• Nenhum resultado encontrado

Lacerda e Amaral (2018) apontam para a educação enquanto formação do indivíduo e da sociedade, não sendo um processo apenas individual pois para além de desenvolver o indivíduo em suas capacidades, desenvolve também a sociedade assegurando sua manutenção e reprodução. Os autores apresentam a educação enquanto processo histórico, tendo em vista a época em que se insere na sociedade, fomentando seu desenvolvimento. Ainda a educação pode ser pensada enquanto processo social pois sua ocorrência é mediada por distintas instituições sociais, em especial a escola, mas conta também com a família, igreja, trabalho, entre outras. A educação é apontada inclusive como um processo cultural pois ocorre em um grupo de origem, o qual apresenta uma identidade cultural, seja pela língua, pelos costumes, pela etnia, entre outros.

A relação do jovem com a escola permanece exercendo forte papel na inserção dos jovens no mundo adulto, tanto pela preparação para o mercado de trabalho quanto pela mediação dos processos de cidadania. Segundo Ariès (1981), a juventude somente foi compreendida enquanto categoria social a partir do processo histórico de passagem das atribuições de formação das crianças das famílias para a escola moderna.

No Brasil, o histórico da educação foi baseado em matrizes europeias, pautado pelo pensamento colonial, focado deste modo para a formação da elite brasileira, excluindo as demais classes sociais do acesso a processos educativos de qualificação. Assim, ao longo de toda a história do país são percebidos mecanismos de exclusão, decorrentes de processos de colonização os quais retroalimentam a desigualdade na distribuição de renda, a disputa de classes, a inacessibilidade de direitos sociais, culminando assim na vulnerabilidade social e fomentando os ciclos de pobreza. Sendo assim, a escolaridade apesentada pelo indivíduo tornou-se um indicativo do lugar social ocupado por ele. Deste modo, o acesso a processos de escolarização apresenta-se como essencial no processo de garantia de direitos sociais (SPOSATI, 1996).

A educação passa a ser pensada enquanto direito social inalienável com a Constituição Federal de 1988, direito esse reafirmado nas legislações em prol das infâncias e juventudes, além das legislações específicas em prol da educação. Assim, com a compreensão da importância da educação para o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, percebe-se a educação enquanto direito fundamental de justiça social, haja vista que não há desenvolvimento social, econômico e político sem educação (LACERDA; AMARAL, 2018).

A incompatibilidade do currículo escolar com as vivências dos jovens também é abordada por Lacerda e Amaral (2018), os quais referem que cada jovem possui sua visão de mundo, projetos de vida, modos de ser e viver, advindos de uma trajetória de vida que nem sempre encontra consonância com as práticas escolares, fazendo com que estes não tenham interesse em permanecer nos bancos escolares. Os interesses e expectativas dos jovens frente aos processos educativos muitas vezes não são atendidos pelos processos de escolarização que se mantém na atualidade, os quais não foram atualizados com as mudanças sociais, e deste modo, não abrem espaço para a discussão e reflexão sobre os conflitos e tensionamentos das juventudes de hoje. Assim, especialmente para as juventudes empobrecidas, a permanência nos processos de escolarização perde o sentido pois, muitas vezes não é percebida enquanto possibilidade de mudança nas trajetórias de vida.

Sofia ao longo da entrevista individual após o curso refere:

No curso eu ouvia de muitos colegas que eles queriam sair da escola para focar no trabalho, porque quando começamos nas empresas parecia que o trabalho tinha mais importância, até pelas dificuldades financeiras, porque o salário do curso não dá para muita coisa, acho que até pela pressão dentro de casa para eles trabalharem, pois não tinham motivação dentro de casa, tem essa coisa cultural que gente negra não se forma! Pobre vai fazer o que na faculdade!?

Souza (2015) em sua obra pontua a falta de capacidade de concentração nas crianças em maior vulnerabilidade socioeconômica, levando ao insucesso escolar, derivados da falta de identificação e de exemplos positivos no ambiente familiar, capacidade de concentração esta que depende ainda de disciplina e autocontrole, além do pensamento prospectivo, os quais serão fundamentais no mercado de trabalho, e que será um dos diferenciais das crianças de classe média, as quais possuem tais predicados enraizados desde a infância.

As classes populares, ao contrário, não dispõem de nenhum dos privilégios de nascimento das classes média e alta. A socialização familiar é muitas vezes disruptiva, a escola é pior e muitas vezes consegue incutir com sucesso insegurança na própria capacidade, os exemplos bem-sucedidos na família são muito mais escassos, quando existentes, quase todos necessitam trabalhar muito cedo e não dispõem de tempo para estudos, o alcoolismo, fruto do desespero com a vida, ou o abuso sexual sistemático, são também “sobrerrepresentados” nas classes populares. Os efeitos desse ponto de partida acarretam que a incorporação da tríade disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo, pressuposta em qualquer processo de aprendizado na escola e em qualquer trabalho produtivo no mercado competitivo, seja parcial e incompleto, ou até inexistente (SOUZA, 2015, p. 182).

Sendo assim, a capacidade de concentração, o pensamento prospectivo e a disciplina para o trabalho, são considerados privilégios de classe. Tais privilégios de classe são identificados nas classes média e alta, não sendo frequentes em jovens em maior vulnerabilidade socioeconômica pois estes possuem sua mão de obra explorada desde a infância muitas vezes. Assim, existe uma manutenção da classe privilegiada enquanto tal, pois seus filhos chegarão na escola e no mercado de trabalho como “vencedores”, exercendo

atividades laborais valorizadas, encobrindo sob a imagem de mérito pessoal o que na verdade é privilégio de classe, legitimando a desigualdade social.

Deste modo, a obrigatoriedade da escolarização, traduzida pela incorporação de alunos em um processo de educação conteudista, hierarquizada e precarizada, se apresenta enquanto outro processo de exclusão das juventudes pobres, identificado nos índices de reprovação e evasão escolar. Com esta exclusão da escola, evidencia-se a reprovação social, econômica e cultural, a qual historicamente está implicada na cultura política do país (LACERDA; AMARAL, 2018).

Nas entrevistas após a conclusão do curso de aprendizagem, Sofia e Carolina falaram sobre suas percepções em relação ao processo de escolarização. Sofia refere que optou por trocar o turno das aulas e migrar para escola mais próxima de sua moradia descrevendo que em ambas as escolas há falta de professores, falta de verba e que alguns professores até se mostram dispostos a aplicar atividades diferenciadas, porém sem sucesso. Comparou ainda com o ensino de escolas particulares, referindo que uma amiga estuda em escola particular e quando conversam sobre os conteúdos estudados, ela percebe que a amiga recebe um ensino mais aprofundado e avançado, além de ter acesso a informações e atividades que estudantes da rede pública de ensino não tem acesso. Pontua: “É mais fácil para os jovens da escola particular ter acesso a outras coisas quando a gente não tem acesso ao mínimo do mínimo”.

Já Carolina, em sua entrevista individual após o curso destaca a precariedade da estrutura, somada a falta recorrente de professores e colegas pouco motivados:

Meus colegas são uns bostas, mal educados que não levam a sério, e os professores faltam muito, e quando vão ficam falando da vida deles e não da matéria, ninguém que saber da vida deles! Parece que todos estão ali querendo que termine logo.

Outro aspecto para que se possa compreender a precarização do ensino público no Brasil se apresenta pela recente reforma da educação, a qual altera o sistema de ensino médio público, a partir da ampliação da carga horária, redução de disciplinas, compressão de áreas do conhecimento. Assim, tal reforma ao alterar o currículo, prioriza o ensino técnico com vistas ao atendimento das demandas do mercado, formando apenas mão de obra, e retroalimentando os processos de vulnerabilização dos jovens de periferias (GREGORI; VERONESE, 2019)

Importante salientar que fatores como a escolaridade e educação frequentemente são elencados como os mais importantes em relação ao desemprego juvenil. Sendo assim, torna- se relevante apresentar dados referentes a escolarização da população jovem brasileira, a qual em muitos casos, evade do ensino regular em busca de oportunidades de emprego, as quais, contraditoriamente, lhe são negadas pela baixa escolaridade.

Em relação aos jovens estudantes com idades entre 15 e 17 anos, os quais deveriam cursar o ensino médio, a PNAD (2017) demonstra que destes quase 2 milhões apresentam defasagem devido a repetências de anos escolares, já 1,3 milhão de jovens estudantes encontram-se evadidos da escola. Moura e Possato (2012) apontam que na visão de jovens pertencentes a camadas populacionais mais empobrecidas, a escolarização perde a credibilidade, seja pela falta de incentivo familiar, pela dificuldade de se dedicar aos estudos, ou pela não garantia de que a escolarização poderá garantir uma mudança significativa na realidade familiar, pois por mais que a escolarização facilite o acesso ao mercado de trabalho, ela não o garante.

A PNAD de 2013, a qual apresentou dados relativos aos anos de estudo no Brasil de 2006 a 2013, informa que o valor médio de anos de estudo na população jovem com idades entre 15 e 17 anos foi de 7,73, percentual abaixo do ideal, o qual deveria ser entre 8 e 11 anos de estudo. Ainda, a pesquisa aponta para o fato de quanto menor a renda familiar, menos tempo de estudo é apresentado pelo jovem, sendo de tal forma ainda mais preocupante a situação brasileira tendo em vista que os anos de estudo impactam diretamente na inserção do jovem no mundo do trabalho pois quanto menor a renda do jovem, mais difícil se torna sua qualificação e consequentemente sua iniciação no mercado de trabalho torna-se cada vez mais postergada e relegada a trabalhos precarizados (RODRIGUES, 2017).

Quanto a escolarização dos jovens que participaram desta pesquisa, os integrantes do grupo de jovens do CRAS apresentaram percentuais de defasagem escolar alarmantes, como pode ser percebido no quadro 3.

Quadro 3: Escolaridade x defasagem dos integrantes do grupo de jovens do CRAS

Nome Idade Escolaridade Atual

Escolaridade

Esperada Defasagem

Dionathan 14 anos 8° EF 9° EF 1 ano

Matheus 15 anos 8° EF 1° EM 2 anos

Gisa 16 anos 9° EF 2° EM 2 anos

Sheila 15 anos 7° EF 1° EM 3 anos

Luana 16 anos 9° EF 2° EM 2 anos

Jaqueline 16 anos 2° EM 2° EM Sem defasagem

Carlos 16 anos 1° EM 2° EM 1 ano

Brenda 17 anos 2° EM 3° EM 1 ano

Samanta 16 anos 9° EF 2° EM 2 anos

Morgana 15 anos 1° EM 1° EM Sem defasagem

Érick 18 anos 1° EM EM Concluído 3 anos

Melissa 16 anos 9° EF 2° EM 2 anos

Laura 15 anos 8° EF 1° EM 2 anos

Maurício 17 anos 1° EM 3° EM 2 anos

Assim, como pode ser identificado no quadro 3 evidencia-se que 86% dos jovens apresentaram defasagem escolar. Destes, 14% estão com 3 ou mais anos de defasagem, 50% estão com 2 anos de defasagem e 22% estão com 1 ano de defasagem. Ainda, pode ser feito um comparativo por sexo, sendo que 100% dos homens apresentaram defasagem escolar, enquanto que 78% das mulheres estão com o ensino defasado. Salienta-se que ao longo da participação no grupo de jovens do CRAS, Luana evadiu do ensino por conflitos com professores e foi necessário um movimento de articulação entre CRAS e Central de Matrículas do município a fim de garantir a vaga em outra escola próxima de sua moradia para evitar que a jovem prolongasse o período de evasão e aumentasse a defasagem já apresentada, pois negava-se a voltar a estudar na escola onde houve o atrito. Ainda, Matheus e Sheila alegaram que em anos anteriores já haviam evadido do ensino.

Já em relação a escolarização dos jovens aprendizes e o impacto que esta sofreu com a inserção laboral, dos 18 jovens participantes no programa de Aprendizagem Profissional da Lefan, 8 apresentam defasagem escolar, representando deste modo, 44% da turma, como demonstrado no quadro 4.

Quadro 4: Escolaridade x repetências dos jovens do curso de Aprendizagem Profissional Lefan

Fonte: Dados coletados a partir das respostas do formulário de auto identificação

Vejamos como as reflexões que foram realizadas logo acima dialogam com o universo sociocultural dos 18 jovens participantes no programa de Aprendizagem Profissional Lefan e que se engajaram na produção desta dissertação.

Sofia, ao longo dos encontros do grupo de reflexão referiu que durante a aprendizagem profissional apresentou dificuldades em conciliar o trabalho e os estudos, descreve ter diminuído significativamente as notas, informando que os professores chamaram seus pais para conversar sobre tal fato. Descreveu que são muitos trabalhos e provas com datas próximas o que lhe obrigava a priorizar alguns e deixar em segundo plano outros, justificando desse modo as notas baixas. Já na entrevista após a conclusão do curso referiu que nos primeiros meses enquanto estagiária na empresa, estudava de manhã e trabalhava à tarde, e desse modo, acordava muito cansada para as aulas, tendo dificuldades para acordar e

Jovens Percentual Amostragem 18 - Repetência (total) 8 44% 1 Repetência 4 22% 2 Repetência 4 22%

ir para a escola. Assim, ao longo do ano letivo optou por trocar para o turno da noite, e refere que notou uma melhora na sua disposição e no desempenho escolar.

Tiago, por sua vez, pontuou que conseguiu conciliar o trabalho e os estudos, descrevendo que suas notas aumentaram em relação a anos anteriores quando não trabalhava, e que ter a responsabilidade do trabalho lhe fez ter mais organização. Eduarda descreve que conseguiu manter suas notas, informando que como a maior parte dos trabalhos escolares que possui são somente apresentação, ela consegue se organizar com o tempo, pois estuda de manhã e trabalha a tarde, e desse modo, quando retorna para casa possui um grande tempo livre para fazer os deveres da escola e para lazer, destacando que passa bastante tempo no celular.

Sobre o assunto Carolina referiu que se sente sobrecarregada com os estudos e o trabalho, relata que como trabalhava de tarde e estudava a noite chegava em casa após as 23 horas e acabava dormindo até metade da manhã, desse modo, descreveu que tinha pouco tempo para estudar e auxiliar na organização da casa. Da mesma forma, Pâmela salientou que tentou se organizar, mas que seguiu com notas prejudicadas após iniciar no mercado de trabalho. Artur ressaltou que nos primeiros meses quando somou trabalho e estudos, diversas vezes acabou por faltar aulas por estar muito cansado em decorrência do trabalho, porém como aprendizagem profissional exige a frequência escolar, conseguiu se organizar para conciliar o trabalho e as aulas, referindo também que houve um decréscimo em suas notas escolares.

Assim, de modo geral, percebe-se que a prática laboral impacta sim na vida acadêmica dos alunos, os quais, quando não conseguem adaptar a rotina para organizar os horários de estudo, trabalho e lazer, entre outras atividades de sua vida familiar e social, acabam por apresentar prejuízo no desempenho escolar. Em alguns casos, ficou evidente que a inserção no curso de aprendizagem auxiliou os jovens de modo em que estes conseguiram apresentar um desempenho superior em relação a época em que apenas estudavam, pois, a obrigatoriedade de frequência escolar para manter a vinculação ao curso de aprendizagem, somada as novas aprendizagens tanto no curso quanto no ambiente laboral, foram positivas para o desenvolvimento e formação dos jovens.

2.6 HISTÓRICO DO ENSINO TÉCNICO COMO DISCIPLINADOR PARA A