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Para conhecer melhor a prática etnográfica, na qual o pesquisador se faz presente no contexto vivenciado pelos parceiros da pesquisa, em contato direto com os indivíduos e grupos em suas situações de vida (ROCHA; ECKERT, 2008), passei a desenvolver a prática etnográfica no meu fazer profissional de forma consciente, tendo em vista que o contato era cotidiano com famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica, atuando como psicóloga dentro do CRAS Sudeste, unidade pública estatal e descentralizada da Política de Assistência Social (MDS, 2009), como veremos mais adiante neste trabalho, no quarto capítulo.

Figura 1: CRAS Sudeste – fachada

Cabe destacar que O CRAS Sudeste, inaugurado em 12 de fevereiro de 2016, conta com mais de 1.500 famílias referenciadas. Localiza-se na rua Nadyr Antônio Antonioli, número 21, no Bairro Planalto, e atende cerca de 53 bairros, loteamentos e vilas da região sudeste do município de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. O território é distante do centro, marcado por uma acentuada desigualdade social pois, no bairro principal, localiza-se uma empresa multinacional que ocupa um grande espaço do território, ao redor da qual construíram-se residências bem elaboradas e comércio diversificado. Adentrando tal território, identificam-se diversas ocupações irregulares de área verde e áreas particulares com a construção de residências precárias com risco eminente de desabamento e desmoronamento, em geral com acesso irregular a energia elétrica e água, quando há, por onde foram constituídas ruas estreitas de terra e pedras, nas quais apenas moradores fazem acesso, sendo considerado inviável o acesso para prestadores de serviços e deste modo o acesso a serviços públicos é deficitário, sendo frequente ainda o acúmulo de lixo e proliferação de animais.

Sabendo da importância de tornar o que até então para mim era familiar, mais do que em um fenômeno exótico, em conhecido (VELHO, 1981), para que fosse possível tomar um distanciamento adequado e não naturalizar a vivências, tendo em vista que meu vínculo com o citado CRAS desde antes de sua inauguração, ainda em 2015, decidi iniciar a pesquisa através do contato com um grupo de jovens onde atuava no primeiro semestre de 2018.

A partir disso, foi previsto uma sequência de encontros e atividades, visando orientar tais jovens do território de atuação do CRAS em suas mais variadas questões acerca de suas vidas cotidianas, para além das questões de primeiro emprego. O contato com esses jovens teve duração de março a julho de 2018, contando com a presença de 14 deles com idades entre 14 e 18 anos, em sua maioria pertencentes a famílias beneficiárias de programas de transferência de renda como o Programa Bolsa Família3 e o Benefício de Prestação Continuada – BPC4.

Para compor essa primeira população de jovens, foram selecionados aqueles pertencentes a famílias que já se encontravam referenciadas ao CRAS, os quais foram convidados a colaborarem na pesquisa em conjunto com suas famílias. Assim, compreende-se que o estudo do que me era familiar oferece algumas vantagens, mas se, e somente se, o pesquisador dele se afasta, através de uma necessária vigilância epistemológica, o que lhe permite, de fato, conhecê-lo como uma realidade bem mais complexa, construída a partir dos 3 Destinado às ações de transferência de renda com condicionalidades a unidades familiares que se

encontrem em situação de pobreza ou extrema pobreza.

4 O Benefício de Prestação Continuada previsto no art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, é

a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso, com idade de sessenta e cinco anos ou mais, que comprovem não possuir meios para prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.

mapas de códigos sociais (VELHO, 1978) de uma grande diversidade de atores sociais. Abaixo segue a tabela com a descrição dos jovens que compuseram esta experiência do Grupo de Jovens no meu período de pré-campo, segundo dados autodeclarados por eles.

Quadro 2: Apresentação dos integrantes do grupo de jovens do CRAS.

Nome / Descrição Idade Sexo Ensino

Programa de transferência

de renda Dionathan - pardo, magro, baixo, cabelo escuro e curto.

Reside com a mãe irmãos e sobrinhos. Histórico familiar de abuso de SPA, irmã em situação de rua. Jovem extremamente tímido, só fala quando é interrogado diretamente, com respostas simples. Apresenta demasiada dependência da mãe, a qual é superprotetora.

14 M 8º EF Sim

Matheus – pardo, sobrepeso, estatura mediana, cabelo escuro, curto, com frequência usa boné e/ou capuz. Reside com a mãe e irmãos. Histórico de ausência paterna, frequentou o SCFV Vitória até a idade limite e passou a frequentar o grupo de Jovens. Família bem organizada, buscou o Grupo visando oportunidades de emprego. Tímido, porém acompanha os diálogos.

15 M 8º EF Sim

Gisa – negra, alta, magra, cabelo crespo escuro, sempre preso em coque. Reside com a avó, tios e primos. Histórico de Trabalho Infantil na coleta de material reciclável, situação de doença grave da mãe. Prestativa, porém extremamente tímida, não inicia diálogos e tem dificuldade em seguir uma conversa.

16 F 9º EF Sim

Sheila – negra, estatura mediana, sobrepeso, cabelo crespo, escuro e curto, sempre maquiada com batom escuro. Piercing na sobrancelha. Relata comportamentos agressivos com frequência. Histórico familiar de vulnerabilidade socioeconômica e violência intradomiciliar, esteve evadida da escola em 2016, frequentou o SCFV Cruzeiro do Sol.

15 F 7º EF Sim

Luana – branca, estatura mediana, magra, cabelo ruivo, ondulado e longo. Reside com a mãe e irmãos. Histórico familiar complexo, mãe em tratamento oncológico. Já referiu automutilação e ideação suicida. Buscou o grupo para socialização, mostra-se uma jovem bastante emotiva e comunicativa.

16 F 9º EF Sim

Jaqueline – negra, estatura mediana, magra, cabelo escuro, ondulado e longo. Reside com os irmãos. Histórico familiar de violência e abuso de SPA, sua irmã mais velha possui sua guarda, não possui contato com os pais. Já esteve em situação de abrigamento institucional. Fala pouco mas presta atenção em tudo, demostra ser tímida. Buscou o grupo para oportunidades de trabalho.

Carlos – negro, alto, magro, cabelo escuro raspado. Reside com os pais e irmãos. Histórico de abuso de SPA dos pais, mãe com quadro de saúde delicado, necessitou residir com a irmã por um período. Mostra-se bastante participativo, já teve experiência de trabalho de risco, buscou o Grupo visando oportunidades de emprego. É comunicativo e uma figura de liderança dentro do grupo, faz reflexões sobre as temáticas propostas e demostra bastante conhecimento.

16 M 1º EM Não

Brenda – branca, magra, alta, cabelo castanho claro, longo e liso. Reside com a mãe e irmãos, o pai reside em outro município e o contato com ele é fragilizado. Apresentou problemas de adaptação na escola e infrequência escolar. Mostra-se comunicativa e descreve ter buscado o Grupo para oportunidades de emprego e cursos. Participa das atividades do grupo ativamente.

17 F 2º EM Sim

Samanta – parda, magra, estatura mediana, cabelo escuro, cacheado na altura dos ombros. Natural de Santa Catarina, onde sua família reside. Mora com o namorado na casa da sogra, esteve evadida da escola em 2017. Refere ter buscado o Grupo para acesso a cursos. Tímida, apenas segue tarefas propostas sem dar prosseguimento em diálogos.

16 F 9º EF Sim

Morgana – branca, alta, magra, cabelo escuro, crespo e longo. Reside com a mãe e a irmã. Histórico de suicídio do pai, a mãe refere que a filha refere ideação suicida. Cursa magistério e pretende tornar-se professora. Frequentou o SCFV Vitória e buscou o grupo para socialização e adquirir mais conhecimento segundo seu relato. Apresenta-se como figura de liderança feminina, bastante engajada nas atividades propostas, participa das reflexões e dá sugestões.

15 F 1º EM Não

Érick – pardo, alto, magro, cabelo curto e escuro. Irmão de Jaqueline. Histórico familiar de violência e abuso de SPA, sua irmã mais velha possui sua guarda, não possui contato com os pais. Já esteve em situação de abrigamento institucional. Participa ativamente dos diálogos e atividades. Buscou o grupo para oportunidades de trabalho.

18 M 1ºEM Sim

Melissa – negra, estatura mediana, magra, cabelo escuro, ondulado e longo. Reside com o pai e irmão, pai alcoolista e irmão com histórico de abuso de SPA. Participa ativamente dos diálogos do grupo, referindo com frequência suas dificuldades familiares.

16 F 9º EM Sim

Laura – branca, baixa, em sobrepeso, cabelo castanho claro cacheado na altura dos ombros. Reside com a mãe que possui doença gravem incapacitante. Apresenta dificuldade em compreender as tarefas e acompanhar o grupo nos diálogos. Interage pouco com os colegas, bastante tímida.

15 F 8º EF Sim

Maurício – branco, alto, magro, cabelo castanho claro, liso e curto. Histórico familiar de abuso de SPA, com internações compulsórias do irmão, irmã PCD – (Pessoa Com Deficiência) dependente de cuidados contínuos, pouco contato com o pai. Bastante comunicativo e participativo. Faz reflexões no grupo, trazendo exemplos pessoais pertinentes. Dá sugestões e mostra-se como o porta-voz do grupo, tomando a liderança nas atividades.

17 M 1º EM Sim

A realização dos encontros com os jovens, nos moldes de grupo de reflexão, acima mencionado foi semanal, com duração média de 2 horas cada encontro, nas dependências do CRAS Sudeste. O grupo foi uma ótima experiência para poder entrar em contato com os jovens, compreendendo dessa forma suas demandas, suas dúvidas, suas ansiedades e principalmente suas expectativas frente a possibilidade de ingresso no mercado de trabalho, ingresso esse que poderia se dar por meio da vinculação a um programa de aprendizagem profissional. Foi igualmente uma experiência única da aplicação da psicologia em contextos grupais, tendo em vista que meu papel no CRAS era justamente o de trabalhar com a psicologia aplicada ao social.

Optei por utilizar a metodologia de grupos reflexivos, modalidade de grupo operativo visando a reflexão sobre assuntos propostos pelo grupo ou para o grupo, como as questões de vulnerabilidade socioeconômica, as questões me mercado de trabalho, as questões de exclusão social, entre outras, visando deste modo identificar as possibilidades de superação do quadro de vulnerabilidade transgeracional vivenciada por estes jovens.

Os jovens receberam visitas de instituições interessadas em conhecer o trabalho que estávamos realizando e apresentar suas ações voltadas para este público. Assim, recebemos a visita do Centro de Integração Escola Empresa – CIEE RS5, da Lefan, da Coordenadoria da Juventude6 e a visita do setor de saúde mental da Secretaria Municipal da Saúde.

Tal experiência caracterizou-se como um importante pré-campo de pesquisa, onde me foi possível perceber os sujeitos observados como parceiros da pesquisa, compreendendo dessa forma que as articulações do pesquisador com as instituições onde eles se encontram são fundamentais (família, escola, etc.), porém dependem do interesse daqueles diretamente envolvidos com o objeto da pesquisa.

O resultado de um trabalho de campo se mede pela forma como o(a) próprio(a) antropólogo(a) vai refletir sobre si mesmo na experiência de campo. A confrontação pessoal com o desconhecido, o contraditório, o obscuro e o confuso no interior de si mesmo é uma das razões que conduzem inúmeros autores a considerar a etnografia como uma das práticas de pesquisa mais intensas nas ciências sociais (ROCHA; ECKERT, 2008).