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Sobre este “período de mártires” do Vale do Araguaia, consultamos diretamente algumas fontes dos arquivos da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT), em outubro de 2008, aproveitando nossa estadia na cidade em razão da entrevista com D Pedro

ESPAÇOS DINÂMICOS; ELITES CONSERVADORAS Contexto histórico, cultural, geográfico e político do tema

91 Sobre este “período de mártires” do Vale do Araguaia, consultamos diretamente algumas fontes dos arquivos da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT), em outubro de 2008, aproveitando nossa estadia na cidade em razão da entrevista com D Pedro

Casaldáliga. Excelente e organizada documentação das lutas progressistas da esquerda católica (seja na região, no Brasil ou na América Latina) se encontram ali, bem como no “Memorial dos Mártires da América Latina”, instalado no município de Ribeirão Cascalheira (MT). Porém, em função da necessidade do “foco no objeto de tese”, utilizamo-nos aqui de uma pequena parte do acervo pesquisado, no qual a figura do Bispo Casaldáliga assume, certamente, a maior relevância

aparece como a expressão dos sujeitos autônomos que encetam a “caminhada da libertação ” (SADER, 1988: 166; Apud COUTO, 1995: 66).

O conjunto dessas mobilizações no início de 1970 assustou sobremaneira os mandatários do regime militar. Ainda envolvidos com o combate à Guerrilha do Araguaia, empreendida pelo partido Comunista do Brasil em Xambioá, no sul do Pará, a notícia de movimentos comunitários e camponeses organizados por religiosos de esquerda no Mato Grosso levou os órgãos de segurança a considerar o termo “Araguaia” não apenas como uma configuração sócio-regional, mas sim um “método específico de subversão” ao governo e à “segurança nacional”:

[...] nós atacávamos o latifúndio, defendíamos a reforma agrária, nós exaltávamos todo esse ideal latino-americano de transformação, contestando as ditaduras militares. Então, nós tínhamos que ser subversivos. Para o governo da ditadura militar, nós éramos guerrilheiros do Araguaia [...] Como a Guerrilha foi também para eles uma surpresa inesperada, de repente estoura o Araguaia. E para eles o Araguaia era um método, “tudo acontecia no Araguaia”, aí onde estávamos (Dom Pedro Casaldáliga, apud OLIVEIRA, 2006: 133)

Neste quadro de lutas, a cidade de Barra do Garças, ao invés de representar um ponto de apoio às aspirações e reivindicações populares do Vale do Araguaia, mostrava-se mais como uma passagem obrigatória, sujeita aos empecilhos do atraso econômico e às inclemências rotineiras do clima tropical dos cerrados amazônicos:

Nós víamos que não teríamos possibilidade de fazer nenhuma pastoral se não fosse contando com uma equipe. As comunicações eram difíceis. A estrada que levava a Barra do Garças estava começando, as pontes, as pinguelas. Precisávamos descobrir a realidade, ocupar a área com equipes e aí realizar um trabalho educacional, formar e informar. (Dom Pedro Casaldáliga, sobre sua chegada ao norte de MT, em 1968, no Distrito de São Félix do Araguaia, então território do município de Barra do Garças - Revista Fórum, Número 57, dezembro de 2007, p.11).

[...] Chove muito. O ônibus de Goiânia para Barra do Garças nesta noite encalhou no lamaçal. Chegamos tarde à Barra. Somente amanhã continuaremos a viagem até São Félix (CASÁLDÁLIGA, 2007: 64. “Quando

os dias nos fazem pensar”) [...] Vindos de Barra do Garças para Cuiabá, encalhamos nos lamaçais da estrada. Empurra, tenta, brinca, desespera e quantas horas de atraso... ( idem: 189)

Contudo, as dificuldades de ordem física não impediram a repercussão dos trabalhados desses “religiosos marxistas”. Influenciados por uma das mais relevantes filosofias políticas da história da esquerda democrática na América Latina - a teologia da libertação -, essas iniciativas foram de grande significado na evolução do quadro político regional, e muito contribuíram para o acúmulo de conhecimento prático e pedagógico no campo da educação progressista mato-grossense e brasileira (OLIVERIRA, 2006: 136-191). Futuros e importantes dirigentes da esquerda no estado sairiam dali, como o deputado Carlos Abicalil (PT-MT), um dos numerosos missionários leigos ou religiosos de todo o país

que para lá se dirigiram nos anos 70 e 80, com o intuito de mudar o mundo por meio da organização política dos despossuídos e da ação transformadora no “chão batido” das salas de aula:

Eu fui consagrado em 1968. Aí começava a chegar esses rapazes e moças que vieram da região de São Paulo [agentes pastorais leigos] ... o povo nos pediu com urgência: colégio, colégio, colégio [...] Era obrigação do estado, da União resolver os problemas de educação... o povo pediu desesperadamente e criamos o Ginásio [em São Félix do Araguaia] (Dom Pedro Casaldáliga, apud OLIVEIRA, 2006: 153)

No entanto, a despeito dos esforços empreendidos, as repercussões destes projetos socioculturais não se generalizaram por toda a região. Uma dos maiores bloqueios à difusão daquelas ações residia, dentre tantos outros fatores, na necessidade desses militantes se manterem em permanente “camuflagem” no interior das organizações político/partidárias. Nas experiências pioneiras, como aquelas ocorridas nas (então) recém emancipadas cidades de São Félix, Ribeirão Cascalheira, Santa Terezinha e Porto Alegra do Norte, os dirigentes “abrigavam-se” geralmente sob o manto do “MDB popular” (OLIVEIRA, 2006; SILVA, 2006), única agremiação na qual podiam obter algum espaço de atuação política/institucional, particularmente nas áreas de educação e cultura, como bem nos recorda o Bispo militante:

[...] dentro da criação das prefeituras, quatro dos prefeitos procuraram ser essa gente nossa, que deram uma importância máxima para a educação e, simultaneamente, se potenciou sempre a educação informal, o processo cultural: poesia, canto... se criou o famoso „Araguaia; Pão e Circo‟ [..] (Dom Pedro Casaldáliga, apud OILVEIRA, 2006: 191).

Tivemos aqui [em São Félix e adjacências] prefeitos ótimos... foi um dos presos, torturados também, agora diácono casado aqui na prelazia [...]. Aqui na região, modéstia parte, foram criados muitos espaços de educação e de cultura, nas escolas e na rua. Agora, abrangendo a área da prelazia, havia municípios que respaldavam, outros nem olhavam. Tudo bem, nós tentávamos suprir o que o poder oficial não fazia [...]. Fizeram-se ensaios muitos bonitos, criativos, que ajudaram muito para que respeitássemos a educação indígena, mais como bilíngüe, e bilíngüe não só como língua, mas como educação cultural também (Dom Pedro Casaldáliga, entrevista em outubro de 2008, São Félix do Araguaia)

De fato, mesmo com resultados diferenciados, muitos destes projetos sobreviveram às dificuldades e se consolidaram como alternativa real de poder popular e gestão educacional até os dias atuais. Destaca-se, entre outros, o projeto “TYBISIRÁ”, na cidade de São Félix do Araguaia, voltada à educação do campo e profundamente ligado à luta pela emancipação social, o qual contou com importantes nomes da intelectualidade educacional brasileira na assessoria do seu desenvolvimento, em especial a presença de Moacir Gadotti e Cristovam Buarque (então como Ministro da Educação do governo Lula, em 2003):

A luta por uma escola pública comprometida com a luta do povo ajudou a revelar, para o movimento social da região, a importância da conquista do poder para dar suporte institucional ao projeto educacional. A conquista das

prefeituras populares, na década de 1980, marca um novo momento político, onde as propostas vividas pelo movimento popular se transformaram em política pública de educação. [...] O que estava sendo trabalhado neste curto, médio e longo prazos, era a identidade da escola do campo; uma educação de qualidade a ser conquistada na luta pelo movimento social e sindical, pelas organizações comprometidas com os produtores familiares, posseiros peões, assalariados e índios (LOPES e FERREIRA, 2004: 44)

2.5 – “Elites que não Circulam”. Barra do Garças: mudanças no espaço;

conservadorismo na política.

Mas, se no nordeste do estado as lutas progressistas avançavam, em Barra do Garças, bastião dominante e conservador da região do Araguaia, fincado a 700 quilômetros ao sul do recém-emancipado município de São Félix do Araguaia (1976), tais experiências eram muito mais limitadas. Sede política/administrativa de imenso território que se estendia do baixo curso do Araguaia até a fronteira com o Pará, considerado na época um dos maiores municípios em extensão do Brasil e do mundo, a cidade permanecia, como vimos há pouco, de forma impávida nas mãos das oligarquias que lhe deram origem.

A dimensão espacial da jurisdição da prefeitura era completamente desproporcional à sua capacidade de ação administrativa. No seu “auge territorial”, em 1963, o município alcançou a área de 212.000 Km²; portanto, maior do que o estado do Paraná sozinho ou equivalente a Santa Catarina, Pernambuco e Sergipe reunidos. Ou, para utilizarmo-nos aqui de uma comparação internacional, Barra do Garças superava as áreas de Portugal, Áustria e Bélgica somadas. (mapas 1 e 2)

Motivos de grandes queixas dos mais diversos extratos da população, em particular dos mais humildes - uma vez que a capacidade de deslocamento era mais limitada -, a enorme distância entre os distritos do Vale acabou por tornar-se um empecilho para as próprias elites intra-regionais, residentes nos diversos distritos subordinados à sede. No documento original de reivindicação da emancipação de São Félix do Araguaia, consta também a questão da (então) disputada fronteira entre o norte de Mato Grosso e o sul do Pará. A opinião expressa no documento é a de que, sem a emancipação de São Félix e dos distritos adjacentes, a região norte-araguaia acabaria perdendo, com o tempo, a privilegiada condição de “sentinela avançada” da Amazônia mato-grossense:

Ao lado da satisfação das exigências legais, temos dois aspectos importantíssimos a considerar: um de ordem social, que é a de descentralizar a administração municipal, prejudicada pela grande distância entre a sede - Barra do Garças – que é de 700 quilômetros, fazendo com que, quase sempre, haja queixas e descontentamentos. O outro, de ordem política, que com este posto avançado na direção da fronteira com o Pará evitar-se-ia o aparecimento de problemas de limites entre os dois estados, não mais oferecendo oportunidade a que as fronteiras do nosso Mato Grosso fossem deslocadas em direção ao sul, com a diminuição do território

estadual (Documento A13.0.0.10 p1.1 – ACDS, V. 40. Arquivos da Prelazia de São Félix do Araguaia, outubro de 2008).

Para os militantes da teologia da libertação, o problema das largas distâncias não era de ordem “estatal-geográfica”, mas de natureza político-social. Em uma de suas primeiras Cartas Pastorais sobre as condições e o contexto político da região, de 19 de outubro de 1971 – “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social” -, Dom Pedro Casaldáliga enfatiza que essas distorções espaciais já significavam, por si mesmas, a “estrutura de desequilíbrio social” da região. Se para os representantes da “historiografia encomendada” o vasto território do município era motivo de “fé e orgulho na

terra em que nasceste”, para o Bispo militante era o retrato perverso da desigualdade e da

opressão regional:

“A distância da sede do município traz consigo o máximo de desinteresse e esquecimento por parte das autoridades, bem como a impossibilidade de recurso e protesto por parte do povo. Barra está a quase 700 Km de São Félix” (Dom Pedro Casaldáliga, em Carta Pastoral de 19 de outubro de 1971: “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a

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