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1 O PAPEL EDUCACIONAL DO ENSINO DE LÍNGUAS ES TRANGEIRAS NA ESCOLA E A NOÇÃO DE CIDADANIA

Nos PCNEM, encontram-se observações sobre o papel educacional do ensino de Línguas Estrangeiras. Mesmo assim, pesquisas de campo sobre o ensino de idio- mas nas escolas regulares (de ensino fundamental e médio) apontam ser oportu- na a retomada da questão.

Salientamos duas das indicações informadas nos levantamentos para re- fl exão. Uma primeira refere-se à freqüência de depoimentos de pesquisados e citações de pesquisadores que apontam resultados desiguais entre o ensino de inglês na escola e nos institutos de idiomas. Vejamos alguns desses depoimentos e citações:

Pesquisador 1: E o que te levou a buscar um curso de idiomas fora da escola? Aluno 1: Ah, o conhecimento, né, de outra língua, e também a necessidade,

né, de aprender um outro idioma, principalmente o inglês, que é uma língua universal.

Pesquisador 1: E você pretende procurar um curso de inglês fora da escola? Aluno 2: Pretendo, viu? Pretendo porque o mercado de trabalho exige muito.2

[...] o sistema educacional brasileiro coloca no mercado de trabalho profes- sores despreparados e muitos recorrem aos cursos de especialização em bus-

1 Pesquisa realizada por Quirino de Souza para a dissertação de mestrado O professor de inglês da escola pública: investiga-

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ca de uma regraduação, o que naturalmente não encontram. Esse contexto reforça, dia-a-dia, o preconceito de que só se aprende língua estrangeira em cursos livres. (DUTRA E MELLO, 2004, p. 37).

Uma segunda refere-se a uma implementação diferenciada (UECHI, 2005) adotada por algumas escolas regulares para o ensino de inglês. Essas instituições abrem uma estrutura paralela em forma de centro de línguas para seus próprios alunos, com organização semelhante aos dos cursos de idiomas: turmas menores e formadas segundo o nível lingüístico identifi cado por testes de conhecimento do idioma estrangeiro; horários fora da grade escolar e aulas ministradas pelo professor da escola. Uma outra versão desse centro surge em forma de parceria com institutos de idiomas: o mesmo se aplica à organização das turmas e horá- rios; os professores, porém, são selecionados, treinados e acompanhados pelo instituto conveniado; este é o responsável pela qualidade pedagógica da imple- mentação.

Embora muitas interpretações possam emergir dessas duas informações, de- preende-se que as falas dos alunos e dos pesquisadores defendem que o apren- dizado de uma língua estrangeira se concretiza em cursos de idiomas, levando- nos a inferir que não há essa expectativa quanto à escola regular. Ressalvando as possibilidades interpretativas das mencionadas falas, entendemos que os quadros descritos por meio delas expressam o desejo de que as escolas disponham de con- dições mais favoráveis para o ensino de idiomas ou informam que os alunos não encontram motivação para essa aprendizagem na escola regular e que talvez esses fatores justifi quem que os objetivos não sejam alcançados no ensino formal. Es- sas indicações levam-nos a reforçar a discussão sobre os objetivos – ou o confl ito de objetivos – do ensino de Línguas Estrangeiras no nível médio.

O “confl ito” de objetivos

Depreende-se da discussão sobre os objetivos do ensino de Línguas Estrangeiras na educação básica que o objetivo lingüístico é lembrado com maior freqüência. Identifi camos nas falas e na citação apresentadas que essas se concentram no “sucesso” ou no “fracasso” do ensino do idioma estrangeiro por si só (fato que conduz à procura pela solução extra-sala de aula convencional, conforme men- cionado). A pergunta que então emerge é se a priorização do objetivo lingüístico desse ensino esconde uma certa “confusão” na compreensão sobre os objetivos do ensino de inglês na escola regular e se essa “confusão” leva a indefi nições e a desconhecimentos sobre a relevância desse ensino na educação básica.

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Esse raciocínio pode ser verifi cado por meio de investigações de campo, como as de Paiva (2005) sobre a memória de professores a respeito de seu aprendizado da língua inglesa. A autora destaca, dentre várias questões, o desconhecimento dos alunos sobre a necessidade do aprendizado de um idioma estrangeiro para a vida deles e, conseqüentemente, o desconhecimento da razão para estudar essa disciplina na escola:

Quanto às memórias recentes, há um lamento de que os alunos de escola públi- ca não sabem a importância do inglês na vida deles e menção aos sentimentos negativos que a disciplina e, por conseqüência, o professor despertam nos apren- dizes. (PAIVA, 2005, p. 9).

Verifi ca-se que, em muitos casos, há falta de clareza sobre o fato de que os objetivos do ensino de idiomas em escola regular são diferentes dos objetivos dos cursos de idiomas. Trata-se de instituições com fi nalidades diferenciadas. Ob- serva-se a citada falta de clareza quando a

escola regular tende a concentrar-se no en- sino apenas lingüístico ou instrumental da Língua Estrangeira (desconsiderando ou- tros objetivos, como os educacionais e os culturais). Esse foco retrata uma concep- ção de educação que concentra mais es- forços na disciplina/conteúdo que propõe ensinar (no caso, um idioma, como se esse

pudesse ser aprendido isoladamente de seus valores sociais, culturais, políticos e ideológicos) do que nos aprendizes e na formação desses. A concentração em tais objetivos pode gerar indefi nições (e comparações) sobre o que caracteriza o aprendizado dessa disciplina no currículo escolar e sobre a justifi cativa desse no referido contexto.

As propostas epistemológicas (de produção de conhecimento) que se deli- neiam de maneira mais compatível com as necessidades da sociedade atual apon- tam para um trabalho educacional em que as disciplinas do currículo escolar se tornam meios. Com essas disciplinas, busca-se a formação de indivíduos, o que inclui o desenvolvimento de consciência social, criatividade, mente aberta para conhecimentos novos, enfi m, uma reforma na maneira de pensar e ver o mundo. Para isso, estimula-se um ensino que se preocupe com “uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao mesmo tem- po, um modo de pensar aberto e livre”, como nos dizeres de Morin (2000, p. 11).

... os objetivos do ensino de idiomas em escola regular são diferentes dos

objetivos dos cursos de idiomas.

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Quando retomamos a questão educacional que sempre tem sido enfatizada nos documentos ofi ciais e reconhecida como necessária por tantos, estamos inter- pretando-a de acordo com essa visão de educação e de formação de educandos (indivíduos, cidadãos).

Reiteramos, portanto, que a disciplina Línguas Estrangeiras na escola visa a ensinar um idioma estrangeiro e, ao mesmo tempo, cumprir outros compro- missos com os educandos, como, por exemplo, contribuir para a formação de indivíduos como parte de suas preocupações educacionais.

Trocando em miúdos: como conciliar o ensino de Línguas Estrangeiras e educação?

Em tempo, essa pergunta pode passar a impressão de que o ensino de Línguas Estrangeiras voltado somente para o aspecto lingüístico do idioma não educa. Ele educa, mas contribui para uma outra formação, aquela que entende que o papel da escola é suprir esse indivíduo com conteúdo, preenchendo-o com co- nhecimentos até que ele seja um “ser completo e formado”. Quando falamos so- bre o aspecto educacional do ensino de Línguas Estrangeiras, referimo-nos, por exemplo, à compreensão do conceito de cidadania, enfatizando-o. Esse é, aliás, um valor social a ser desenvolvido nas várias disciplinas escolares e não apenas no estudo das Línguas Estrangeiras.

De acordo com a visão tradicional, falar em cidadania signifi ca falar em pátria, civismo, deveres cívicos, como nas antigas aulas de Educação Cívica. Estas, freqüentemente, pretendiam disseminar um sentimento de patriotismo e de nacionalismo. Mas se por um lado houve o estímulo a esse sentimento e, de certa maneira, cumprimento da fi nalidade dessa disciplina, por outro hou- ve uma ação pedagógico-ideológica que se confundiu com o que veio a ser denominado “inculcação” ou “doutrinação”. Nas propostas atuais, essa visão da cidadania como algo homogêneo se modifi cou. Admite-se que o conceito é muito amplo e heterogêneo, mas entende-se que “ser cidadão” envolve a com- preensão sobre que posição/lugar uma pessoa (o aluno, o cidadão) ocupa na sociedade. Ou seja, de que lugar ele fala na sociedade? Por que essa é a sua po- sição? Como veio parar ali? Ele quer estar nela? Quer mudá-la? Quer sair dela? Essa posição o inclui ou o exclui de quê? Nessa perspectiva, no que compete ao ensino de idiomas, a disciplina Línguas Estrangeiras pode incluir o desenvolvi- mento da cidadania.

A questão didático-pedagógica que focalizamos remete à realização desse processo de conscientização. Isto é, como desenvolver o senso de cidadania em aula de Línguas Estrangeiras? Como trazer para Línguas Estrangeiras questões que podem desenvolver esse senso de cidadania?

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Vale lembrar aqui que há muito tempo (VAN EK; TRIM, 1984) se sabe que a contribuição de uma aprendizagem de Línguas Estrangeiras, além de qualquer instrumentação lingüística, está em:

estender o horizonte de comunicação do aprendiz para além de sua comu- nidade lingüística restrita própria, ou seja, fazer com que ele entenda que há uma heterogeneidade no uso de qualquer linguagem, heterogeneidade esta contextual, social, cultural e histórica. Com isso, é importante fazer com que o aluno entenda que, em determinados contextos (formais, informais, ofi - ciais, religiosos, orais, escritos, etc.), em determinados momentos históricos (no passado longínquo, poucos anos atrás, no presente), em outras comu- nidades (em seu próprio bairro, em sua própria cidade, em seu país, como em outros países), pessoas pertencentes a grupos diferentes em contextos diferentes comunicam-se de formas variadas e diferentes;

fazer com que o aprendiz entenda, com isso, que há diversas maneiras de organizar, categorizar e expressar a experiência humana e de realizar intera- ções sociais por meio da linguagem. (Vale lembrar aqui que essas diferenças de linguagem não são individuais nem aleatórias, e sim sociais e contextu- almente determinadas; que não são fi xas e estáveis, e podem mudar com o passar do tempo.);

aguçar, assim, o nível de sensibilidade lingüística do aprendiz quanto às ca- racterísticas das Línguas Estrangeiras em relação à sua língua materna e em relação aos usos variados de uma língua na comunicação cotidiana;

desenvolver, com isso, a confi ança do aprendiz, por meio de experiências bem-sucedidas no uso de uma língua estrangeira, enfrentar os desafi os coti- dianos e sociais de viver, adaptando-se, conforme necessário, a usos diversos da linguagem em ambientes diversos (sejam esses em sua própria comunida- de, cidade, estado, país ou fora desses).

Assim, o valor educacional da aprendizagem de uma língua estrangeira vai muito além de meramente capacitar o aprendiz a usar uma determinada língua estrangeira para fi ns comunicativos.

Além disso, conforme sugestões feitas em outros parâmetros curriculares, os temas transversais podem ser de grande valia. As atividades de leitura (mas não apenas essas) e concepções como letramento, multiletramento, multimodalidade aplicadas ao ensino podem contribuir igualmente.

Mais adiante (na Parte 3) vamos dedicar uma seção apenas para expandir os conceitos de letramento, multiletramento e multimodalidade. Mas, agora, para ilustrar o raciocínio a respeito do desenvolvimento do senso de cidada-

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nia, do senso da heterogeneidade lingüística e sociocultural, utilizaremos um texto em inglês.

In less than a decade the Internet in Brazil has surpassed classrooms and research facilities as a way to reach millions of users. According to Brazil’s Ministry of Science and Technology, the number of people worldwide who are linked to the Internet is expected to reach close to 400 million in 2005, accounting for more than $ 620 billion in Internet commerce. The Internet was offered to the general public in Brazil in 1995 by the Ministry and more than 19.7 million Brazilians use the service today.

According to Nielsen-NetRatings, only in 2002, the number of Brazilians with access to the Internet grew by 2.1 million. The study says that 45 percent of pe- ople 16 year old or older living in a house with a telephone have access to the Internet. 14.3 million Brazilians access the Internet from home.

Source: www.brazzil.com, April 2005

Além da compreensão geral, dos pontos principais e das informações detalha- das (fases da leitura amplamente divulgadas em orientações anteriores, como no primeiro Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental), o exercício de leitura desse texto deve, segundo as teorias sobre letramento, desenvolver/voltar- se para a habilidade de construção de sentidos, inclusive a partir de informações que não constam no texto. Poderia, por exemplo, prever perguntas ou refl exões como: quais são os possíveis signifi cados e leituras a serem construídos a partir desse texto? Quem são os brasileiros descritos no texto como usuários da Internet? Quem não está incluído nessa estatística e por quê? Os dois números 19.7 milhões e

14.3 milhões referem-se aos brasileiros. O que descrevem? Que diferenças apresen-

tam e por quê? O que é necessário para ser um usuário da Internet?

Relacionar essas perguntas à cidadania, acreditamos, é uma forma de, gra- dativamente, promover a compreensão e a refl exão sobre o lugar que o aluno ocupa na sociedade, se está incluído ou excluído do processo social e cultural que analisa; enfi m, esse procedimento é uma forma de gerar oportunidades para o desenvolvimento da cidadania.