmente signifi cativo para alunos e professores.