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MARTIN BUBER: O DIÁLOGO E AS RELAÇÕES EM NÍVEL INTERSUBJETIVO

fórmulas matemáticas De repente, a física quântica veio trazer-lhes surpresas.”

1.4 MARTIN BUBER: O DIÁLOGO E AS RELAÇÕES EM NÍVEL INTERSUBJETIVO

O principal interesse de Martin Buber65 sempre esteve na relação entre os seres humanos. Sua filosofia da relação e do diálogo se configura como uma ontologia da existência humana, na medida em que descreve a relação inter-humana como origem e fundamento da própria existência. O fato antropológico fundamental de sua filosofia da relação ou do diálogo é que ela exige a intersubjetividade. Chamam a atenção os pressupostos da relação inter-humana e da reciprocidade presentes em suas ideias. Buber (1982, p. 152) diz que “o homem é antropologicamente existente não no seu isolamento, mas na integridade

65 O filósofo austríaco Martin Buber nasceu em Viena, em 08 de fevereiro de 1878. Teve ascendência e religião judaicas. Sua primeira infância foi vivida sob os cuidados dos avós. Seu avô era uma renomada autoridade no Haskalah (movimento de emancipação judaica ocorrido no séc. XVIII, também conhecido como iluminismo judaico. Esse movimento era sustentado nos valores iluministas). Entrou no curso de Filosofia e História da Arte da Universidade de Viena no ano de 1896, recebendo o título de doutor em Filosofia no ano de 1904, na cidade de Berlim. Casou-se com a escritora alemã Paula Winkler, católica, que se converteu ao judaísmo por sua influência. Em 1923 foi nomeado professor na Universidade de Frankfurt e foi responsável pela cadeira de História das Religiões e Ética Judaica, a única oferecida na Alemanha, tendo sido destituído do cargo pelos nazistas. Foi editor do jornal “Der Jude” no período de 1916 a 1924. No ano de 1938, aos 60 anos de idade, aceitou o convite para atuar como professor de Sociologia na Universidade de Jerusalém e sua atividade intelectual se intensificou neste período. Ampliou e aprofundou pesquisas em variadas áreas, desde estudos relacionados à bíblia, passando pelo judaísmo e pelo hassidismo, pelo qual foi bastante influenciado; (o hassidismo prega que Deus habita no ser humano, quer dizer, dialoga com sua criação). Embora Buber tenha empregado o conceito de relação para expressar o que acontece entre os seres humanos e entre o homem e Deus, o fundamento de seu pensamento encontra-se inteiramente focado no problema do homem como ser de relação, como ser aberto ao diálogo com o outro que ele chama de tu. Em seu tempo, Buber se mostra seriamente preocupado com as consequências de uma sociedade que se torna cada vez mais técnica; como pesquisador e pensador volta-se substancialmente à recuperação do humano e investe na relação pessoal estabelecida com o outro. Realizou estudos políticos, sociológicos e filosóficos. Como se pode verificar pelo período em que viveu e onde viveu, sua vida foi perpassada pelas duas grandes guerras, entre outros conflitos armamentistas do século XX. Ele mesmo se considerava um pensador diferente dos demais; atípico. Faleceu em Jerusalém, em 13 de junho de 1965.

da relação entre homem e homem: é somente a reciprocidade da ação que possibilita a compreensão adequada da natureza humana.” Defende a tese de que o ser humano é um ser de relações; a melhoria do mundo estaria associada ao reconhecimento da existência do outro ser humano – um tu. O espaço do entre é onde se dá a relação, onde acontece o encontro – é o campo do diálogo. Buber (1983, p. 149) destaca que “mais além do seletivo, mais aquém do objetivo, no fio agudo em que o eu e o tu se encontram, ali se acha o âmbito do entre.”

Porém, para que uma relação entre duas pessoas seja de fato dialógica é necessário que cada uma delas possa imergir. Buber (1983) faz uma analogia a um banho de mar. Ele diz que não podemos ficar na praia observando as ondas e a espuma. É necessário lançar-se na água e nadar; correr o risco. Assim é também a relação dialógica. Para Buber a relação é uma ação imediata que acontece entre o Eu e o Outro, que ele nomeia como Eu-Tu.

Aquiles Von Zuben (1979, s/p),pesquisador das ideias de Buber e tradutor de pelo menos duas de suas obras, fez uma interessante observação sobre esse pensador. “Se, para João, no princípio era o Verbo, e para Goethe, no princípio era a ação, para Buber, no princípio é a relação.”

Em Buber o diálogo é uma relação que se estabelece horizontalmente entre as pessoas e se concretiza mediante a linguagem, ocupando a centralidade da ação pedagógica. Assim é também o entendimento de Paulo Freire66 sobre o diálogo.

Etimologicamente a palavra diálogo deriva do grego dia que significa por intermédio de, através, junto, na relação, que em muito se aproxima de diáfona, que deixa passar a luz, ou seja, que atravessa; e logos – que quer dizer sentido, palavra, conhecimento, ideia, entendimento, leva-nos à compreensão de diálogo como expressão do entendimento que se processa na interação. No latim encontra-se dialogus que significa entendimento obtido por meio da palavra; pode significar também discussão ou troca de ideias com o objetivo de resolver problemas, encontrar equilíbrio, harmonia.

Tratar de diálogo a partir desse entendimento requer trazer como principal destaque o que Freire (1999, p. 20) chamou de “Diálogo Autêntico - reconhecimento do outro e reconhecimento de si, no outro – é decisão e compromisso de colaborar na construção do mundo comum. Não há consciências vazias; por isso os homens não se humanizam,

66 Martin Buber serviu de base aos estudos de Paulo Freire, possivelmente porque seu principal interesse foi a relação entre os seres humanos.

senão humanizando o mundo.” A expressão também chamada de diálogo genuíno foi cunhada por Buber (1982). Sua filosofia é classificada como relacional-dialógica, uma vez que apresenta como fator fundante as relações existentes entre os seres humanos e a palavra como sendo dialógica. Destaca que o diálogo é intrínseco ao ser humano e somente acontece a partir de uma ação essencial, uma vez que é em torno dela que se constrói uma atitude essencial. Ele chama isso de movimento básico e o classifica de duas maneiras: o movimento básico dialógico que implica levar em conta a presença do outro, ou seja, “voltar-se para o outro”; e o movimento básico monológico no sentido de “dobrar-se-em-si-mesmo”.

Para melhor entender esse processo é necessário ter em vista que a filosofia buberiana é focada no sentido da existência do ser humano que se dá sempre em relação, e como tal a experiência vivida tem grande relevância; esses aspectos em muito se aproximam da abordagem encontrada na perspectiva intercultural de educação, que apresentarei no capítulo III. Buber a entendia como movimento cíclico, isto é, que permitisse uma co-responsabilidade entre a reflexão e a ação, entre o logos e a práxis.

Reig (2007, p. 14), estudioso das ideias de Buber, diz que para nelaso eixo central na interpretação da existência humana, “é a relação dialógica porque ela consegue exprimir que o significado não está no homem nem no outro, tampouco no mundo, mas entre os três”. Daí a relevância da palavra que não deseja ser apenas dita, lida e interpretada; ela precisa ser proferida em busca do diálogo e como tal deseja ser pronunciada, ouvida e respondida.

Homens e mulheres são seres dialógicos e existem por meio da palavra que por sua vez contém o vivido, o experienciado. São seres situados no mundo e como tal se relacionam (seres e coisas). A intencionalidade de suas atitudes se manifesta mediante a dualidade: relação Eu-Tu e relacionamento Eu-Isso; para que os seres humanos de fato existam, essas atitudes são fundamentais. A relação Eu-Tu é um encontro existencial; Eu-tu é como Buber nomeia os participantes da relação. Cabe destacar que o entendimento de Buber (2006) para a relação Eu-tu se estende não apenas aos seres humanos, mas também aos demais seres vivos.

EU-TU representa um modo de encontro, através da atitude de relação entre dois seres que estão disponíveis para compartilhar algo e existir recíproca e mutuamente. EU-ISSO representa a construção e a elaboração do saber, do conhecimento, da ciência que rege o mundo vivido e experienciado pelas pessoas. Assim, o existir do humano se dá

nessas relações/relacionamentos; no momento em que uma acontece, a outra se torna latente, num movimento dinâmico em que ambas se complementam. Reiterando o que disse anteriormente, para Buber (2006), o diálogo se desenvolve no espaço intersticial do entre, ou seja, a palavra proferida pelo EU no encontro com o TU deixa de pertencer a ele e também não pertence ao outro, mas passa a localizar-se na relação EU-TU. O “entre” é o intervalo, o lugar de revelação da palavra proferida. Assim, a mola-mestra na interpretação da existência do homem é a “relação”, pois esta indica que o significado da existência não está nem nele, nem no mundo ou no outro, mas “entre” eles, comentam Padoin, Paulae Schaurich(2009), estudiosos do pensamento deste filósofo.

O fator primordial da obra buberiana é a relação entre os seres humanos; por conseguinte, o diálogo é considerado um evento de presença67; “acontece entre o homem e o ente que se lhe defronta.” (Idem, p. 33). O eu só existe se houver outra pessoa na relação; e a relação, por sua vez, é reciprocidade. “No começo é a relação”. (Idem, p. 63). Freire (1992, p. 120) diz que “enquanto relação democrática, o diálogo é a possibilidade de que disponho de, abrindo-me ao pensar dos outros, não fenecer no isolamento.”

O dialógico não é, como o dialético, um privilégio da atividade intelectual. Ele não começa no andar superior da humanidade, ele não começa mais alto do que ela começa. Não há aqui dotados e não- dotados, somente há aqueles que se dão e aqueles que se retraem, o dialógico não é um assunto de

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Aliás, é preciso dizer que “diálogo” é, segundo Von Zuben (2006, p. 17-18), “uma categoria que pode servir de acesso à compreensão da obra de Buber. Diálogo foi o tipo de compromisso de relação que a vida e a obra deste autor selaram entre si.” Para Von Zuben, Buber não chegou a essa categoria por meio de raciocínio dedutivo, mas sim, como ele próprio qualificou “[...] o encontro é essencialmente um evento e como tal ele ‘acontece’. [...] A fonte de onde brotou o dialógico era pois profundamente vivencial, concreta, existencial.” (Idem, p. 19). Essa evidência também aparece quando Buber diz que “o caminho não é traçado a partir de um mundo conceitual de abstrações, inócuo e vazio. Ele surge da experiência vivida na concretude existencial de cada ser humano. Não é um constructo teórico forjado para o bem de uma causa, de uma doutrina polemizante, mas é um verdadeiro ‘existencial’.” (Idem, p. 47). Para saber mais sobre Martin Buber, cf.: BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben. 10ª Edição revista. São Paulo: Centauro Editora, 2006.

luxo intelectual, ele diz respeito à criação, à criatura; e o homem de quem falo, o homem, de que falamos, é isto, é criatura trivial e insubstituível. (BUBER, 1987, p. 73).

Para que os seres estabeleçam uma relação, segundo o pensamento buberiano, há a necessidade da palavra, do diálogo inter- humano, que permite a um EU presentificar-se no face a face com seu TU. Na relação inter-humana, é importante que cada um dos dois se torne consciente do outro, de tal forma que, precisamente por isso, assuma para com ele um comportamento, que não o considere nem trate dele como seu objeto, mas como seu parceiro num acontecimento de vida. Assim, a relação EU-TU é um encontro existencial em que estão presentes: a reciprocidade, a intersubjetividade, o “estar-com-o-outro” em um mundo compartilhado. Essa atitude mostra um modo dialógico de ser e de existir, no qual a palavra proferida pelo EU recebe a resposta do TU e, então, essa resposta é a responsabilidade do compartilhar, destacam Padoin, Paulae Schaurich(2009).

A relação EU-TU é um encontro existencial em que estão presentes a reciprocidade, a intersubjetividade, o estar-com-o-outro genuinamente no tempo e no espaço compartilhados. Essa atitude mostra um modo dialógico de ser e existir, no qual a palavra proferida pelo EU recebe a resposta do TU e, então, a resposta é responsabilidade de um TU para com a palavra invocada pelo EU, segundo Schaurich e Crossetti (2009).

Explicitando melhor o que foi dito na apresentação das ideias de Buber, anteriormente, sobre a atitude essencial do ser humano, a relação EU-TU revela, segundo Buber (1982, p. 57), o “voltar-se-para-o-outro” sendo dialógica, ao passo que o relacionamento EU-ISSO desvela-se pelo “dobrar-se-em-si-mesmo”, ou seja, um modo monológico de ser. Entretanto, o diálogo genuíno somente ocorrerá entre o EU e o TU no momento em que cada um perceber o outro em sua alteridade, como essencialmente é, como genuinamente se apresenta como ser-no-mundo, lembra Schaurich (2011).

Enfim, Buber (2006) estabeleceu os movimentos básicos de fundamentação da relação Eu-Tu que é ética e legítima, mas não a única forma de vida para um indivíduo. Buber diz que é impossível viver somente no “Eu-Tu”, tampouco com o “Eu-Isso”; até porque a vida é em si bastante complexa, lugar do imponderável e permeada de incertezas e acontecimentos inesperados, os quais podem reverberar na relação Eu-Tu, pois os momentos dessa relação estão sujeitos a toda

sorte de acontecimentos do cotidiano. Mas Buber (2006, p. 74) é enfático ao dizer: “[...] o homem não pode viver sem o ‘isso’, mas aquele que vive somente com o ‘isso’ não é homem.”

Considerando a atualidade em que nos encontramos, Zuben (1979 s/p) diz que a voz de Buber “ecoa exatamente numa época que paulatina e inexoravelmente se deixa tomar por um esquecimento sistemático daquilo que é mais característico no homem: a sua humanidade.” Diz também que “para ilustrar o sentido do conhecimento, Buber utiliza não a imagem do espetáculo em que se contempla de fora, um objeto, mas a imagem da iniciação em que o iniciado participa diretamente na ‘dança’ e penetra na realidade que busca conhecer.” (Idem) [grifo do autor].

Buber se refere a uma “terceira via”, diz Zuben, para explicar que o fato fundamental do existir humano não é “nem o indivíduo enquanto tal, nem o ‘todos-juntos’, mas é o homem-com-o-homem, é, a partir daí, que deve ser construído o autêntico ‘terceiro caminho’.” (Idem) [grifos do autor].68

Paulo Freire, por sua vez, foi além de Buber, acrescentando outro elemento nessa relação – o mundo. Compôs assim uma tríade para mostrar que o diálogo é fator de construção dos homens e das mulheres que se fazem “na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”. Freire (2000) estabeleceu algumas condições para o diálogo ao classificá-lo como “uma relação horizontal [...] nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso só o diálogo comunica. [...] e quando os dois polos do diálogo se ligam assim, se fazem críticos na busca de algo.” (Idem, p. 107). A relação dialógica engendra aspectos de grande potência, na medida em que nos abre a um mundo de sentido no qual se descobre que sempre há mais.

À guisa de encerramento deste capítulo, destaco o pensamento amoroso, arrojado, instigante, ousado, ético e provocativo de Edgar Morin, Humberto Maturana, Gregory Bateson e Martin Buber como critério suficiente para colocá-los juntos e, a exemplo de Diógenes de

68 Moraes (2001) diz que “visto com superficialidade e má vontade, o pensamento buberiano será um último suspiro idílico e voltado para esperanças românticas. Mas será preciso conhecer-se muito mal o rigor deste pensador e a seriedade de suas propostas [...]”. E complementa dizendo que “a mensagem de Buber é no sentido de que “[...] para superar vicissitudes e melhorar nosso mundo, não temos caminhos fáceis, mas temos caminhos possíveis [...].” (Idem, p. 46). MORAES, Regis de. Filosofia do diálogo. Campinas – SP: Editora Alínea, 2011.

Sínope69, trazer luz ao abrir janelas conceituais para olhar a educação, para os contextos e práticas educativas, seus sujeitos e processos. Entretanto, há mais aspectos a considerar, como a perspectiva da complexidade, na qual Martin Buber, pelo viés da intersubjetividade, mostra-se em fina, profunda e delicada interação. Esses brilhantes pensadores não abrem apenas janelas, também descerram portas trazendo para este estudo as chaves epistemológicas de entendimento que, na plasticidade e sintonia expressas em suas ideias, revelam a convergência entre suas abordagens. Convido a olhar por essas janelas e transitar a partir dessas portas abertas, para a docência e sua multiplicidade de aspectos desde uma perspectiva da formação continuada ao contexto do ensino e da aprendizagem nas Trilhas a percorrer no próximo capítulo.

69O filósofo Diógenes de Sínope nasceu em Sínope (Grécia) no ano de 413 a.C. e faleceu em 323 a.C. Morava em um barril, usava como vestimenta apenas uma túnica e perambulava pelas ruas de Atenas em plena luz do sol com uma lanterna nas mãos. Quando lhe perguntavam o porquê do gesto ele respondia: “procuro o homem”.

CAPÍTULO II

OS CAMINHOS E (DES)CAMINHOS NO COMPLEXO CAMPO