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George Simmel (1896 apud SOUZA; ÖELZE, 1998) na obra “Dinheiro na cultura moderna” apresenta a trajetória histórica da implementação do dinheiro nas relações comerciais e sociais humanas, descrevendo o caráter impessoal da atividade econômica, bem como, a autonomia e independência da pessoa a qual detém, sendo a existência do dinheiro dependente de uma rede de ligações tecida por centenas de interesses monetários.

Singly (2000) refere que o processo de amadurecimento dos jovens perpassa o campo do psicológico e do social, implicando de tal modo na busca por independência e autonomia. Assim sendo, a independência diz respeito primordialmente à busca por emancipação econômica, não dependendo mais financeiramente de outros para suas atividades. Em relação à autonomia, esta diz respeito ao conhecimento do mundo em suas regras e inter-relação com outras pessoas.

No encontro do dia 16 de maio de 2018 do Grupo de Jovens do CRAS durante o pré- campo, compareceram 6 jovens para a atividade que foi por mim proposta. Tratava-se de uma provocação didática na qual foi solicitado aos jovens que expressassem por meio de palavras

que lhes eram significativas o que para eles representava a inserção laboral. Ao longo da atividade foi identificado que a palavra “dinheiro” e/ou a figura do “$” apareceram na totalidade dos trabalhos entregues por eles no encontro anterior, no qual responderam à pergunta “O que o primeiro emprego significa para você?” De forma artística, por meio de matérias de desenho e escrita, entre outros. Dessa forma, foi desenhado o “$” como figura central no quadro branco, seguido das principais respostas emitidas pelos jovens neste encontro.

Figura 9: Primeiro emprego

Fonte: Acervo pessoal da autora

Na época, em consenso os jovens afirmaram que a principal motivação para a entrada no mercado de trabalho é o retorno financeiro, a partir do qual é possível: “ajudar a família” seja no pagamento de contas, seja na aquisição de alimentos e realização de viagens.

Sem dúvida, o dinheiro reúne os jovens a seus familiares em muitos planos. Os jovens apontaram, na época desta atividade, que por meio do dinheiro é possível ser independente, e essa independência se traduz na autonomia para escolher onde ir, o que comprar, o que comer, acesso a atividades de lazer, entre outras possibilidades. O deslocamento, também citado por eles, visando possibilidade de viagens, ou mesmo o deslocamento dentro da cidade. Tal questão de deslocamento perpassa o campo da independência e liberdade haja visto que para os jovens do grupo, até mesmo o valor de uma passagem de transporte público, é um valor elevado para a economia doméstica, os quais muitas vezes necessitam deslocar-se a pé até os

mais diversos locais, e idealizam viagens a locais os quais nunca tiveram acesso, mas conhecem por meio das mídias.

Segundo Simmel (1896 apud SOUZA; ÖELZE, 1998), o dinheiro fez surgir ainda uma nova relação entre liberdade e compromisso, a posse do dinheiro traz consigo o sentimento de libertação pois, por meio do dinheiro é possível estipular o valor dos objetos, serviços ou qualquer outro item de desejo do sujeito. No mundo moderno, cada vez mais pode-se obter por meio do dinheiro, o que o sujeito almeja, e deste modo o dinheiro passou a ser figura central nas relações humanas, ao passo em que possui influência sobre tais relações. Assim, surge a crença de que o dinheiro equivale a totalidade do objeto, sem refletir-se que existem aspectos que não podem ser expressos em dinheiro. Podendo ser esta disparidade um dos fatores que fomentam a inquietação e insatisfação da nossa era e que também atinge aos jovens das classes trabalhadoras e seus familiares, principalmente, em razão de sua condição social de vulnerabilidade econômica nos grandes centros urbanos do Brasil.

Outro fator elencado pelos jovens durante o pré-campo no CRAS foi a possibilidade do “gastar”, informando itens de desejo os quais não podem ser atendidas pelos pais atualmente, mas que a partir do dinheiro proveniente do primeiro emprego poderão ser desejos atendidos, como a aquisição de celulares, roupas novas, calçados, e até mesmo alimentos diferenciados, as quais não são fornecidas pelos pais pelo elevado custo. Ainda, o “guardar” também foi elencado, sendo descrito o desejo de manter uma poupança para a realização de planejamentos a médio e longo prazo como pagar pelos custos de um curso superior, pagar pelas aulas teóricas e práticas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação – CNH, e um carro ou motocicleta. Esse item perpassa outro citado, do “patrimônio”, no qual os jovens apontaram o dinheiro como possibilidade de adquirir carro ou moradia própria.

Simmel (1896 apud SOUZA; ÖELZE, 1998) problematiza ainda o fato de que os sujeitos não identificam o fato de que o dinheiro é apenas um mecanismo para a obtenção de outros bens, e sim, percebem o dinheiro como um bem autônomo. Por essa via, o autor pontua que a maior parte dos homens modernos necessita do dinheiro enquanto motivação para seus atos, os quais propagam a ideia de que toda a satisfação plena da vida estaria atrelada a posse do dinheiro. Deste modo, o dinheiro torna-se o alvo das aspirações humanas, tornando-se a expressão de todos os valores. Simmel aponta o dinheiro como o Deus da época moderna, o qual sua posse se traduz em segurança e tranquilidade, fornecendo ao sujeito a convicção de que possui o centro dos valores.

Essa dimensão da segurança que o dinheiro possibilita nas modernas sociedades complexas que vem associado a expectativa da inserção laboral de jovens de camadas

populares no mercado de trabalho foram igualmente mencionados pelos meus interlocutores com quem dialoguei ao longo da pesquisa de campo da Lefan. São valores que perpassam a questão financeira propriamente dita e se expandem para as representações de responsabilidade pela capacidade que o jovem inserido num trabalho formal teria para administrar sua vida e realizar planejamentos, assim como usufruir da liberdade em poder realizar seus sonhos de vida e de consumo.

A valorização do dinheiro como recompensa pela inserção no trabalho vem associado, como contraponto, ao medo por parte dos jovens principalmente de fazer algo errado, e ser dispensado d a instituição a qual está vinculado. O medo pode ter outras faces, como, por exemplo, o de ser substituído por falta de experiência ou por falta de afinidade com os colegas de trabalho e chefia. Neste aspecto os jovens, tanto os do grupo de jovens do CRAS quanto os da aprendizagem profissional da LEFAN, com quem dialoguei demostraram grande ansiedade frente a cumprir um papel no mercado de trabalho e ser suficientemente bons tendo em vista a falta de experiência e capacitação. Deste modo, retorno financeiro é apresentado por todos eles como a principal motivação para a vinculação dos jovens no mercado de trabalho, sendo o dinheiro o representante da concretização de sonhos e desejos destes jovens.

Assim, compreende-se que a inserção ocupacional de jovens no mercado trabalho denota sua importância social em relação a primeira oportunidade profissional a qual é fundamental para a trajetória futura do jovem. Quanto melhores as condições de acesso ao primeiro emprego, proporcionalmente mais favorável poderá ser a sua evolução profissional. Em contraponto, o ingresso antecipado e precarizado do jovem no mundo do trabalho pode marcar desfavoravelmente o seu desempenho profissional futuro (POCHMANN, 2000).

Na experiência com os jovens participantes do Programa de Aprendizagem Profissional da Lefan o ingresso no programa de aprendizagem citado fica mais evidenciado o tema do retorno financeiro. Neste programa os jovens recebem uma bolsa auxílio que varia em torno de R$450,00 como valor líquido. Quando questionados sobre o fator que lhes impulsionou a fazer a inscrição no curso, a totalidade dos jovens mencionou a bolsa auxílio, visando dinheiro para auxiliar nas despesas domésticas e para aquisição de itens para seu consumo e utilização.

Uma das perguntas que orientou meu diálogo com os jovens da Lefan dizia respeito ao questionamento do que eles faziam com o valor recebido na forma de bolsa. As respostas foram extremamente ricas para se compreender o cotidiano dos jovens com os quais estava convivendo.

Sofia estava guardando em torno de R$100 todos os meses para poder pagar o cursinho pré-vestibular pois desejava ingressar na faculdade de direito. Com o restante do

valor, costumava gastar com alimentação e vestuário. Tiago informa que guarda todo o seu salário desde o início do curso. As colegas Carolina e Bruna comentaram discretamente que Tiago com frequência comprava alimentos para elas, e que elas acabavam não pagando de volta pois ele não aceitava o pagamento por ter uma condição financeira familiar mais abastada do que elas.

Bruna, em particular, me relatou que sua mãe lhe orientava no sentido de guardar uma parte do salário para emergências, e descrevia tal economia como um desafio, pois em alguns meses acabou gastando o valor guardado com alimentação e vestuário. Ela descreveu que para ela, alimentação é uma emergência, e que se ela possui dinheiro prefere gastar com comida do que manter ele guardado. Carolina, por sua vez, me contou que gastava a maior parte do valor com alimentação para si e para sua família. Referiu ainda que sempre que a mãe solicitava, ela auxiliava com outras despesas da casa, e desse modo, acabava não fazendo economias para o futuro. Diferentemente das respostas anteriores, Alicia referiu que além do valor da bolsa auxílio, recebia o auxílio reclusão de seu pai, tal benefício previdenciário era destinado por completo para as despesas da casa, já o valor recebido pela bolsa auxílio ela gastava com despesas pessoais, e quando necessário com a família.

Para Davi, do valor recebido, ele destinava R$100 ao orçamento doméstico de sua família de origem, o restante do valor, custeava suas aulas na escola de futebol onde frequentava, objetivando tornar-se jogador profissional. Da mesma forma, Leonardo referiu que auxiliava no orçamento doméstico com R$100, auxiliando a avó com quem reside, e referiu desejo de realizar um intercâmbio, para o qual estava guardando dinheiro quando possível. Gustavo, como Leonardo e Davi referiu auxiliar a mãe com R$200 mensais, descrevendo que a principal motivação para iniciar o curso de aprendizagem foi para contribuir com o orçamento doméstico. O restante do valor alegou utilizar com alimentação e diversão. Roberta descreveu que entregava o valor recebido integralmente ao avô, com quem reside, o qual utiliza integralmente para as despesas domésticas.

Destaca-se que a maior parte dos jovens informou preocupação com as despesas da casa, mostrando-se conscientes dos valores gastos com alimentação, higiene, energia elétrica e água, contas as quais alguns jovens referiram pagar. Franciele desabafou:

Eu acho que já tenho compromissos de adulto, pago luz, pago água, pago telefone, pago internet, não sobre quase nada, esse mês recebi R$424,00 e sobrou R$24,00. Eu tiro o contracheque e vejo todos os descontos, até os 6% da van, acho injusto.

Em relação a consciência frente a despesas, muitos jovens citaram que passaram a reconhecer o alto custo de itens de alimentação e consumo, e que ao longo do curso de

aprendizagem, gerenciando sua remuneração, passaram a compreender melhor seus pais e as dificuldades de sustentar a si e a família. Bruna pontuou:

Antigamente eu pedia alguma coisa pra minha mãe e ela dizia, é caro, e eu ficava braba com ela por que era 5 pila17, e dizia 5 pila não é nada. Bah hoje eu vejo que 5

pila é muito, eu me mato trabalhando pra conseguir 5 pila.

No quadro 6 é feito um comparativo entre a renda per capta, coletada por meio da análise da Folha Resumo entregue pela família no momento do cadastro para inscrição do jovem no curso, em 2017, e o valor declarado pelos jovens como parcela destinada a auxiliar nas despesas domésticas atualmente.

Quadro 7: Comparativo entre a renda per capta familiar e a contribuição do jovem. Nome Renda Per Capta N° de Pessoas na Casa Ajuda em Casa

Pâmela R$ 0,00 4 R$ 0,00 Franciele R$ 75,00 5 R$ 400,00 Gustavo R$ 183,00 5 R$ 200,00 Leonardo R$ 824,00 3 R$ 100,00 Carolina R$ 166,00 3 R$ 150,00 Artur R$ 75,00 3 R$ 150,00 Roberta R$ 179,00 7 R$ 450,00 Vanessa R$ 234,00 4 R$ 150,00 Sofia R$ 300,00 4 R$ 0,00 Bruna R$ 50,00 4 R$ 150,00 Tiago R$ 450,00 3 R$ 0,00 Cátia R$ 0,00 6 R$ 50,00 Camila R$ 155,00 9 R$ 100,00 Milena R$ 252,00 4 R$ 150,00 Gabriela R$ 83,00 5 R$ 150,00 Alicia R$ 93,00 4 R$ 0,00 Márcia R$ 217,00 5 R$ 200,00 Davi R$ 234,00 5 R$ 100,00

Fonte: Análise da folha resumo entregue pela família e a declaração dos jovens.

Destaca-se que a maior parte dos jovens pertence a famílias com renda per capta abaixo do meio salário mínimo, algumas enquadram-se nos parâmetros de pobreza e extrema 17 Pila na fala coloquial faz referência a reais. 5 pila equivale a R$5,00.

pobreza, estipulados pelo Governo Federal e verificados a partir do cadastramento no Cadastro Único. Não foi possível ter acesso aos dados de quais famílias recebiam programas de transferência de renda, como o Programa Bolsa família pois os jovens não sabiam responder a esta questão. Porém, com base na renda per capta apresentada a partir da folha resumo entregue junto à inscrição, é possível supor que ao menos 11 dos 18 jovens é um beneficiário potencial do programa Bolsa Família.

Nas entrevistas realizadas com os jovens egressos, a questão do dinheiro também foi apontada, especialmente pelos jovens que enfrentam a situação de desemprego após o curso de aprendizagem. Carolina informou que como a empresa não a efetivou, ela passou a buscar novas oportunidades de emprego enquanto recebia o seguro desemprego. Hoje já não possui o repasse de renda do seguro e atualmente depende da renda da mãe, a qual é a única no domicílio que está empregada. Assim, a jovem relatou as dificuldades que vão além de não conseguir adquirir bens para si, apontando para a impossibilidade de custear suas aulas de futsal, dependendo da compreensão da gerência do time para permanecer vinculada a esta atividade, a qual tem como projeto de futuro.

A redução da renda familiar após a conclusão do curso foi informada por Davi, em entrevista ao jovem egresso, o qual refere que hoje a única renda da família é proveniente da pensão por morte recebida por sua mãe em relação ao falecimento do pai de seus irmãos. Destaca que a renda recebida por ele contribuía com as despesas domésticas, permitia que ele pudesse adquirir itens de uso pessoal como acessórios, roupas e tênis e para ele o principal, garantia o pagamento das aulas de futebol, como já apontado, porém após o curso não teve condições financeiras de arcar com os custos das aulas de futebol e hoje percebe seu sonho de se tornar jogador profissional cada vez mais distante, referindo em relação a perda da bolsa- auxílio e o impacto em sua realidade familiar:

Era uma ajuda e tanto, hoje sinto falta, agora só vou para a escola e não faço nada em casa, jogo as vezes, mas não vejo futuro fora de uma escola de futebol, mas não desisti, tô tentando correr atrás, não pensei em nenhum outro ramo [em relação a outras escolhas profissionais], mas posso me aperfeiçoar ao emprego.

Ainda, a redução da renda na realidade de Carolina afetou também a sua vida acadêmica, tendo em vista que há uma longa distância de sua casa até a escola mais próxima, situada em outro bairro, assim a jovem referiu que quando estava trabalhando conseguia custear uma van, porém agora, como a mãe não tem condições muitas vezes nem mesmo de arcar com os custos das passagens de ônibus, necessita fazer diariamente a pé o trajeto da casa até a escola, mesmo em dias de chuva ou sol forte, e por isso trocou de turno, pois estudava à noite e passou para o turno da manhã por ser mais cômodo e seguro. Quando questionada sobre o impacto desse decréscimo de renda no orçamento doméstico refere: “Sempre tem

dificuldade pra pagar as contas e comprar coisas né. Parece que estou em outro mundo sem dinheiro!”.

A jovem Sofia, também egressa do programa de aprendizagem, em entrevista individual, ao falar sobre os planos futuros destacou o desejo de seguir estudando, descrevendo sua preparação para o ingresso no ensino superior conforme segue:

Eu estou estudando para o ENEM, quero tentar uma vaga na federal ou bolsa, mas não tenho dinheiro para pagar um cursinho pré-vestibular, então eu estudo em casa, vejo materiais pela internet e tento aprender o máximo na escola.

Questionada se os pais custeariam o curso superior em caso da não obtenção de isenção por meio de bolsas ou caso não ingresse em uma universidade federal tendo em vista que o município de Caxias do Sul conta apenas com ensino superior privado, Sofia esclarece:

Meus pais não tem condições de ajudar com os custos da faculdade, mas minha mãe não deixa faltar nada, tudo que eu preciso ela dá um jeito e consegue, então eu sei que se eu não passasse em uma federal eles contariam as moedas para me colocar na faculdade, mas se fosse desse jeito eu não iria querer pois sei que seria muito difícil para eles.

Fica evidente assim que a bolsa auxílio representava para estes jovens muito mais do que apenas um valor para comprar itens de desejo juvenil, como aparelhos eletrônicos, roupas e custear programas de lazer, mas sim, uma garantia de renda para as despesas de subsistência da família e uma possibilidade de investimento no futuro profissional. Sem a bolsa auxílio, e atualmente sem nenhuma remuneração tendo em vista a situação de desemprego, as possibilidades de se inserir laboralmente nas ocupações que realmente desejam, como o esporte no caso de Davi e Carolina, se distanciam da realidade destes jovem, lhes fazendo buscar oportunidades em qualquer outra área, pela necessidade, e não pela autorrealização e satisfação a partir da atividade laboral.