• Nenhum resultado encontrado

TOXICOLOGIA FORENSE

CAPÍTULO 7. FUNDAMENTOS DA TOXICOLOGIA FORENSE

A Toxicologia Forense é uma ciência multidisciplinar que se dedica ao estudo dos agentes tóxicos

envolvidos em situações de interesse forense, aos quais incluem análises para detecção, determinação da composição e concentração desses agentes, bem como da ação deles no organismo, os processos de biotransformação e o tempo que perdura seus efeitos.

Para tanto, são comumente necessários conhecimentos químicos, bioquímicos, farmacêuticos, clínicos e de biologia molecular para a realização das análises toxicológicas, visando melhor atender aos questionamentos da Justiça.

Fundamentos da Toxicologia

As análises que envolvem crime onde se suspeita ter ocorrido envenenamento (proposital ou acidental), consumo de substâncias entorpecentes (seguida ou não de overdose), contaminações ocupacionais ou ambientais, ou ainda, testes para novos medicamentos e cosméticos, constituem-se em exemplos de como a pesquisa toxicológica se faz necessária cotidianamente.

124

Perguntado se algum caso criminal, ao longo de sua carreira na perícia, havia sido marcante ou tenha lhe chamado a atenção, o perito relatou o caso de um envenenamento:

“Teve o caso do achocolatado aqui, em Cuiabá, há uns 3 ou 4 anos. Basicamente, uma pessoa [dono do

estabelecimento] envenenou um achocolatado porque ela tinha um mercado, uma mercearia, e tinha uma pessoa furtando lá constantemente. E ela sabia quem era, aí ela deixou esse achocolatado com veneno para a pessoa ir lá, furtar e enfim... Aí a pessoa furtou e não bebeu, mas vendeu para uma senhora que deu para criança dela de 2 anos e, então, a criança veio à óbito por causa disso... Daí veio o conteúdo estomacal da criança. No caso, isso é feito pelo IML [Instituto Médico Legal], onde os médicos legistas fazem a necropsia e encaminham [o material do estômago]. E veio também o achocolatado [...], onde foi detectado o veneno, tanto no estômago, quanto no achocolatado. Esse é o caso mais marcante, inclusive para a Politec, porque é um caso que só foi elucidado por causa da perícia, já que se não fosse o trabalho do perito, qualificado, capacitado, não tivesse feito o trabalho bem feito, seria um caso que não iria descobrir de outras formas, pois tinha suspeita de envenenamento, mas se não encontrasse o veneno lá, o suspeito poderia simplesmente falar que não fez e pronto! E não ia ser elucidado [...]. É um caso muito evidente que a gente não pode fazer justiça com as próprias mãos, pois tem o Estado para isso. E isso virou uma tragédia!” (NICK STOKES, 34 anos).

*Entrevista realizada com peritos das áreas de Balística Forense, Biologia Molecular, Engenharia Legal, Identificação Veicular, Química Forense e Perícias Externas, entre 29 de outubro e 06 de dezembro de 2019.

Logo, devido ao amplo campo de atuação científica e prática, a Toxicologia abarca divisões com diferentes finalidades, dentre as quais: a Analítica (ou Química), a Clínica (ou Médica) e a Experimental – que passam a atender a demanda por análises toxicológicas ambientais, ocupacionais, sociais, de alimentos, de medicamentos, de cosméticos e forenses, por exemplo (OGA et al., 2008).

Em todos esses casos, os profissionais da Toxicologia – incluindo-se os peritos criminais que atuam nesse campo – acabam lidando com conceitos que são fundamentais à compreensão dessa Ciência, os quais serão aqui esclarecidos (mesmo que de maneira breve e pouco aprofundada), dentre eles os de: agente tóxico, toxicidade, efeito nocivo, antídoto, fases de intoxicação, DL50, interações metabólicas, vias de administração e fisiologia básica, bioindicadores e biomarcadores, toxicocinética e toxicodinâmica.

Agente tóxico ou toxicante é qualquer substância capaz de exercer efeito danoso ou de

induzir danos à um organismo vivo. Sua ação sempre estará sujeita à fatores qualitativos e quantitativos. Do ponto de vista qualitativo, os efeitos dependerão da susceptibilidade da espécie (o chocolate, por exemplo, pode fazer mal aos cães e não aos humanos) e do próprio indivíduo, incluindo-se: o seu estado nutricional, em casos de desnutrição é comum a diminuição do número de enzimas para metabolizar/biotransformar o toxicante; a idade, como a fragilização da

125

resistência imune em idosos, ou quando ela é pouco desenvolvida em recém-nascidos; e o sexo, uma vez que há substâncias que causam danos às mulheres e não aos homens (e vice-versa), especialmente quando elas estão gestantes, como é o caso do medicamento Talidomida®. Já os aspectos quantitativos se relacionam à dose e à concentração administrada no indivíduo ou ao qual ele tenha sido exposto.

Já a toxicidade é a propriedade do agente tóxico em produzir efeito nocivo ou induzir disfunção metabólica. Sendo que esses efeitos podem:

Afetar a função: diminuindo as respostas imunológicas à uma nova sobrecarga do

toxicante, devido a morte de células e/ou inibição (ou inativação) de enzimas que participam da biotransformação (metabolização do toxicante, visando a excreção);

Afetar a homeostasia: podendo alterar o equilíbrio normal do organismo, tais como:

o pH, a temperatura corporal, a concentração hídrica (quantidade de água) e a manutenção da glicemia (glicose no sangue);

Aumentar a susceptibilidade às exposições posteriores: promovendo a fragilização

do organismo, fazendo com esteja suscetível também a outros tipos de agentes tóxicos, sejam eles químicos, físicos, biológicos ou sociais.

Após a exposição à um agente tóxico, efeitos nocivos podem ser desencadeados no organismo, processo este que é denominado de intoxicação. A intoxicação pode ser dividida didaticamente em quatro fases, segundo OGA et al. (2008, p. 6):

Exposição: relaciona-se ao contato entre a substância e o indivíduo, da qual se

considera as diferentes vias de administração ou formas de exposição ao toxicante, a dose ministrada, sua concentração e o tempo de exposição, além das características físico-químicas do próprio agente tóxico e da susceptibilidade individual a ele;

Toxicocinética: compreende os modos de absorção, distribuição e armazenamento

do toxicante pelo indivíduo, bem como os processos (ou tentativas) de biotransformação dessas substâncias, incluindo-se a velocidade de excreção pelo organismo – que estão diretamente relacionadas às propriedades do toxicante, em especial, a sua biodisponibilidade (ou seja, o quanto da substância pode ser “aproveitada” pelo organismo);

126

Toxicodinâmica: diz respeito ao que o toxicante faz com o organismo, incluindo-se o

surgimento dos desequilíbrios homeostásicos (alteração da concentração hídrica, da temperatura corporal, da glicemia, do pH, etc.)

Clínica: dá-se pelo aparecimento dos sinais (que são observados via exames) e

sintomas (que são relatados pelo próprio indivíduo) desencadeados pelos efeitos nocivos do toxicante.

Por outro lado, o agente tóxico pode ser neutralizado por um antídoto (ou inibidor), que nada mais é do que uma substância que “antagoniza” os efeitos nocivos do toxicante.

Neste sentido, para que uma determinada substância seja capaz de provocar danos à um organismo, a sua quantidade deve ser considerada. Assim, visando estabelecer alguns parâmetros para indicar o quão mortal é uma determinada substância, criou-se a Dose Letal 50 (DL50, ou dose letal mediana): uma medida que indica a quantidade de toxicante necessária para causar óbito em 50% da população em estudo (geralmente de ratos, cujos dados são transpostos estatisticamente para os seres humanos). Como exemplo podemos citar: a nicotina (um dos componentes do cigarro), cuja DL50 gira em torno de 1mg/Kg (o que equivale à 0,08g para uma pessoa adulta pesando cerca de 80 Kg); o etanol, que tem a DL50 igual à 7,06g/Kg (a determinação deste parâmetro foi feita com ratos, via ingestão oral, tendo possivelmente valores semelhantes para o ser humano); e a água, que tem DL50 de 90g/Kg (ou seja, se uma pessoa de 90Kg ingerir cerca de 8,1 litros de água de uma única vez, há 50% de chance que ela morra).

Em conformidade com esse parâmetro, cabe destacar o famoso enunciado do médico e alquimista alemão Paracelsus (1493-1541), ao qual afirmou: “Todas as substâncias são venenos, não existe nada que não seja veneno. Somente a dose correta diferencia o veneno do remédio” (SOUZA, 2019). Ou ainda, em traduções populares posteriores: a diferença entre o remédio e o

veneno está na dose.

Em tempo, o conceito de veneno pode ser entendido como sendo toda substância capaz de causar intoxicação ou óbito àqueles que a ela tenham sido expostos, mesmo que em pequenas quantidades (OGA et al., 2008).

Contudo, não é somente a dose que tem relação direta com os efeitos nocivos provocados ao organismo, mas é importante também a forma como ela é administrada. E isso está intimamente relacionado à fisiologia do local de exposição. Para tanto, em termos práticos, a ordem das vias de acesso que apresentam os maiores riscos – em condições gerais e considerando

127

um mesmo toxicante – de exposição são (em ordem crescente): dérmica (contato com a pele), oral (pela boca, seguindo todo o percurso do aparelho digestivo), intradérmica (subcutânea, abaixo da pele), intramuscular (no tecido muscular), intraperitoneal (no tecido abaixo do músculo), pulmonar (ou inalatória, com absorção pelos pulmões) e intravenosa (na corrente sanguínea).

Diante disso, a inalação pulmonar de um toxicante, geralmente, é mais preocupante que a exposição dérmica, por exemplo. Isso porque o tecido dérmico é menos vascularizado, sendo a pele a primeira barreira de proteção do indivíduo, com diversas camadas (epiderme, derme e hipoderme). Já na administração pulmonar, corre-se maiores riscos devido à sua alta vascularização, que pelas trocas gasosas ocorridas nos alvéolos pulmonares, torna-se possível a rápida distribuição do agente tóxico por todo o metabolismo, além de poder causar problemas também na captação e distribuição de gás oxigênio (O2).

Por outro lado, quando o toxicante, após a exposição, adentra ao organismo, algumas interações metabólicas são possíveis pela administração de outras substâncias, as quais podem provocar situações que agravem ainda mais os efeitos nocivos, mesmo que a intenção seja de tentar inibi-los. Assim, a interação metabólica pode ser do tipo: sinérgica de adição (quando os efeitos da nova substância se soma aos efeitos do toxicante), sinérgica de potenciação (quando uma substância é capaz de potencializar os efeitos da outra) ou antagônica (no caso do antídoto, que inibi ou neutraliza a ação do toxicante). Situações desse tipo são mais comuns em casos de automedicação (sem a devida orientação médica) ou em tentativas de suicídio pela ingestão de diferentes medicamentos.

Logo, visando detectar processos de intoxicação ou possibilidade de envenenamento, sobretudo em investigações forenses, exames toxicológicos podem ser realizados a partir da análise instrumental de matrizes biológicas (sangue, urina, fezes, suor, sêmen, saliva, pelo, cabelo e unha, por exemplo), especialmente para identificar e quantificar os toxicantes e seus metabólitos (produtos da biotransformação), bem como examinar a presença de biomarcadores.

Os biomarcadores são moléculas (como as enzimas de biotransformação) que quando quantificadas podem oferecer parâmetros para se verificar prováveis distúrbios metabólicos (inclusive a intensidade deles e o estágio dos danos) e intoxicação. Assim, os biomarcadores são parâmetros que apontam informações mais individualizadas, diferentemente dos chamados

bioindicadores – que são organismos vivos (como fungos, plantas, aves ou peixes) muito sensíveis

128

alterações morfológicas, metabólicas ou comportamentais, que indicam contaminação numa população ou ecossistema, por exemplo.

Desta forma, utilizando-se do entendimento profundo desses processos e de muitos outros, concomitantemente com as diversas técnicas e metodologias desenvolvidas ao longo das últimas décadas, os toxicologistas forenses têm contribuído cada vez mais na resolução de crimes, dando suporte fundamental às decisões dos tribunais.