• Nenhum resultado encontrado

Meu nome é Marinalva Cardoso Dantas. Nasci em Campina Grande, na Paraíba, no dia 26 de maio de 1954, filha de Joaquim Cardoso de Araújo, motorista de ônibus, e Creusa Luciano da Silva, dona de casa. Tive oito irmãos, dois dos quais já faleceram. Em 1957, passei a ser criada por um casal de tios, Arthur Pantaleão Dias, empresário do ramo de transportes coletivos, e Maria de Lourdes Dias, irmã de meu pai. Eles não tinham filhos, e cuidaram de mim e de meu primo-irmão, Manoel da Costa Neto, que acabou tirando diploma de engenharia. Meus pais acabaram migrando para o Rio de Janeiro, nessa ocasião.

Você estudou em Natal?

Em colégios religiosos. Graças ao padrão de vida superior de meus tios, tive acesso a uma educação apurada. Meu tio era um homem muito rico, mas pouco letrado – quase analfabeto. Por isso fazia tanta questão de investir na educação dos filhos adotivos. Eu era menina, em 1964, e fui levada por ele para ver os tanques, ocupando a cidade – salvando a pátria dos comunistas, em sua opinião. Por incrível que pareça, meu irmão de criação era um comunista militante. Vindos do interior, quando nos mudamos para Natal, Manoel foi estudar no Recife, e a diferença entre as duas capitais fez com que sempre estivesse à nossa frente. Lembro-me dele como uma pessoa muito revoltada contra o regime e de um episódio marcante, embora um tanto vago: a ocasião em que tio Arthur cavou um buraco no chão, e jogou lá dentro todos os livros do meu primo, e os queimou.

Você acreditava que o regime militar era uma coisa boa?

Fui induzida a isso. Nas aulas de Instrução Moral e Cívica, enaltecia-se o regime. O diretor do colégio era capelão do Exército. No pátio, cantávamos diariamente o hino nacional e, eventualmente, o hino à Santa Maria Goretti. Nas salas de aula, de pé, rezávamos uma oração à pátria que, segundo esse padre, fora elaborada pelo próprio presidente da República, o general Emílio Garrastazu Médici.1Dizia assim: “Ó Deus onipotente, criador de todas as coisas, infundi em nós, brasileiros, o amor ao estudo e ao trabalho, para que façamos de nossa pátria uma terra de paz, ordem e grandeza. Velai, senhor, pelos destinos do Brasil”. Havia, também, aulas sobre os dez mandamentos da segurança nacional, um dos quais recomendava não dar carona a pessoas

desconhecidas. Na época, isso significava não ajudar quem estivesse na clandestinidade. Da mesma maneira, como hoje em dia, alguns fazendeiros aconselham que não se dê carona aos seus empregados.



291

7 O Serviço Social da Indústria, Sesi, foi criado em 1946. Atualmente o Sesi mantém unidades em todos os estados do Brasil, implementando ações nas áreas de educação, saúde e lazer. O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, Senai, foi criado em 1942, por iniciativa do empresariado do setor, e hoje, presente em todo o Brasil, é um dos mais importantes pólos nacionais de geração e difusão de conhecimento aplicado ao desenvolvimento industrial. Ver: www.sesi.org.br [acesso em 5/1/2007] e www.senai.br [acesso em 5/1/2007]

8 A Confederação Nacional de Trabalhadores Rurais, Contag, foi criada em 22 de dezembro de 1963 e reconhecida em 31 de janeiro de 1964, durante o governo presidencial de João Goulart. Na Contag, reuniram-se trabalhadores rurais organizados em sindicatos, Ligas Camponesas e associações de pequenos produtores. A primeira organização sindical nacional de trabalhadores do campo foi articulada no Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais, realizado no Rio de Janeiro. Ver: www.contag.org.br [acesso em 18/1/2007]

9 O Instituto Nacional do Seguro Social, INSS, foi criado pelo Decreto nº 99.350, de 27 de junho de 1990, mediante a fusão do Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social, IAPAS, com o Instituto Nacional de Previdência Social, INPS. Ver: www.mpas.gov.br [acesso em 20/1/2007]

10 O Programa de Alimentação do Trabalhador, PAT, foi instituído pela Lei nº 6.321, de 14 de abril de 1976 e regulamentado pelo Decreto nº 5, de 14 de janeiro de 1991, que priorizam o atendimento aos trabalhadores de baixa renda, isto é, aqueles que ganham até cinco salários mínimos mensais. Este Programa, estruturado na parceria entre Governo, empresa e trabalhador, tem como unidade gestora a Secretaria de Inspeção do Trabalho, do Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho. Ver: www.mte.gov.br [acesso em 20/1/2007]

11 Em 15 de outubro de 2004, por meio da portaria nº 540 do Ministério do Trabalho e Emprego, MTE, foi criado o Cadastro de Empregadores, a chamada “Lista suja”. A inclusão do nome do infrator no Cadastro ocorre após o final do processo administrativo decorrente dos autos de infração lavrados pelos auditores fiscais. A exclusão, por sua vez, vai depender do monitoramento do infrator durante dois anos. Se durante esse período, não houver reincidência e forem pagas todas as multas impostas pela fiscalização e quitados todos os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome será retirado. Ver:

http://www.pnud.org.br/unv/projetos.php?id_unv=21 [acesso em 21/1/2007]

12 A Proposta de Emenda Constitucional, PEC, nº 438/2001, de autoria do ex-senador Ademir Andrade, do Partido Socialista Brasileiro, PSB, do Pará, já foi aprovada no Senado Federal e ainda está em tramitação na Câmara dos Deputados. A PEC prevê a expropriação das terras de pessoas que forem flagradas explorando mão-de-obra escrava em suas propriedades. Ver:

www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=36162 [acesso em 21/1/2007]

13 O Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial, Inmetro, foi criado pela Lei nº 5.966, de 11 de dezembro de 1973, e é vinculado ao Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Ver: www.inmetro.gov.br MINISTÉRIO DO TRABALHO: UMA HISTÓRIA VIVIDA E CONTADA



290





Esta entrevista foi realizada por Angela de Castro Gomes e Marcelo Thimóteo da Costa na Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Norte, Natal, em 13 de setembro de 2006.

Enfim, com tudo isso você foi se politizando. E, apesar de todas as limitações

conjunturais, algum professor teve atuação mais marcante ou ficou na sua memória por alguma razão especial?

Jales Costa, recém chegado da França, professor de introdução à ciência do direito. Eu me empolgava com suas aulas, impregnadas de cultura francesa, e com sua mentalidade aberta, capaz de descortinar horizontes. Ele nos deu uma consciência original ao dizer que, até então, no Brasil, consumidor não tinha direitos, chamando a nossa atenção para o assunto. Na verdade, o Código de Defesa do Consumidor só foi aprovado em 1990.7Jales foi o patrono da nossa turma. Em seu discurso, referindo-se à fórmula da margarina, demonstrou que o produto era uma “bomba”, em cuja composição química não havia mais do que 1% de leite – um engodo, visando os consumidores mais pobres, e os mais ricos, logrados na sua pretensão de emagrecer ou diminuir a taxa de colesterol.

O direito do trabalho já te interessava de alguma maneira?

Nem um pouco. Os professores da matéria eram pessoas desinteressantes e, em conseqüência, eu considerava o direito do trabalho maçante. A CLT não me dizia respeito.8Seguindo a orientação do meu tio, e para que nada atrapalhasse a minha educação, só cogitava de trabalhar depois de formada. Durante o curso, o que me atraiu foi o direito penal.

Mas, afinal, comecei a trabalhar aos 23 anos, quando estava no último ano da faculdade. Fiz concurso para uma vaga de auxiliar administrativo do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, Crea, e saí da casa do meu tio. Descobriu-se que ele tinha uma companheira... O choque arrasou a família: minha tia morreu e minha avó foi morar num asilo. Desacostumada ao batente, fui residir numa república, onde era obrigada a arrumar a cama, lavar louça etc. O mais difícil, porém, foi trabalhar de dia e estudar à noite: eu morria de sono.

Que funções você desempenhava no Crea?

Eu era encarregada dos registros das empresas da construção civil. Durou pouco, porque ao cabo de cinco meses, me formei em direito e fui trabalhar na Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, a Febem,9a convite de uma ex-funcionária da empresa de transportes do meu tio, e que jurara à minha tia, no seu leito de morte, que cuidaria de mim. Essa pessoa não só me indicou para o cargo, como conseguiu me inscrever num curso de treinamento na Funabem,10em Recife. Viajei de ônibus. O local parecia uma favela, e lá, durante um mês, aprendi a atrair as crianças e a utilizar todos os meios de recreação, para evitar que elas fugissem para a rua, marginalizando-se.



293

Você estudou em colégio marista?

Sim, por três anos, antes de ingressar na faculdade. O ambiente do colégio se alterara muito desde a prisão de Teodomiro2– os irmãos maristas passaram a ser considerados protetores de comunistas, e o colégio, um foco do pensamento de esquerda. O irmão dele foi meu contemporâneo; atlético, muito bonito, tinha um comportamento retraído, talvez por força do sofrimento que a família suportara. Enfim, não se falava a respeito, ninguém sabia das torturas, nem fazíamos idéia do que se passava no Araguaia.3 Devíamos nos preparar para o futuro, apenas isso. Acresce que fiz parte da primeira turma mista do colégio, e esses temas talvez fossem tidos na conta de muito pesados para meninas. Feliz, eu ia dançar nas boates, imaginando viver num Brasil maravilhoso. Tudo ilusão!... A verdade é que fui criada para ser princesa e me tornei borralheira.

Nessa época, que idéia você fazia do que era ser comunista?

Eu tinha uma vaga noção de que os comunistas pretendiam virar o mundo de ponta cabeça. Manoel, meu irmão de criação, era uma pessoa muito culta. Mais velho do que eu cerca de quinze anos, ele me dizia para não perder tempo com fotonovela porque isso ia me tornar uma cabeça oca. “Se você pensa que vai arrumar um namorado só por ser engraçadinha, esquece!... Homem não gosta de mulher fútil”. Comprou, então, uma coleção de livros, para mim, e me dava o jornal O Pasquim4e a revista Veja5, além de jornais que fazia questão que eu lesse. Foi graças a ele que fui adquirindo algum conhecimento crítico e me conscientizando um pouquinho das reais condições que existiam no país. Ainda assim, em 1972, nas comemorações do sesquicentenário da Independência, os alunos maristas desfilaram de branco, ostentando uma flâmula com a esfinge do general Médici no ombro. A propaganda do regime baseava-se no dístico “Brasil – ame-o ou deixe-o”.

Ao ingressar na faculdade de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 1975, deparei- me com o mundo adulto e senti medo. Os colegas me tratavam como uma garotinha amável, inteligente, mas alienada. Os que tinham militância política tomavam cuidado com o que me diziam e com o que diziam quando eu estava por perto. Certo dia, perguntei ao professor de direito constitucional o que era o AI-5.6Eu não sabia que a polícia federal já o intimara a prestar esclarecimentos sobre o conteúdo de suas aulas. Com a classe mergulhada em total silêncio, ele respondeu que fora uma coisa muito ruim para o país, e nada mais. Percebi, então, que, de fato havia alguma coisa muito errada acontecendo. Policiais infiltrados entre os alunos, por exemplo, e que vigiavam até as nossas idas aos bares, e as conversas sem nenhuma importância que mantínhamos em locais de lazer. As reuniões relacionadas a assuntos do diretório acadêmico foram proibidas. Foi nessa mesma ocasião que tomei conhecimento das torturas e das arbitrariedades praticadas de forma incontida por agentes dos órgãos de segurança, como invasões de domicílios, seqüestros de prisioneiros etc.



próprias patroas, que telefonavam da maternidade, avisando do nascimento – nós prometíamos que eles iam viver com famílias bem de vida, e que teriam estudo... No entanto, os que por falta de sorte vinham ao mundo numa sexta-feira, morriam, fatalmente. Nos fins de semana não aparecia ninguém que quisesse adotar. Morriam de fome, de descaso. Os sobreviventes, logo ficavam doentes. Quando me casei e tive um filho, peguei um desses bebês de sexta-feira e levei para casa, a fim de amamentá-lo com meu excesso de leite, mas meu marido ponderou que a criança podia morrer em meus braços, e eu acabaria sendo processada. Enfim, não adiantara nada eu me transferir da triagem para a adoção...

Quanto tempo você suportou esse peso, essa angústia?

Cinco anos e meio. Em 1984, fiz concurso para auditor fiscal do Ministério do Trabalho. Estudei em casa e passei em segundo lugar, empatada com uma colega; como só havia duas vagas, as três tomaram posse. Fui designada para a Delegacia Regional do Trabalho de Natal.

O interesse pelo direito do trabalho, que na faculdade te entediava, surgiu durante o estudo para o concurso ou somente depois que você tomou posse?

Durante o estudo. Quando fiquei sabendo que toda empresa precisa ter livro de inspeção, fui ao setor de Pessoal, da Febem, e perguntei se lá havia essa documentação. Sim, havia, e os fiscais costumavam vir freqüentemente para examiná-la. Até então, eu não fazia a menor idéia do que fosse aquilo, mas quando comecei a atuar como auditora, tudo que dizia respeito a crianças, vinha parar na minha mesa. Que ironia!... Tive de desmontar o meu discurso favorável ao trabalho infantil como alternativa à vida que os menores levavam na rua, e toda aquela argumentação que servira para conscientizar tantas lideranças de bairros e tantos empresários. O primeiro auto de infração que expedi foi contra uma sorveteria, onde às 23hs encontrei um menino de 10 anos servindo “casquinhas”. Fiquei indignada! Criança não trabalha, estuda e brinca.

Você poderia relatar as experiências que alteraram tão radicalmente essa tua visão acerca do trabalho infantil?

Eu tinha uma visão, digamos, Unicef.13O que me preocupava era garantir crianças alimentadas e bem de saúde: protegidas. Quanto ao mais, minha referência era o programa “Bom Menino”, da Funabem, que mantinha crianças trabalhando, embora sem quaisquer garantias trabalhistas, além da assistência previdenciária. Era o que me parecia, na época, a salvação da infância. Na DRT, porém, foi exatamente o que passei a combater. Existe um ditado popular segundo o qual a gente encontra o que procura. Eu possuía um olhar, por assim dizer, adestrado, focado, automaticamente, nas crianças que trabalhavam, e via aquilo que muitos auditores eram incapazes de enxergar. Um dia, cheguei a ser interpelada por um colega: “Mas há mesmo crianças trabalhando por aqui? Eu não vejo nenhuma... Como é que você consegue achar?” Eu brinquei: – “Você conhece alguma Ivete?” – “Não”. “Pois no dia em que você se apaixonar por uma, vai ver como existe Ivete no mundo”.

Entrevista Marinalva Cardoso Dantas



295

Como foi essa experiência? Recife era a primeira cidade grande que você conhecia...

Fantástica! Depois de tantos meses de sofrimento e angústia, o contato com as crianças me fez criança outra vez, e senti-me protegida. A Declaração dos Direitos da Criança e do Adolescente fora assinada recentemente,11e a minha missão, além da parte preventiva, consistia em convencer as empresas a contratar menores. Olha a vida... exatamente o contrário do que faço hoje! As crianças gostavam de ganhar seu próprio dinheiro como carregadores de compras em supermercados, guardadores de carro, jornaleiros etc. Sentiam-se importantes, tornavam-se respeitados, deixavam de ser surrados em casa. Eram meninos e meninas entre 6, 7 e 17 anos, residentes em comunidades pobres, e eu os ensinava a fazer pipa, a organizar festivais de pipa na beira da praia, e montava grupos folclóricos. Além disso, instruí os monitores para que iniciassem aulas de matemática, português e história, preparando os guris nas faixas de 12 a 14 anos, para os testes do Senai.12Um deles tirou o 1

º

lugar! Fiquei orgulhosa! As crianças da Febem ganhavam merenda, e material escolar não faltava. Eles usavam borracha da Inglaterra, lápis da Tchecoslováquia, estêncil da Alemanha... Os turnos – de manhã, recreação, de tarde, escola – ocupavam todos os dias da semana, de segunda à sexta-feira. À noite, eles iam dormir em casa. Também fazíamos um trabalho com os pais, com vistas a atenuar o choque da comunidade ante os novos hábitos adquiridos pelas crianças: uma simples escovação de dentes às vezes era ridicularizada. No espaço de uma curta refeição noturna com as mães, não raro alcoolizadas, ouvíamos delas relatos das torturas que infringiam aos filhos. Uma verdadeira pedagogia do horror, que transmitiam umas às outras. “Com um pouco de pimenta nos olhos eles ficam quietos, senão amarro eles no pé da mesa”. Razões não faltavam, para que fugissem de casa!...

Você chegou a lidar com crianças delinqüentes?

Depois dessa experiência com ações preventivas, fui transferida para a área terapêutica. Uma vez que a lei não permitia a prisão de menores, a instituição não tinha muros e funcionava de portas abertas – quem passasse defronte, ia achar lindo. Lá dentro, porém, havia celas com cadeado, onde os meninos ficavam trancados. E armas escondidas... Coniventes, os vigilantes os deixavam fugir para a rua, e eles assaltavam, entregando parte do produto do roubo àqueles que lhes garantiam um álibi perfeito. Ignorante desses fatos, certa vez eu menti diante de um juiz e de uma mãe cujo filho fora assassinado por um menino preso na Febem. Ela o acusava de ter ido à sua casa e ameaçado seu outro filho. Garanti que isso era impossível, pois acabara de ver o garoto na cela; chamei-a de mentirosa e não entendi quando ela me olhou como se fosse eu que estivesse mentindo.

Pior ainda acontecia no centro de triagem, em que as crianças permaneciam até que fossem identificados os que já haviam delinqüido; durante a noite, os maiores, os “líderes”, abusavam dos pequenos. Muitos vinham a mim cheios de manchas roxas, contando que tinham sido levados pelas próprias mães, para “aprender”. Aprendiam sim, a bater ou levar. Os mais fracos só levavam!... No centro de adoção, muitos bebês morriam. Entregues por empregadas domésticas que temiam perder o emprego – às vezes, pelas

MINISTÉRIO DO TRABALHO: UMA HISTÓRIA VIVIDA E CONTADA



Em Jardim de Piranhas, no sul do Seridó,16onde tinham sede várias tecelagens que utilizavam mão de obra infantil no fabrico de redes, os auditores verificaram uma incidência brutal de doenças pulmonares. A poeira pairava sobre toda a cidade, penetrando pelo nariz e pelos ouvidos. Um jornalista alemão esteve na região e voltou estarrecido com os níveis de poluição atmosférica. Ele escreveu que se sentira

transportado para uma época anterior à Revolução Industrial.17O governo Fernando Henrique Cardoso mantinha um programa de bolsas para os meninos retirados das fazendas de cana de açúcar, mas não houve jeito de aplicá-lo àquelas crianças; a burocracia as considerou ocupadas em atividades urbanas.

Quantas eram?

Mais de 500!... Aos poucos, fomos percebendo que a fiscalização, somente, não garantiria resultados duradouros, e partimos para a conscientização de empregados e empregadores, que afinal passaram a integrar o fórum em caráter permanente. Eu permaneci vinculada à fiscalização e à repressão ao trabalho infantil. Em 1996, ante o volume crescente de denúncias, inclusive por parte de entidades internacionais, a Presidência da República decidiu criar o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Escravo, Gertraf,18 cujas ações seriam executadas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, subordinado ao Ministério do Trabalho. Convidadas por Ruth Beatriz,19nos tornamos coordenadoras desse grupo móvel, eu, Cláudia Márcia,20do Piauí; Valderez Rodrigues, do Mato Grosso; e Vera Jatobá, de Pernambuco. E havia ainda a Ivanira, da Delegacia Regional do Paraná, coordenadora da região Sul. O grupo tinha um único homem, Tomás Jamesson, de Minas Gerais.

Que outros ministérios tinham participação na iniciativa?

Ministério do Trabalho; Ministério da Justiça; Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal; Ministério da Agricultura e do Abastecimento; Ministério da Previdência e Assistência Social; Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo; Gabinete do Ministro de Estado Extraordinário de Política Fundiária. O grupo parecia uma centopéia, mas se locomovia com apenas duas pernas: os auditores fiscais do Ministério do Trabalho e a Polícia Federal. Os demais participavam de reuniões, discutiam, mas quem entrava