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governamental e as políticas públicas

No documento O-MUNDO-RURAL-2014 (páginas 67-70)

Os capítulos da Parte 6 reagem à quinta tese, que apresenta uma hipótese um tanto ousada sobre o desenvolvimento agrário brasileiro, pois sugere que o Estado brasileiro e a ação governamental lato sensu estariam gradualmente deixando a agropecuária desenvol- ver-se de forma mais autônoma, reduzindo as interferências que foram típicas, por exem- plo, durante os anos de modernização da década de 1970. A tese tem alguma coragem, se for verdadeira, quando confrontada com as condições de profunda heterogeneidade estrutural e os aspectos sociais das regiões rurais. Se ainda existe uma dimensão expressiva de pobreza rural, por exemplo, poderia o Estado se distanciar de tais grupos sociais? Ainda que vencida a reforma agrária, conforme alguns capítulos discutiram na parte anterior, a ação governamental se manterá indiferente ao atual processo de concentração também da produção agropecuária? O grupo de autores que primeiramente se dedicou ao exame da tese à luz da história contemporânea do Brasil, identificando as ações do Estado e suas marcas principais no último meio século, entendeu que poderia existir comprovação fac- tual, mas apenas parcial, da proposição geral sobre a ação governamental voltada para as atividades agropecuárias. Esses autores (Antônio Márcio Buainain, Carlos A. M. Santana, Felipe Prince Silva, Junior Ruiz Garcia e Pedro Loyola) produziram os dois capítulos iniciais da Parte 6.

No Capítulo 1, os autores se dedicaram a oferecer “uma breve reflexão sobre a trajetória da política agrícola nos últimos 55 anos” (p. 798, neste livro), indicando avanços e retrocessos. Nesses anos, sugerem que houve uma “passagem da intervenção planejada para a intervenção sem plano que caracteriza a política contemporânea” (p. 798, neste livro). A ênfase da análise, contudo, está no período dos anos 1990 aos nossos dias, indicando que, na década de 1990, ocorreu uma reorientação de natureza mais liberal destinada a recompor as funções básicas do mercado como sinalizador para a alocação de recursos. Como resultado, es- pecialmente o crédito rural foi fortemente modificado, com uma “redução da participação das fontes públicas (Tesouro) e reguladas (exigibilidades bancárias) de financiamento do crédito ru- ral” (p. 804, neste livro) . Mas os autores advertem que a redução da ação governamental naque- les anos resultou, em especial, da restrição de recursos e não de decisões políticas e estratégicas. O capítulo apresenta e descreve novos mecanismos e iniciativas (como a Cédula de Produto Rural e o Programa de Securitização, entre outros), os quais contribuíram para o posterior aprofundamento da financeirização do setor agrícola. Na parte final do capítulo, é discutida

a fase mais recente, a partir de 2003, em que ainda há uma busca de rumo, pois vivemos anos de transição da “velha” para a “nova” política agrícola; a vigência dos velhos tempos é revelada, em especial, por serem quase todas as políticas especialmente de financiamento, ainda que propondo uma ótica nova, como o Programa Agricultura de Baixo Carbono. Com tudo somado, alertam os autores, “a evolução das políticas parece refletir mais as pressões de sucessivas conjunturas do que uma visão estratégica clara do papel da agricultura no desen- volvimento nacional” (p. 820, neste livro).

No Capítulo 2, igualmente assinado pelos mesmos autores, o foco é mais específico e centrado em três políticas agrícolas principais: o crédito rural, o seguro agrícola e o Pro- grama Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Essa ênfase específica, alertam os autores, “reflete uma das principais limitações da política agrícola brasileira, ou seja, o fato de se manter voltada quase inteiramente para a esfera do financiamento da produção” (p. 830, neste livro), ignorando outros temas cruciais que emergiram no período contemporâneo, da governança rural aos temas ambientais, entre muitos outros que pode- riam ser citados. O capítulo analisa, com riqueza de detalhes, as três políticas citadas, indi- cando diversos desafios de urgente resolução. Sobre o crédito rural, por exemplo, bastaria apontar que apenas um quinto dos estabelecimentos teria acesso a contratos de custeio, mesmo que essa seja uma estimativa provavelmente exagerada. Sobre o seguro agrícola, indica-se que somente 14% da área ocupada com cultivos temporários e permanentes tem cobertura, uma demonstração da fragilidade de tal política. Sobre o Pronaf, os autores salientam que sua principal insuficiência é o foco quase exclusivo no crédito, quando é abissal a heterogeneidade do grande grupo de pequenos produtores que constitui o alvo privilegiado desse programa.

O Capítulo 3, que integra essa parte, tem a autoria de José Garcia Gasques e Eliana Teles Bastos e examina os gastos públicos aplicados nas funções principais que alocam recursos financeiros para as atividades agropecuárias, isso é, as funções “agricultura” e “or- ganização agrária”. O estudo ilumina os gastos da União (70% dos gastos públicos totais), sinalizando as prioridades estatais estabelecidas e suas variações ao longo dos anos. Uma das verificações mais impressionantes é o registro de uma redução de aproximados R$ 100 bilhões nos gastos públicos executados naquelas duas funções, quando comparados os gastos nos anos 1990 com os do período seguinte (2000-2009). Em observação paralela, os autores também mencionam que o total do gasto da União com aquelas funções em 2013 atingiu apenas 1,43% do total, quando o percentual já chegou a 12% na década de 1980. O capítulo adiciona diversas informações e explicações relevantes aos dois capítulos ante- riores, inclusive relatando fatos ilustrativos que permitem refletir sobre desenvolvimentos recentes. Por exemplo, a função “agricultura”, relacionada especialmente às atividades do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), tem a metade de seus gastos administrada, de fato, pelo Ministério da Fazenda, o que talvez explique o gradual esvazia-

mento do Mapa. Outra tendência significativa que tem sido observada na evolução dos gastos públicos é a crescente dependência dos recursos do Tesouro, além de prioridades que provavelmente necessitariam maior discussão pública. Por exemplo, no âmbito da função “organização agrária”, usualmente associada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, a prioridade tem sido o Pronaf (que absorveu quase 20% do total dos recursos em 2013), mas os gastos com o Programa de Defesa Sanitária corresponderam ao valor inexpressivo de ape- nas 1,4% do total, no mesmo ano. Outra curiosa revelação é a redução observada no número de assentamentos formados e de famílias beneficiadas, enquanto as despesas na mesma alocação, contrariamente, continuaram a subir em termos reais nos anos mais recentes.

Os capítulos 4 e 5 (os dois últimos dessa parte do livro) discutem amplamente uma proposta recente do Estado brasileiro, já aprovada no Congresso Nacional: a criação da Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater). Marcus Peixoto oferece, em seu Capítulo 4, uma visão abrangente e panorâmica sobre aspectos internacionais da extensão rural na história contemporânea, também reservando parte da análise para refletir sobre a experiência brasileira. O autor enfatiza serem legítimas as reivindicações de ampliação dos serviços de assistência técnica e extensão rural, que “sempre foram in- suficientes ou inexistentes” para a grande maioria dos pequenos produtores, pois tem sido “[...] incontestáveis a lentidão e a incapacidade financeira e gerencial do Estado brasileiro para a promoção, a curto prazo, da universalização” (p. 893, neste livro) de tais serviços. O capítulo sistematiza as mudanças recentes no desenho de políticas para as regiões rurais, que passaram a ser mais descentralizadas, plurais e participativas, compartilhando custos com os beneficiários. Além disso, incorporam crescentemente mais atores privados, produzindo redes multi-institucionais de assistência técnica. O tema do financiamento é também analisado em profundidade, e o autor sugere a urgência de debates mais amplos sobre o assunto no Brasil, pois “o tabu da Ater paga sentencia o pequeno produtor à es- pera de um serviço público que nunca chega” (p. 904, neste livro). Na segunda metade do texto, o autor discute tendências recentes entre os serviços de extensão rural no mundo e, especificamente, as características recentes desses serviços no Brasil, especialmente após a grande crise gerada com a extinção da Embrater, em 1990. São recolhidos dados estatís- ticos que demonstram as insuficiências antes apontadas, assim realçando a necessidade de mudanças abrangentes e urgentes para prover mais acesso a esses serviços para, pelo menos, a maior parte dos produtores de menor porte econômico. O capítulo conclui com um histórico recente sobre as idas-e-vindas da ação governamental em relação ao tema, talvez indicativas das hesitações de diferentes governos na definição da melhor estratégia de prover tais serviços aos produtores.

Eliseu Alves e Geraldo da Silva e Souza, por sua vez, discutem o tema sob um ângulo de decisiva importância estratégica: delimitar o público potencial que formaria os benefici- ários da Anater. No Capítulo 5 (Parte 6), os autores lidam com os números mais atuais retira-

dos do Censo Agropecuário de 2006 e discutem uma pergunta urgente e essencial: qual é o público que deveria ser o alvo prioritário da nova agência que deverá fomentar a extensão rural no Brasil? Antes, contudo, os autores ponderam sobre temas correlacionados, a partir de seu diagnóstico, que indica que “[...] a solução agrícola do problema de pobreza implica necessariamente no aumento do valor da produção de cada estabelecimento, aumento esse muito dependente da tecnologia, portanto, de sua difusão para os que ficaram à mar- gem da modernização.” (p. 928, neste livro)

Também destacam um tema relativamente ainda não pesquisado e que requer urgentes análises: o entorno dos estabelecimentos rurais, pois “o entorno define a lucra- tividade da tecnologia e, sem essa lucratividade, não há adoção. O entorno favorável dá igualdade de oportunidades à pequena e à grande produção”. O capítulo também discu- te (com exemplos empíricos) as vantagens da especialização da produção e o papel do conhecimento coletivo em regiões de produção agropecuária modernizada, onde, no cotidiano, os produtores interagem mais intensamente com os polos urbanos. Finalmente, sobre o tema prioritário da nova agência, os autores insistem que “alguma escolha terá que ser feita” e, grosso modo, delimitam um gigantesco público, estimado em torno de 2 milhões de estabelecimentos rurais, o qual seria o alvo principal das ações da organização pública dedicada a disseminar mais amplamente o progresso técnico nas regiões rurais. Es- ses estabelecimentos deveriam ser os beneficiários, porque suas caraterísticas mais gerais (via diversos indicadores) revelam que o conjunto teria mais chances de sucesso em sua integração econômica e tecnológica à moderna agricultura brasileira.

No documento O-MUNDO-RURAL-2014 (páginas 67-70)