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A multiculturalidade é uma das características de grande parte dos bairros de habitação social. Associado à multiculturalidade está o fenómeno da imigração, daí fazer- se uma referência a estas duas questões que se interligam.

O início do século XXI caracteriza-se por um cenário de expressões plurais, onde complexas realidades multiculturais coexistem e se intercruzam numa ampla diversidade de tradições políticas, sociais, religiosas e de género. Esta realidade é consequência, em parte, de uma sociedade industrial e pós colonial onde se verificaram, nas últimas décadas, grandes fluxos migratórios, em que a diversidade cultural na actualidade se insere em múltiplas trajectórias culturais, migratórias e económicas de dimensões globais, com referências específicas do passado (Nash e Marre, 2001:14).

Apesar dos movimentos das populações serem uma constante ao longo da história da humanidade, “o fenómeno da globalização provocou nos últimos anos gigantescos movimentos migratórios. Segundo a ONU existem mais de 130 milhões de pessoas a viver fora do seu país, e destas, cerca de 30 milhões vivem em situação ilegal”( Silva, 2005:63).

Estão, a montante deste fenómeno, problemas como o crescimento do desemprego e da pobreza nos países de origem, bem como a guerra e a instabilidade política em muitos países. No entanto, o que determina os fluxos migratórios não são apenas as necessidades das pessoas, mas também as necessidades de mão de obra dos países que os acolhem, quer seja de forma legal ou ilegal.

Em Portugal, os imigrantes continuam a enfrentar o problema do reconhecimento de direitos iguais, havendo necessidade de legislação que possibilite a legalização dos imigrantes e de políticas de inserção, que respeitem as culturas de origem.

As questões que derivam das migrações não constituem, por si só, a marca do discurso intercultural. Este integrará necessariamente toda a dimensão cultural, não como fenómeno, mas como fazendo parte dos indivíduos que vivem num mundo multicultural e desenvolvem competências em várias culturas. Culturas essas carregadas de informação diferente que permite, a nível individual, a construção de uma visão própria do mundo, de uma versão própria da cultura, uma versão multicultural do mundo em que vivemos.

A interculturalidade não é a simples coexistência multicultural, pois inclui as interacções e transformações que os indivíduos ou grupo, pertencentes a culturas diferentes, sofrem, quando entram em contacto.

O intercultural define-se assim, “enquanto processo, como um modo particular de interacções e de inter-relações que se produzem sempre que culturas diferentes entram em contacto, bem como pelo conjunto de trocas e transformações que daí decorrem” (Albuquerque e al, 2000: 11). A este respeito, é de referir que “o multiculturalismo crítico implica uma visão integradora que pretende entender os mecanismos de opressão e discriminação, ou de liberdade e reconhecimento, em múltiplos aspectos e dimensões (Nash e Marre, 2001:37). Estas autoras referem também que, “do mesmo modo que o multiculturalismo implica um questionamento da homogeneidade cultural, também obriga a questionar a homogeneização de uma cultura masculina e, portanto, a estabelecer formas de reconhecimento de autoridade e credibilidade das vozes plurais das mulheres” (Nash e Marre, 2001: 44).

A partir das entrevistas, observa-se que a presença de culturas diferentes, por si só, não representa um problema:

“ ….No meu prédio, tenho vizinhas de Cabo Verde, da Guiné e uma vizinha é cigana e damos todas bem” (Maria Sábado, 37 anos)

No entanto, quando se juntam pessoas de diferentes culturas e de bairros diferentes, que não tinham nenhuma relação anterior, as questões étnico-culturais podem constituir um constrangimento. Para perceber o modo como esta questão é sentida pelas mulheres entrevistadas, apresentam-se alguns testemunhos:

" A princípio, houve problemas com os ciganos e um rapaz cabo-verdiano, chegou até a haver confrontos……foi só isso que eu notei, de resto não há problemas" (Margarida, 38 anos)

" Eu pessoalmente dou-me bem com as pessoas e nunca ninguém me fez mal, mas o mal disto, é que estão aqui pessoas de várias culturas, e de bairros diferentes e aquilo que umas estão habituadas a fazer as outras não gostam. E depois chocam-se umas com as outras." (Luísa, 42 anos)

O bairro Casal da Mira constitui, de facto, uma realidade multicultural, onde interagem pessoas de diferentes origens, portadoras de referências culturais diversas122 .

O processo intercultural passa por assegurar condições que coloquem os indivíduos, portadores de culturas diferentes, em relação satisfatória, com o objectivo de atenuar os efeitos nefastos desses encontros e retirar deles o que há de positivo. O intercultural não é a simples coexistência multicultural, pois inclui as interacções e transformações que sofrem os indivíduos ou grupos, pertencentes a culturas diferentes, quando entram em contacto. O intercultural introduz a noção de reciprocidade nas trocas, traduzindo a ligação (inter- penetração e inter-acção) (Clanet, 1993).

O intercultural define-se, assim, enquanto processo, como um modo particular de interacções e de inter-relações que se produzem sempre que culturas diferentes entram em contacto, bem como pelo conjunto de trocas e transformações que daí decorrem.

Uma mulher do Casal da Mira referiu a propósito desta questão:

"……Os meus filhos vão ter que batalhar para serem aceites na sociedade, vão ter que batalhar para serem alguém e vão ter que fazer tudo e mais alguma coisa para terem todo o orgulho em seus valores. O meu filho, neste momento fala português e também fala crioulo. Ali naquela escola também tem crianças da Ucrânia, se puder falar ucraniano óptimo, não me vou importar com isso, só lhe vai fazer bem. " (Eunice, 23 anos)

Outro conceito importante, que se prende com a interacção entre culturas, é o conceito de identidade, que é bastante complexo, pois corresponde a múltiplas intersecções de classe, etnia, género e sexo que fazem o indivíduo reagir de maneira diferente, homens e mulheres terão atitudes políticas não simplesmente com base no género, mas também conforme a etnia, a classe, o sexo, numa interacção complexa (Adler, 1996, Dugger, 1996 e Barnett, 1996).

Habermas entende identidade, como a estrutura simbólica que permite a um sistema da personalidade assegurar a continuidade e consistência na mudança das suas circunstâncias biográficas e, através das suas diversas posições no espaço social (Habermas, 1990). Como refere Madureira Pinto (1991)123, trata-se de um conceito “eminentemente relacional”, já que resulta do relacionamento dos indivíduos em sociedade e de toda a multiplicidade de referências identitárias com que estes se deparam e através

122 Vide Capítulo 1 – Contextualização do estudo /Caracterização sócio-demográfica da população

123 Vide José Madureira Pinto (1991), Considerações sobre a Produção Social de Identidade”, Revista

dos quais se geram processos de “identificação/integração” ou de “identização/diferenciação” relativamente aos grupos sociais aos quais pertencem ou dos quais se distinguem.

A ilustrar esta questão, no Casal da Mira, apresentam-se algumas afirmações, nomeadamente de uma mulher portuguesa cigana:

“Aqui só há 2 ou 3 ciganos. Eu pensava que nos prédios era mais sossegado, se eu soubesse que nos prédios era assim, nunca tinha saído das barracas, era melhor estar nas barracas do que aqui...aqui não estou alegre, não estou contente, não estou nada.” (Arlete, 51 anos)

A abordagem dos processos identitários exige uma análise de todos os factores sociais e culturais que envolvem os indivíduos e o modo como os mesmos se relacionam com a multiplicidade de referências identitárias com que se confrontam num dado momento e num dado contexto específico, uma vez que estas podem variar consoante as diferentes situações de relacionamento social.

A título de exemplo, referia uma mulher de origem cabo-verdiana e nacionalidade portuguesa, integrada num curso de formação profissional:

“Às vezes, fico baralhada….houve uma feira de expressões lá na escola, e eu quando dei por mim estava a fazer tudo sobre Cabo Verde e não fiz nada sobre Portugal. Trouxe bonecas de Cabo Verde, para verem como se fazem as bonecas com a folha do milho, as bonecas de trapo… é que nem me lembrei de fazer as coisas da sociedade portuguesa, só fiz as coisas de Cabo Verde. São coisas que depois quando me dou conta fico mesmo balançada ou vou para um lado ou vou para o outro.” (Eunice, 23 anos)

A produção de identidades constitui-se como um processo que “depende de aspectos sociais e culturais como as referências culturais dos indivíduos, os seus percursos realizados ao longo da vida, as suas situações concretas num dado momento particular e os objectivos ou estratégias sociais que vão desenvolvendo” (Gonçalves, 1994: 134).

Relacionando com as práticas quotidianas das mulheres residentes no Casal da Mira para se entender o processo de (re) construção das identidades locais e de produção das “pontes” que permitam a comunicação entre as diferentes unidades socioculturais do bairro e entre estas e a envolvente, contrariando assim o discurso exógeno dominante que coloca rótulos na população residente nestes bairros, criando uma imagem distorcida e estigmatizante, através da homogeneização da diferença social e cultural” (Antunes, 2001: 221).

Para ilustrar os percursos de vida de algumas mulheres, residentes no Casal da Mira, apresenta-se excerto da trajectória de vida de uma mulher Guineense, que ficou viúva muito cedo:

“- Na Guiné era funcionária pública…….. Em Portugal, foi tudo muito difícil, andei na apanha do tomate, por isso tenho problemas de saúde….. Quando morei na Buraca, tinha lá o meu negócio…..Fazia e vendia os meus petiscos….. foi isso que me ajudou a criar os meus órfãos. Eu pagava 75 contos, água, luz …….Depois consegui umas horas, nas firmas (em limpezas) para ter desconto na Segurança Social…… Próximo do realojamento, fiz um curso de auxiliar, mas não apareceu nada, voltei às limpezas outra vez……….Na parte da tarde, ganho 200 e tal €, vou a correr fazer umas horas, às vezes há uma senhora na Alameda e há outra em Queluz e há outra em Algés....corre muito, pago renda, pago água, pago luz. É muito difícil.” (Sabá, 45 anos)

Assim, a heterogeneidade de referências culturais e de situações sociais que caracterizam o bairro tem influência no modo como se vê e se representa o espaço e nas formas como dele se apropriam os moradores, e, neste caso, as mulheres.

Os processos de (re) construção das identidades socioculturais são, assim, bastante complexos. Por um lado, existem múltiplas referências identitárias que cada uma das mulheres encerra em si própria e por outro há particular permeabilidade à mudança dessas identidades, através dos diferentes processos sociais pelos quais as mulheres passam ao longo da vida.

Sobre esta questão, Castells (2003) define identidade, relativamente aos actores sociais, como “o processo de construção do significado com base num atributo cultural ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras formas de significado” (Castells 2003: 3) .

Este autor, partindo do princípio de que a construção social da identidade ocorre sempre num contexto determinado por relações de poder, propõe uma distinção entre três formas e origens de construção de identidades, que podemos associar à identidades dos moradores do bairro Casal da Mira:

- identidade legitimadora: é introduzida pelas instituições dominantes da sociedade

no intuito de expandir e racionalizar a sua dominação sobre os actores sociais. Eventualmente, as instituições sociais, como sejam, as autarquias, representam esta forma de identidade;

- identidade de resistência: criada por actores que se encontram em

desenvolvendo formas de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos;

- identidade de projecto: quando os actores sociais, servindo-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir a sua posição na sociedade e de provocar a transformação de toda a estrutura social.

Os processos de formação de identidades socioculturais encontram-se, assim, intimamente ligados à questão do confronto entre diferentes grupos sociais. O conceito resulta do relacionamento dos indivíduos em sociedade e de toda a multiplicidade de referências identitárias com que estes se deparam e através dos quais se geram processos de identificação ou de diferenciação relativamente aos grupos sociais aos quais pertencem ou dos quais se distinguem.

Tendo presente o contexto da pesquisa, é de referir o conceito de identidade de bairro de que a população local é produtora e portadora, apresentada por Firmino da Costa (1999), como uma identidade colectiva, em dois sentidos, a identidade cultural como atributo identitário de cada um de um conjunto de indivíduos residentes no Bairro e a identidade colectiva, por se tratar de um perfil identitário pessoal partilhado.

A identidade colectiva inscreve-se, assim “nas representações simbólicas partilhadas por um conjunto de indivíduos, mas especificamente na medida em que se reporta a algo que nos padrões culturais prevalecentes entre eles, é representado como uma entidade colectiva singular” (Costa, 1999:110).

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