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viagem, percurso O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no

currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade.” Cf.: SILVA, Tomas Tadeu da. Documentos de identidade. Uma introdução às teorias do Currículo. Belo Horizonte. Autêntica, 1999.

Nessa perspectiva e entendendo que olhar é significação, Jean- Claude Forquin parece fazer esse movimento quando no exercício de “olhar para conhecer” investiga criticamente e encontra esta íntima relação entre educação e cultura e a partir desse encontro conceitua-os e explicita algumas de suas principais relações. Meu convite é o de também fazer este exercício a partir desses conceitos, para então remetê- los ao exercício da docência.

Quer se tome a palavra “educação” no sentido amplo, de formação e socialização do indivíduo, quer se restrinja unicamente ao domínio escolar, é necessário reconhecer que, se toda a educação é sempre educação de alguém, por alguém, ela supõe também, necessariamente a comunicação, a transmissão, a aquisição de alguma coisa: conhecimentos, competências, crenças, hábitos, valores, que constituem o que se chama precisamente de “conteúdo” da educação. (FORQUIN, 1993, p. 10) [aspas inseridas pelo autor].

Para o autor é esse “conteúdo” e o que ele abarca que conceitua perfeitamente o termo cultura.

Devido ao fato de que este conteúdo parece irredutível ao que há de particular e contingente na experiência subjetiva ou intersubjetiva imediata, constituindo, antes, a moldura, o suporte e a forma de toda experiência individual possível, devido, então, a que este conteúdo que se transmite na educação é sempre alguma coisa que nos precede, nos ultrapassa, nos institui enquanto sujeitos humanos, pode-se perfeitamente dar-lhe o nome de cultura. (Idem).

A educação, por sua vez, “[...] é o conjunto dos processos e dos procedimentos que permitem à criança humana chegar ao estado de cultura, a cultura sendo o que distingue o homem do animal [...].” (OLIVIER REBOUL, 1984 apud FORQUIN, 1993, p. 12). Homens e mulheres são seres de cultura, razão que coloca a educação no centro da problemática antropológica. Sendo assim, não parece possível pensar a educação e a cultura distante dessa perspectiva.

Toda reflexão sobre a educação e a cultura pode assim partir da ideia segundo a qual o que justifica

fundamentalmente, e sempre, o empreendimento educativo é a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a experiência humana considerada como cultura, isto é, não como a soma bruta (e aliás inimputável) de tudo o que pode ser realmente vivido, pensado, produzido pelos homens desde o começo dos tempos, mas como aquilo que, ao longo dos tempos, pôde aceder a existência ‘pública’, virtualmente comunicável e memorável, cristalizando-se nos saberes cumulativos e controláveis, nos sistemas de símbolos inteligíveis, nos instrumentos aperfeiçoáveis, nas obras admiráveis. (FORQUIN, 1993, p. 13-4).

A partir do sentido acima exposto é que se pode dizer, segundo Forquin (1993), que a cultura é a fonte e o conteúdo que alimentam a educação é, sua justificação primaz e última; “a educação não é nada fora da cultura e sem ela” (Idem, p. 14). De forma recíproca é mediante a educação e é nela, por meio do que o autor chama de “trabalho paciente” o qual é feito de sucessivos recomeços de uma “tradição docente”, que a cultura é transmitida e perpetuada. “A educação ‘realiza’ a cultura como memória viva, reativação incessante e sempre ameaçada, fio precário e promessa necessária da continuidade humana.” (Idem).

Entretanto, enfatizar a função de conservação e transmissão culturais da educação não deveria ser impedimento à atenção necessária que merece ser dada ao fato da educação, especialmente a escolar, supor uma seleção feita no interior da cultura, assim como uma reelaboração de seus conteúdos, cujo destino é a transmissão às novas gerações, como diz Forquin (1993). Trata-se de uma dupla exigência – de seleção na cultura e de reelaboração didática – que acaba por impedir a afirmação geral e também abstrata de “uma unidade da educação e da cultura” (Idem, p. 14). O autor defende a necessidade da construção de uma problemática acerca das relações entre escola e cultura.

Forquin (1992) entende a seleção cultural como um processo de transmissão concomitante ao de transformação contínua, definido pela referência a aspectos culturais do passado com o presente. Para o autor, a educação escolar, além de selecionar elementos da cultura, reorganiza- os e reestrutura-os de maneira que estejam acessíveis aos estudantes configurando assim a cultura escolar que significa, conforme suas palavras, “o conjunto de conteúdos cognitivos e simbólicos que

selecionados, organizados, ‘normalizados’ ‘rotinizados’, sob efeitos de imperativos de didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas.” (Idem, p. 167). Ou seja, há uma especificidade e uma seletividade na composição da cultura escolar, denotando que a educação baseia-se em uma seleção de elementos e reformulações de significados existentes na cultura.

Na historiografia educacional, a cultura escolar tem sido identificada como uma de suas “caixas pretas”, por autores como Viñao Frago (2000), na medida em que expressa “modos de pensar e atuar que proporcionam a seus componentes, estratégias e pautas para desenvolver-se tanto nas aulas como fora delas – no resto do recinto escolar e no mundo acadêmico – e integrar-se na vida cotidiana das mesmas.” (Idem, p. 100).

Um fato importante para o qual Forquin (1993) chama a atenção ao discutir a seleção dos saberes escolares quando se trata de eleger os conteúdos de ensino, é que esse processo apresenta dois desdobramentos. O primeiro denota que entre as funções essenciais da escola está a conservação e a transmissão da herança cultural. Todavia, tal reprodução, realizada por meio de um trabalho de memória coletiva, não abarca (e nem parece que seria possível) a totalidade dessa herança, gerando assim esquecimentos e supressões, principalmente diante do que perdeu a significância, ainda que exista uma espécie de luta contra sua obsolescência; concomitantemente, acontecem reinterpretações e reavaliações constantes do que é conservado. Esse fato leva a inferir que a memória escolar também se faz pelo esquecimento e por omissões; o que é ensinado é uma parcela muito pequena diante da expressividade dos fenômenos existentes e apropriados no decorrer do tempo que cada sujeito passa pela escola. Desde logo, as instituições, neste caso as escolas e as universidades, deveriam selecionar da cultura o que é mais original e avançado na composição de seus conteúdos. Isso porque:

[...] de acordo com as épocas, as sociedades, os níveis de estudo, as clientelas escolares, as ideologias pedagógicas, o sistema de relações de forças entre os grupos que buscam controlar as transmissões educacionais, não são os mesmos aspectos, os mesmos componentes da herança que dão lugar à referência e a interpretação ou a transmissão nos contextos dos programas escolares. (Idem, p. 30).

O segundo desdobramento da seleção dos saberes escolares a se ensinar situa-se no presente mediante seus imperativos; trata-se do conhecimento passível de compartilhamento nos sistemas de ensino. Vale destacar que as informações do passado são selecionadas com a finalidade de se compreender o presente. Ocorre que um contingente de fatores sociais, culturais, econômicos, entre outros interferem nessa seleção; fatores tais como o tempo e o interesse por parte de quem os promove limita o próprio ensino. Por essa, entre outras razões, “diferentes escolas podem fazer diferentes tipos de seleção no interior da cultura. Os docentes podem ter hierarquias de prioridades divergentes, mas todos os docentes e todas as escolas fazem seleções de um tipo ou de outro no interior da cultura” (Idem, p. 31). O fato corrobora tanto para a produção de materiais distintos e de distintas concepções e enfoques na mesma área, quanto para a hierarquização de saberes e de áreas, levando à supervalorização de uns em detrimento de outros. O modo singular adotado por cada escola para realizar a transposição didática93 dos aspectos que constituem a cultura escolar, a maneira como

93 É a ação de transformar o conhecimento em conhecimento escolar para ser ensinado. A expressão foi introduzida pelo sociólogo Michel Verret em 1975 e dez anos depois foi rediscutida por Yves Chevallard, pesquisador do campo do ensino das matemáticas, no livro La Transposition Didatique. Sua teoria procura mostrar as transposições que um saber sofre quando passa do campo científico para a escola e alerta para a importância de compreender esse processo, principalmente por parte de quem lida com o ensino das disciplinas científicas. Chevallard desenvolveu um modelo teórico para analisar os sistemas de ensino mais voltado, especificamente, à Didática, adotando como eixo central a discussão do saber escolar. Elabora uma representação na forma de um triângulo equilátero para significar o sistema didático, enfatizando a complexidade das relações que se estabelecem entre os três polos, e assim os define: (S) o saber; aquele que ensina/professor (P); aquele que aprende/aluno (A); sendo que no topo localize-se S (o saber) e nas bases (esquerda) o professor, e (direita) o aluno. Em sua argumentação enfatiza o domínio do enfoque psicológico sobre esse sistema, que priorizou a relação da base (professor-aluno), ficando o saber escolar em outro plano, contribuindo, inclusive para sua naturalização por parte dos envolvidos nessas relações. O objetivo dessa teoria consiste na desestabilização dessa noção, trazendo à baila o distanciamento existente entre o saber ensinado e seus saberes de referência; assim como a possibilidade de considerar o sistema didático a partir da abordagem epistemológica do saber ensinado. Jean Claude Forquin segue nesta direção ao propor a discussão do conhecimento escolar a partir de sua dimensão epistemológica. Salvaguardadas as críticas feitas a Chevallard e sua teoria, tais como a concessão de uma suposta exclusividade do saber ao professor como

estabelece as relações e como se coloca diante delas e dos acontecimentos, das distintas manifestações que se dão a ver em seu contexto é o que possibilita ressignificar a sua própria cultura, constituindo a cultura da escola. Para Forquin, a escola tem suas especificidades, constituindo-se como um “mundo social com características de vida próprias” cujas particularidades lhe conferem uma cultura própria – a cultura da escola - a qual não deve ser confundida com a cultura escolar, como reforça Forquin:

A escola é também um ‘mundo social’, que tem suas características de vida próprias, seus ritmos e seus ritos, sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de regulação e de transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de símbolos. E esta ‘cultura da escola’ [...] não deve ser confundida tampouco com o que se entende por cultura escolar. (Idem, p. 167) [grifos do autor].