• Nenhum resultado encontrado

O género é um conceito ligado aos atributos sociais que são aprendidos ou adquiridos durante a socialização enquanto membro de uma dada comunidade. Sendo estes atributos comportamentos aprendidos podem e variam ao longo dos tempos e entre culturas. Género refere-se, assim aos atributos sociais, papeis, actividades, responsabilidades, poderes e necessidades relacionadas com o facto de se ser homem (masculino) ou mulher (feminino) numa dada sociedade e num dado tempo, enquanto membro de uma dada comunidade específica dentro de uma sociedade. As identidades de género da mulher e do homem determinam a forma como são entendidos e como se espera que pensem e ajam144.

A situação de dominação ou submissão nas relações de género masculino e feminino também não é um facto natural, mas acontece no processo das relações sociais. As relações sociais de género vão evidenciar-se nas funções exercidas pelo masculino e pelo feminino nos processos de produção e reprodução da vida.

construção de conhecimentos, valores e identidades numa multiplicidade de âmbitos sociais (Kinchloe y Steimberg, 1999)

144 Cf. Gender in Development Programme (2001) Learning & Information Pack Gender Analysis, United

As temáticas dos estudos feministas e de género estão associadas tanto às grandes fases do feminismo145 como aos contextos e problemas que lhes suscitaram. O feminismo tem sido delimitado por etapas históricas, distinguindo-se três grandes fases: a fase universalista, humanista ou das lutas igualitárias pela aquisição de direitos civis, políticos e sociais; a fase diferencialista e/ou essencialista, das lutas pela afirmação das diferenças e da identidade; e uma terceira fase, denominada de pós-moderna, derivada do desconstrucionismo, que deu apoio às teorias dos sujeitos múltiplos e/ou nómadas.146

O conceito de género surgiu internacionalmente, pela primeira vez, na considerada segunda vaga do feminismo, em 1972, em pleno activismo das décadas de 1960 e 1970, com Ann Oakley, na obra Sex., Gender and Society.y cumprindo o objectivo político e conceptual de problematizar as diferenças entre homens e mulheres fora da esfera da biologia (Amâncio, 2003).

Dominelli (2006), defende que o conceito de género deve ser entendido como um elemento crucial nas identidades socialmente construídas e assenta numa díade binária que se constitui e é constituída por homens e mulheres. As relações entre os sexos são estabelecidas dentro das comunidades e configuraram as categorias de homens e mulheres nessa díade binária de superioridade e inferioridade que favorece os homens e propaga um défice no modelo da mulher, apresentado como falta dos atributos positivos atribuídos aos homens. Este “acordo” entre homens e mulheres é tido como natural e imutável. Definir como diferença inferior e agir sobre essa presunção cria relações opressivas claramente tendentes a perpetuar umdesequilibro favorável à representação social do homem.

A opressão é a negação sistemática dos direitos individuais e colectivos das pessoas através de relações de dominação ou de desigualdade. Estes dividem-se em duplas binárias em que uma parte é superior e outra é inferior. E são localmente e especificamente configuradas através de interacções diárias (Giddens, 1992).

145

O feminismo é uma filosofia universal que considera a existência de uma opressão específica a todas as mulheres. Essa opressão manifesta-se tanto a nível das estruturas como das super-estruturas (ideologia, cultura e política). Assume formas diversas conforme as classes e camadas sociais, nos diferentes grupos étnicos e culturais (Canôas, 1997: 48,49). O feminismo pode ser considerado “um movimento de procura da compreensão das condições sociais das mulheres, tendo como objectivo melhorá-las e lutando por esse objectivo. Procura eliminar as desigualdades” (Gordon145, 1986, citada por Nunes, 1997:38).

Para Dominelli (2002), as desigualdades das relações sociais dependem de interacções sujeito-objecto no qual o sujeito consegue impor a sua visão do mundo sobre o objecto ou a definição dessa visão de mundo como um estado natural das coisas que não precisa e não podem ser alteradas. Esta dinâmica é central na (re) produção de relações opressivas, que Foucault (1990) considera essencial para a internalização das normas dominantes e garante o consentimento dos povos oprimidos à sua opressão. Nas relações igualitárias, as interacções são baseadas em ambas as partes, reconhecendo os respectivos estatutos. As pessoas agem como sujeitos, ou seja, criadores da sua própria realidade.

As relações de opressão de género são reproduzidas através de interacções sociais em que homens e mulheres aceitam as diferenças entre eles como que significando numa hierarquia de valor em que os homens são privilegiados. No entanto, sugere Dominelli (2006), as mulheres podem transformar as suas posições, unindo-se e organizando-se para dar força ao poder das mulheres na promoção da mudança do seu mundo, de acordo com seus próprios desejos.

No plano dos direitos e dos deveres, há que ter em conta as situações particulares em que são exercidos e os factores implicados na sua concretização, em que o género tem grande importância. Para além das importantes conquistas civis e políticas, importa também uma cidadania plena para as mulheres, que inclua o que é nitidamente feminino, o que aponta para a importância das identidades, acentuando as diferenças.

Para Frazer “os processos dominantes em que se tem estruturado a construção social da identidade feminina sob a égide do patriarcado, mantêm-se ligados à ideologia com a separação da produção como esfera material e, portanto, económica e a reprodução como esfera simbólica e não material” (Frazer, 1994:202). Para esta autora, a existência da dicotomia entre produção material e reprodução não material é ideológica, servindo para legitimar, como trabalho não pago, a maternidade, cuidados com as crianças, velhos e/ou doentes.

Será também importante tecer algumas considerações sobre a teoria de Habermas (1990) da acção comunicativa, que aponta para uma racionalidade que tem muito a ver com a cultura feminina e a inter-relação das mulheres com o mundo e a vida. Para Habermas (1990), a razão de ser de todo conhecimento gira à volta da emancipação dos indivíduos, que pode ser encorajada pela auto-reflexão crítica sobre a sua prática. Este sociólogo considera que se verifica na contemporaneidade a “mudança de paradigma da razão centrada no sujeito para a razão comunicacional” (Habermas, 1990:281).

A razão comunicacional traduz-se no processo de interacção indivíduo/sociedade, onde Habermas (1990) encontra os fundamentos da identidade individual, considerando a identidade o objectivo último da socialização.

Esta mudança de paradigma vem trazer ao pensamento contemporâneo valores e sentidos que permaneciam ocultos no paradigma positivista, pela necessidade deste em demonstrar a verdade, pretensamente objectiva. Tais abordagens permitem constatar, ainda, que os fundamentos do saber, da compreensão das pessoas e da interpretação do mundo estão a mudar, colocando em questão princípios que pareciam intocáveis.

Habermas interessa-se pela explicação do processo de interacção que fundamenta a identidade individual e que é, simultaneamente, um processo de aquisição de competências universais, em que se inclui a competência comunicativa.

As mulheres residentes no Casal da Mira, enquanto sujeitos de intervenção do Serviço Social, constituem um grupo social, precário do ponto de vista económico, profissional, sócio-cultural e político, cuja discriminação assenta, em grande parte no género.

O modo como estas mulheres vêem, sentem e interagem com a realidade, irá, por certo, influenciar a construção das dinâmicas que se vão desenvolver e confluir para a reconfiguração das identidades das mulheres no contexto do bairro. Podemos entender esta dimensão à luz da teoria da acção comunicativa de Habermas, na medida em que é na explicitação do processo de interacção indivíduo/sociedade que se encontram os fundamentos da identidade individual. Esta teoria aponta, como vimos, para uma racionalidade que tem muito a ver com a especificidade da inter-relação das mulheres com o mundo da vida e com a sua forma expressiva de relacionamento com o outro, o que a leva a expressar os seus afectos e a adquirir uma empatia natural, uma enorme capacidade de compreensão do outro.

Reportando-nos ao Casal da Mira, é também de salientar a competência comunicativa manifestada pelas mulheres, designadamente no seu contacto com as diversas instituições e serviços, como, Câmara Municipal, Segurança Social, Escolas, Centro de Saúde ou o Banco Alimentar, em que são elas que apresentam e negoceiam apoios e resolvem problemas, para além dos vários expedientes utilizados para angariar proventos para o orçamento familiar desde trabalhar em mais do que um local, a venda de produtos diversos e a ajuda de familiares. Mobilizam-se, também, como interlocutores para resolver problemas de vizinhos ou problemas do prédio, onde moram ou do próprio bairro.

Como defende Dinah Ferreira, para a aquisição da competência comunicativa, é necessário recuperar o saber e conquistar o agir femininos (Ferreira, 1997:107). Esta questão pode aplicar-se às mulheres entrevistadas no Casal da Mira, na sua interacção com o meio.

Para situar estes aspectos, na realidade estudada, apresentam-se alguns excertos de entrevistas, que traduzem o sentir das mulheres relativamente ao novo bairro:

“….Senti-me muito isolada, quando mudei para aqui, mas já fiz novas amigas …..depois viver em prédios, não dá para nos encontrarmos com facilidade, eu quase não vejo a minha vizinha do lado, mas aqui no prédio tentamos ser solidários, principalmente no meu patamar nós damo-nos muito bem, eu não tenho comida vou comer a casa da Tia Palmira” (Margarida, 38 anos)

“Foi muito chocante a mudança, ficou tudo tão espalhado que nem sequer dá para nos visitarmos ao fim do dia. A minha tia está sempre a reclamar que eu estava sempre na casa dela e agora não apareço, mudou completamente a vida das pessoas. Então agora alguma vez eu vou tocar à campainha das pessoas à 1 hora da manhã, só para dizer que já cheguei, nem pensar. Só a minha tia que mora no rés do chão do nº 2 é que eu continuo a bater no estore, quando chego, para ela saber” (Eunice, 23 anos)

“Adaptei-me bem ao bairro, porque eu sou uma pessoa muito comunicativa, e não gosto de ver ninguém mal, gosto de ajudar as pessoas e preocupo-me com o que se passa, já na Quinta da Lage, o contacto da Câmara era o meu……. Eu gostava de

ter uma actividade com crianças ou com idosos, gostava de

colaborar.……….relativamente aos serviços, como a Câmara, a Segurança Social, ou a Saúde deixam a desejar um bocadinho. Na Segurança social, eu gosto muito da Drª, ela tem me resolvido muitas situações ……. eu tenho lá um processo grande porque sempre fui ajudada …..Quanto à Saúde, gosto muito da minha médica no Posto Médico da Venda Nova”. (Mónica, 45 anos)

Na abordagem às questões de género e no desenvolvimento de estratégicas de fortalecimento nas relações, das mulheres como sujeitos, a construção da cidadania e a institucionalização dos direitos sociais são fundamentais.

Com efeito, a cidadania é um conceito histórico, filosófico e político bastante importante, que não deve ser esvaziado do seu conteúdo147. De acordo com Ferreira (2011:57), “(…) para Marshall, a cidadania baseia-se numa progressão de direitos civis, políticos e sociais que são satisfeitos pelo Estado através de programas sociais. Os direitos civis são necessários para assegurar a liberdade do indivíduo de intervir. Os direitos sociais

147

Segundo Bruto da Costa, cidadania “traduz-se no acesso a um conjunto de sistemas sociais básicos, (…) agrupados em cinco domínios: o social, o económico, o institucional, o territorial e o das referências simbólicas” (Costa, 1998:14).

compõem um sub conjunto de direitos, ou seja direito ao bem-estar, rendimento social de inserção, direito à participação e viver civilizadamente segundo os standars de uma sociedade organizada. Marshall considera que a expansão dos direitos de cidadania se desenvolve através do conflito no seio da sociedade civil. Perspectiva assimilada por diferentes grupos profissionais que seguem uma abordagem de empowerment” (Ferreira, 2011:57).

Na perspectiva apresentada, Fernando Casas148 aborda a cidadania, como uma construção política que corresponde a uma estratégia de criar cidadãos, considerando-a uma realidade dinâmica que tem avanços e retrocessos, fruto de conquistas, pois os direitos resultam de convulsões e lutas sociais enfrentando resistências relativamente ao reconhecimento dos mesmos. A cidadania também varia com o tipo de regime e vontade política, pois, esta passa pelo estabelecimento de instituições e serviços para concretizar os direitos, sendo necessário que as políticas sociais incluam a perspectiva de género, classe, etnia, com vista à correcção das desigualdades.

2 - Interdisciplinaridade do saber na compreensão social das questões

Documentos relacionados