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1 O SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO BRASILEIRO

3.6 A aplicação do princípio da capacidade contributiva

3.6.1 Mínimo vital

Já na Constituição brasileira de 1824, verificava-se a aplicação do mínimo vital, uma vez que se garantia “os socorros públicos” (artigo 179, inciso XXXI) e dizia que “a instrução primária é gratuita a todos os cidadãos” (artigo 179, inciso XXXII).

Com a Constituição de 1946, o mínimo vital também estava previsto, conforme artigo 15, §1º, estabelecendo que “São isentos do imposto de consumo os artigos que a lei classificar como o mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica”.

Referida norma foi retirada do texto constitucional, com a reforma do Sistema Tributário pela Emenda Constitucional nº 18/1965, deixando de constar na Constituição de 1967, e Emenda Constitucional nº 01/1969, retornando ao texto na Constituição Federal de 1988, especialmente em seus artigos 3º, inciso III,133 e 6º134, como também no artigo 7º, inciso IV135, estabelecendo o salário mínimo, sendo este montante o mínimo necessário de forma a atender as necessidades vitais básicas dos trabalhadores urbanos e rurais. O salário mínimo é o montante indispensável para a sobrevivência do indivíduo e de sua família.

Tais previsões constitucionais visam garantir a todos os indivíduos um padrão aceitável de sobrevivência, remetendo à impossibilidade de tributação deste mínimo

133 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

134 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

135 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição

social: (...)

IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

existêncial. Ricardo Lobo Torres se pronuncia no sentido de que “o problema do mínimo existencial se confunde com a questão da pobreza e tem importância muito grande na história da fiscalidade moderna”.136

É nesse sentido que conclui o autor que “o combate à miséria e à pobreza, respectivamente, deve ser feito pelo fortalecimento dos instrumentos de garantia do mínimo existencial e pela extensão das prestações positivas dos direitos sociais”.137

Assim, passível de inconstitucionalidade138 qualquer tributação exercida sobre determinada manifestação da capacidade econômica de um contribuinte que o atinja nos recursos que destinaria às suas necessidades vitais básicas, imprescindíveis à garantia de sua sobrevivência e de sua família.

Nessa linha, destacamos as palavras de Roque Antonio Carrazza ao tratar do mínimo vital:

Os recursos econômicos indispensáveis à satisfação das necessidades básicas das pessoas (mínimo vital), garantidas pela Constituição, especialmente em seus arts. 6º e 7º (alimentação, vestuário, lazer, cultura, saúde, educação, previdência social, transporte etc.), não podem ser alcançados pelos impostos. Tais recursos devem ser salvaguardados pela cuidadosa criação de situações de não-incidência ou mediante oportunas deduções, legislativamente autorizadas.139 (grifo do autor)

De forma a medir os recursos destinados à sobrevivência de um indivíduo, deve-se levar em consideração as necessidades das pessoas dentro do contexto social, cultural e econômico em que vivem, o que não é uma tarefa facilmente identificada. Por isso, entendemos que a proteção do mínimo existencial está ancorada na ética e fundamenta-se no exercício da liberdade, nos direitos humanos, na ideia de felicidade, fundamentos que circundam os princípios da igualdade e da dignidade humana.

Para tanto, o Estado não pode se omitir das desisgualdades sócio-econômicas existentes em nosso País, devendo atuar no sentido de garantir a igualdade de possibilidades

136 TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 3. 137 Ibidem, p. 17.

138 A respeito da inconstitucionalidade, cabe trazer a baila passagem de Roque Antonio Carrazza quando afirma

que “inconstitucional é a lei (ou ato normativo de inferior tope) que contravém, em sua letra ou em seu espírito, prescrições, mandamentos, categorias ou princípios encartados na Constituição. Portanto, inconstitucional é, não só a norma jurídica que viola a letra expressa do Texto Supremo, mas a que atrita com seu espírito”. (CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 16ª edição, revista e ampliada, até a EC 67/2011, e de acordo com a Lei Complementar 87/1996, com suas ulteriores modificações. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 30-31).

139 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29ª edição, revista, ampliada e

entre os indivíduos. E para que isso ocorra, há que se cumprir os dispositivos constitucionais relativos à ordem social e econômica, visando que todos tenham uma vida digna, longe da miséria. E, portanto, o que integra o montante correspondente ao mínimo vital, não é passível de qualquer forma de tributação, ou seja, não pode ser considerado como renda ou proventos.

Conforme esclarece Betina Treiger Grupenmacher:

A renda correspondente ao mínimo existencial não é, no entanto, de fácil determinação. Muitos dos países democráticos do mundo, que contemplam o princípio da capacidade contributiva, têm se dedicado à importante tarefa de determinar com precisão o montante de rendimento correspondente ao mínimo existencial. 140

E ainda destaca, mais adiante:

(...) para fins de delimitação do mínimo existencial, importante ressaltar que a Constituição brasileira assegura a todos o direito à saúde, educação, moradia, previdência e assistência social. Tais prestações são deveres do Estado e quando suportadas pelo contribuinte devem ser integralmente dedutíveis do Imposto Sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza (IR), haja vista que a tributação sobre estes custos traduz-se em concreta afronta ao princípio da capacidade contributiva. 141

A esse respeito, Ricardo Lobo Torres, em sua obra A idéia de liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal esclarece que “o imposto, item mais importante da receita do Estado Fiscal, é, por conseguinte, uma invenção burguesa: incide sobre a riqueza obtida pela livre iniciativa do indivíduo, mas nos limites do consentimento do cidadão”.142

Este limite de consentimento do cidadão, mencionado pelo autor, é o denominado mínimo vital de sobrevivência.

Ainda no que tange à identificação do mínimo vital, Alfredo Augusto Becker esclarece:

O dever jurídico que a regra constitucional impõe ao legislador ordinário não é apenas o de escolher fatos-signos presuntivos de renda ou capital para a composição da hipótese de incidência do tributo, mas também e

140GRUPENMACHER, Betina Treiger. Novos horizontes da tributação: um diálogo luso-brasileiro (Cadernos IDEFF Internacional) – Coimbra: Edições Almedina, 2012, p. 49.

141 Ibidem, p. 49.

142 TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de Janeiro:

principalmente o dever de criar isenções tributárias que resguardem a imunidade tributária do mínimo indispensável de capital e renda.143

É nesse sentido que destacamos que a isenção tributária é uma forma de preservar o mínimo vital. O legislador ordinário deve levar em consideração os fatos signos de riqueza tão somente acima do mínimo indispensável para a sobrevivência do indivíduo no contexto social em que vive. Está aqui a estrita relação com a capacidade contributiva, sendo o mínimo vital o limite mínimo para a verificação se o contribuinte possui ou não condições econômicas de arcar com o recolhimento do imposto decorrente da relação jurídica existente entre o Fisco e o particular.

E a respeito do mínimo existencial e da estrita relação com a capacidade contributiva e mesmo com a progressividade, Ricardo Lobo Torres esclarece: “com o advento do capitalismo e do liberalismo aprofundam-se essas mudanças, estruturando-se juridicamente a imunidade fiscal do mínimo existencial e os privilégios dos pobres”. E, mais adiante, conclui: “no Estado Fiscal de Direito a tributação repousa no princípio da capacidade contributiva, e não mais na só necessidade do governo. Esse princípio, emanado da idéia de justiça distributiva, vai se concretizar no subprincípio da progressividade (...)”.144

Destacamos que o mínimo vital também deve ser observado para os tributos com caráter extrafiscal. E isso porque não há que se falar em tributação sem limites, tanto mínimo quanto máximo, independentemente do imposto possuir finalidade fiscal ou extrafiscal. Caso contrário, se estará admitindo uma tributação de forma desproporcional e sem respeito à graduação dos impostos.

Ainda vale dizer que o mínimo vital também se aplica à pessoa jurídica, sendo este o montante correspondente ao indispensável para remunerar os empregados e manter o capital de giro de forma a garantir a existência da empresa.

Concluimos, portanto, que não se pode retirar, do mínimo vital do indivíduo, qualquer montante para compor a arrecadação do Estado, em função da ausência de capacidade econômica do mesmo. E isso em razão do mínimo vital ser insuscetível de tributação, de forma a garantir condições mínimas de existência dos indivíduos, podendo haver a tributação apenas daquilo que ultrapassa o mínimo vital do contribuinte.

143 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3ª edição. São Paulo: Lejus, 1998, p. 499. 144 TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de Janeiro:

A dificuldade que se coloca é a determinação do que compõe as necessidades básicas do indivíduo e qual seria o montante a ser considerado como mínimo vital. Há aqui que atender à razoabilidade. Por conseguinte, conforme esclarece Ricardo Lobo Torres, verbis: “além de ser uma técnica de balanceamento de interesses na aplicação do direito, ligada ao devido processo legal, assume também a característica de um princípio da legitimação, que procura, nos juizos de lege ferenda, estabelecer soluções proporcionais e equilibradas”. E complementa que “o princípio da razoabilidade torna-se importantíssimo para a construção do conceito de mínimo existencial”.145

Certo é que tal conceito engloba as necessidades vitais do indivíduo e de seus dependentes no que tange à vida, à saúde, à educação, à cultura, etc.. Conforme exposto, uma indicação do mínimo vital de sobrevivência em nosso País é o salário mínimo, disposto no artigo 7º, inciso IV, da CF/88.

Entendemos que tal limite se coloca pelo legislador, que deve respeito aos princípios fundamentais e basilares dispostos na Carta Maior, dentre os quais o princípio da capacidade contributiva, remetendo à necessidade de análise da possibilidade ou não daquele indivíduo arcar com o pagamento do imposto, em atenção ao seu mínimo existencial.