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2 Fundamentação Teórica

2.2 O livro didático (LD) na prática educacional

2.2.1 Livro didático – definição e funções

O LD é um objeto bastante familiar no contexto educacional, mas defini-lo é uma tarefa árdua, devido às múltiplas funções que ele exerce a depender do contexto em que se

insere (C. Bittencourt, 2004a). Apresentamos aqui algumas definições encontradas na literatura que auxiliam a entender mais claramente o papel do LD no cenário educacional e, mais especificamente, no contexto brasileiro.

No Brasil, a primeira definição oficial encontrada sobre LD ocorre no Decreto-Lei nº 1006, de dezembro de 1938. Nesse documento, os livros didáticos são divididos em duas classes: os compêndios, que se referem aos “livros que exponham, total ou parcialmente, a matéria das disciplinas constantes dos programas escolares” e os “livros de leitura em classe” (Decreto-Lei no 1.006, de 30 de Dezembro de 1938, 1938). Vê-se por essa

normatização e seu contexto, uma forte relação entre o LD e o currículo escolar estabelecido, realidade ainda presente em contextos contemporâneos, em que o LD desempenha um papel como mediador do significado e conteúdo do currículo. Assim, o LD se apresenta como um forte elemento de controle do currículo (Morgado, 2004). Dois estudiosos franceses que propõe caminhos para concepção e avaliação do LD definem o LD (manual escolar) “como um instrumento impresso, intencionalmente estruturado para se inscrever num processo de aprendizagem, com o fim de lhe melhorar a eficácia” (Gerard & Roegiers, 1998; p.19). Na proposição desses autores, evidencia-se a intencionalidade com que o LD é estruturado para atender às necessidades do processo de aprendizagem. No contexto dessa definição, proposta há quase duas décadas, o LD é visto apenas na sua forma impressa. No entanto, livro didático não precisa estar restrito ao suporte físico para aprimorar a eficácia do processo de aprendizagem, desde que existam condições técnicas e mercadológicas para implantação e manutenção de versões digitais.

Gerard & Roegiers (1998) discutem na mesma obra as funções do LD em relação ao estudante e ao professor. Relativamente ao estudante, são destacadas as seguintes funções:

1 – Transmissão de conhecimentos é considerada a função mais conhecida do LD e,

muitas vezes, criticada. Porém, existem várias propostas de uso do LD que visam não o limitar apenas a essa função;

2 – Desenvolvimento de capacidades pode ocorrer em situações em o que o LD

proponha pistas ou diretrizes de ação com a finalidade de organizar o conhecimento (capacidade). O professor poderá se valer dessas possibilidades no desenvolvimento de competências específicas diante de situações reais;

3 – Consolidação das aquisições é feita por meio dos exercícios e das atividades em

que o estudante deve mobilizar o que aprendeu e aplicá-lo em diferentes situações; 4 – Avaliação das aquisições, não sendo aqui uma avaliação certificativa, mas, além de

dar pistas para as avaliações formais, pode sugerir caminhos de autoavaliação;

5 – Auxilia na integração das aquisições, na medida que auxilia o estudante a aplicar o

que aprende na escola em situações não escolares;

6 – Referência, apresentando as informações precisas e exatas acerca de determinado

assunto. Em meio a incidência de inúmeras fontes de informação disponíveis o LD não é a única fonte de referência, mas coopera com outras fontes no contexto educacional; 7 – Educação social e cultural, um LD pode ir além do “saber e do saber-fazer, e pode

contribuir para o desenvolvimento do saber-ser que permita ao estudante encontrar, progressivamente o seu lugar no quadro social, familiar, cultural, nacional... em que está inserido” (Gerard & Roegiers, 1998, p. 83).

Relativamente aos professores, são destacadas outras quatro funções:

1 – Informação científica, diante dos avanços científicos, “mesmo em disciplinas

fundamentais como Matemática e língua materna”. Essa função ainda permanece relevante mesmo com a infinidade de informações disponíveis na internet e, muitas vezes, sem a validação adequada.

2 – Formação pedagógica, tendo em conta a constante evolução na didática específica

a cada área. O LD pode contribuir com sugestões específicas no manual do professor, bem como com atividades propostas que viabilizem ao professor novos percursos metodológicos.

3 – Ajuda nas aprendizagens e gestão das aulas, ao fornecer instrumentos úteis no

cotidiano do professor. Nesse sentido, o LD pode propor atividades que permitam ao professor liberdade para direcionar as atividades propostas conforme o contexto (forma aberta) ou direcionar cada passo das atividades para alcançar um fim específico (forma fechada). De uma forma ou de outra, o LD pretende facilitar o dia a dia em sala de aula do professor.

4 – Ajuda na avaliação das aquisições, uma vez que o LD normalmente dispõe de um

Outro pesquisador que busca sumarizar pesquisas e opiniões quanto ao LD é Alain Choppin. Ao fazer uma retomada histórica do LD, Choppin (2004) não se propõe a definir o LD, mas apresenta quatro “funções essenciais” para o LD que se apresentam a depender do contexto de forma mais ou menos intensa. As funções destacadas são: 1 – Referencial, uma vez que o LD pode ser uma fiel tradução de um programa curricular ou uma interpretação possível a ele. De toda a sorte, o LD é “um suporte privilegiado dos conteúdos educativos, o depositário dos conhecimentos, técnicas ou habilidades que um grupo social acredita que seja necessário transmitir às novas gerações” (2004, p. 553). 2 – Instrumental, já que o LD propõe exercícios e atividades que podem ser úteis a professores e estudantes no processo de ensino e aprendizagem. Essas atividades podem contribuir para a memorização e compreensão de conteúdos, construção de habilidades, resolução de problemas, etc.

3 – Ideológica e cultural, é a função vista por Choppin como sendo a mais antiga e, a partir do século XIX, com a consolidação dos sistemas educacionais, o LD se afirmou como um dos "vetores essenciais da língua, da cultura e dos valores das classes dirigentes” (2004, p. 553).

4 – Documental, talvez seja a função mais recente a ser destacada e diz respeito a um

conjunto de documentos ou referencias inseridos no LD “cuja observação ou confrontação podem vir a desenvolver o espírito crítico do aluno” (2004, p. 553).

Na perspectiva de Choppin, o livro didático não é o único instrumento que contribui para o processo educativo. No entanto, ele coexiste e coopera com outros recursos, vindo a compor um conjunto multimídia junto com vídeos, áudios, mapas, softwares didáticos, etc.

De volta ao cenário brasileiro, encontramos o trabalho de Moreira (2006), que analisa várias proposições acerca de possíveis definições para o LD e sumariza suas conclusões definindo assim um LD:

[...] o livro didático é um produto cultural; um depositário de conteúdos escolares e transmissor de conhecimentos e saberes de uma época; um instrumento de comunicação com função pedagógica que apresenta/informa os conteúdos de forma organizada, seletiva, simplificada/clara e sequenciada; uma ferramenta de trabalho no processo de ensino-aprendizagem; um instrumento ao mesmo tempo didático, pois auxilia o professor no desenvolvimento de sua tarefa docente, decisivo no cotidiano da sala de aula, uma vez que alivia a carga de tarefa do professor, e cujo objetivo educacional é a aprendizagem do aluno; um referencial de aproximação entre professores e alunos; um “professor coletivo”, o condutor da aula, de caráter universalizador, com divulgação universal de conhecimentos e de valores. Em síntese, o LD integra a cultura, a tradição escolar brasileira (Moreira, 2006, p.27).

O LD é apresentado como uma ferramenta que facilita a prática do professor e permite aos estudantes o acesso a conteúdos mínimos para a consecução de sua aprendizagem. Destacam-se também as funcionalidades de caráter pedagógico do LD “como instrumento didático” e como “referencial de aproximação entre o professor e alunos”, sendo assim considerado um elemento integrador. O LD, integrando a “cultura e a tradição escolar”, parece ser uma característica que tende a permanecer no cenário brasileiro, tendo em vista a sua capacidade de adaptação às necessidades educativas e a acessibilidade a grande parte da comunidade escolar (Moreira & Rodrigues, 2013; Silva, 2012).

Por fim, num contexto mais amplo, encontramos, num estudo feito pela Universidade de Belgrado, a seguinte definição para LD (textbook) que vale a pena ser considerada:

A textbook is any teaching tool or combination of teaching tools which contains a systematisation of knowledge and information on a particular subject matter and which is didactically designed for a specific educational level and student age group in order to fulfil a developmental and formative role in students’ construction of knowledge (Ivic; Pesikan; Antic, 2013, p.42).

Aqui, o LD, quanto à sua forma, é entendido no contexto das diversas multimídias e ferramentas de ensino que são combinadas para alcançar os objetivos de ensino e aprendizagem desejados. Admite-se, portanto, a intencionalidade educativa à sistematização do conhecimento quanto a uma área particular do conhecimento visando atender a um público específico no contexto educativo.

Entendendo que o LD pode desempenhar um papel formativo na construção do conhecimento do estudante, os autores (Ivic et al., 2013) consideram as seguintes implicações dessa definição:

1 – O LD precisa ser entendido como uma ferramenta para a organização da aprendizagem do estudante;

2 – Para ser uma ferramenta para a construção do conhecimento do estudante, o LD precisa ser adaptado a seus usuários no que diz respeito a: i) linguagem, ii) nível intelectual e iii) conhecimentos prévios;

3 – O LD precisa estabelecer um link entre a vida cotidiana do estudante, seus objetivos educacionais e o conhecimento adquirido na escola;

4 – Na prática, o LD torna-se um elemento na criação de situações de ensino, facilitando as condições para a aprendizagem.

Ainda segundo esses autores, o termo “livro didático” adquire um significado mais amplo desde que haja uma mudança de foco da exposição para a construção do conhecimento.

Assim, o LD não consiste em apenas um livro impresso (ou digital) usado para o estudo do estudante, mas também de um conjunto de materiais adicionais necessários para a aprendizagem de um dado tema. A esse conjunto de materiais agregados ao livro didático é chamado de “conjunto do livro didático”:

All of these supplementary materials need to be justified by having a particular role that corresponds to a specific aspect or segment of learning which the textbook defined in the narrower sense cannot address on its own. All of these materials together form the textbook set (Ivic et al., 2013, p. 42). Essa perspectiva se associa à definição dada por Johnsen (1993), para quem o conceito de “textbook” vai além dos livros usados estritamente para funções escolares, mas estendendo-se a outros recursos midiáticos que possam ser usados como recursos para a aprendizagem.

A partir dessa revisão teórica, percebe-se que o LD traz em si a expressão de um currículo estabelecido ou reflexo de uma cultura. Mais do que um depositário de conteúdos, o LD se apresenta como uma ferramenta, didaticamente construída, para facilitar o processo de ensino (professor) e aprendizagem (estudante). Assim, para o estudante, sua função vai além da transmissão de conhecimentos e informações, contribuindo para o desenvolvimento de habilidades, consolidação e integração de conhecimentos, além de favorecer o processo de avaliação das aquisições. Por outro lado, o LD contribui com o trabalho docente devendo ser visto como um guia para a aprendizagem, e não como um molde para o ensino. A função e papel que o LD terá tem forte influência do contexto em que se insere e da visão educacional do professor quanto ao processo de ensino e aprendizagem.