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4.1.1 A pesquisa qualitativa em psicanálise

É bastante discutida hoje a questão das pesquisas qualitativas que se afastam do método positivista, principalmente, em relação à psicanálise, que tem como objeto de estudo o inconsciente, havendo certo questionamento acerca da sua cientificidade. Isso se deve pelo fato de que a psicologia, profundamente marcada pela dicotomia cartesiana, ao destacar-se da filosofia, elegeu como objeto de estudo os estados da consciência.

A psicanálise surgiu no início do século XIX instaurando-se como um campo de investigação e intervenção, propondo-se ser uma ciência do psíquico. Encontrava-se imersa em um contexto positivista, que buscava um método que fundamentasse epistemologicamente todas as ciências naturais e sociais, tentando unificar os critérios metodológicos como a observação, experimentação e o raciocínio hipotético.

Pacheco Filho (2000, p. 237), ao escrever sobre a questão da cientificidade da psicanálise, argumenta que

Mantidas a Psicologia e a Psicanálise relativamente segregadas, a princípio observaram-se, principalmente a partir da metade do século XX, iniciativas de se estabelecer pontes de ligação ente esses dois campos. Elogiadas por alguns e criticadas por outros, essas aproximações trouxeram para ainda mais próximo do foco das discussões a questão da cientificidade da Psicanálise e o interesse pelo exame do seu método de investigação. Afinal, a cientificidade sempre foi um tema onipresente no interior da Psicologia, responsável pelos mais intensos debates e pelas mais acentuadas divergências. E, como também, nunca esteve ausente das preocupações e reflexões do próprio Freud, entrecruzamento com as querelas presentes na Psicologia só fez por acirrar as discussões e controvérsias a respeito da Psicanálise.

Não muito raramente, encontra-se hoje críticas de uma vertente positivista em relações às pesquisas que fogem dessa tradição e são realizadas de forma qualitativa. Nesse sentido, Pacheco Filho (1999) esclarece o fato de que, em psicanálise, a produtividade encontra-se principalmente em pesquisas que tenham um alto nível de profundidade, duração e detalhamento do estudo de cada caso analisado. Sobre isso, o autor declara:

É certo que, à medida que seu trabalho se desenvolveu, o próprio aperfeiçoamento histórico e metodológico do paradigma mostrou cada vez mais claramente que a eficácia e a produtividade da pesquisa psicanalítica dependiam muito mais do nível de profundidade, tempo de duração e detalhamento do estudo de cada analisando, em contínua interação, com a reflexão teórica, do que, do número de indivíduos analisados: a análise exaustiva de poucos casos revelou-se inequivocadamente mais

profícua do que pesquisas superficiais de grande número de indivíduos (PACHECO FILHO, 1999, p. 255).

Assim, com o surgimento da psicanálise, ocorre uma mudança significativa no modelo S-O da ciência positivista. O novo modelo propõe a relação S-S, substituindo a relação S-O. Silva (1993, p.17) afirma:

A relação S-O substitui-se assim pela relação S-S, ou seja, entre dois sujeitos, cada um com uma parte consciente comunicando-se “oficialmente” com o consciente do outro, e uma parte inconsciente de cada um utilizando-se de seu estilo peculiar de interação, que passa despercebido. Trazer à tona esse nível submerso, essa intersubjetividade, e relacioná-la com o nível da superfície constitui o complexo e delicado trabalho da psicanálise. Então um clamor levanta-se: Isto ainda é ciência?.

Para Safra (2003), a psicanálise inaugura uma nova forma de fazer ciência, deixando de lado a separação entre sujeito e objeto, os grupos de controle, a busca pelos tratamentos estatísticos, para levar em consideração a participação do sujeito no fenômeno que observa. Ele acrescenta, ainda, que a psicanálise é um campo que investiga o particular para tentar compor modelos abrangentes do psiquismo humano.

Esta pesquisa situa-se no âmbito de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de casos, realizada a partir do método clínico e permeada pelo referencial teórico psicanalítico.

4.1.2 O método clínico-qualitativo como guia

De acordo com Turato (2005), o método clínico de pesquisa é um refinamento, uma particularização do método qualitativo genérico das Ciências Humanas. Na pesquisa qualitativa, o interesse está mais no processo em como o fenômeno se apresenta do que nos resultados ou produtos.

Turato (2005) propôs um esquema comparativo entre o método qualitativo e o quantitativo. Será ressaltada aqui apenas as peculiaridades referentes ao método qualitativo. Segundo ele, o estudo qualitativo não se restringe às hipóteses inicialmente levantadas, ao contrário: parte-se de hipóteses abertas e livres para cada caso; as hipóteses vão se modificando ao longo da pesquisa de acordo com a análise feita do conjunto dos casos, sendo um trabalho de construção de significados. Os instrumentos utilizados são o pesquisador com seus sentidos e sua subjetividade, a observação livre, entrevistas semi-dirigidas ou complementares, coleta intencional em prontuários, testes projetivos e sessões terapêuticas. A

amostragem é intencional, ou seja, ocorre uma busca proposital de indivíduos que vivenciam o problema em foco e/ou têm conhecimento sobre ele.

O estudo de caso constitui-se em uma das formas mais relevantes de investigação na abordagem clínico-qualitativa de pesquisa. Segundo Trivinos (1987), o estudo de caso é uma categoria de pesquisa, cujo objeto é uma unidade analisada profundamente. Este tipo de pesquisa é marcado pela participação do pesquisador no processo e pelos resultados do estudo, exigindo maior severidade na objetivação, originalidade, coerência e consistência das idéias. Em relação à possibilidade de generalização de um estudo de caso, Trivinos (1987, p. 130) ressalta:

No estudo de caso, os resultados são válidos só para o caso em que se estuda. Não se pode generalizar o resultado atingido no estudo de um hospital, por exemplo, a outros hospitais. Mas aqui está o grande valor do estudo de caso: fornecer o conhecimento aprofundado de uma realidade delimitada que os resultados atingidos podem permitir e formular hipóteses para o encaminhamento de outras pesquisas.

Nesta pesquisa serão apresentados e discutidos dez casos clínicos. Esses casos, de acordo com o que foi dito anteriormente, são provenientes da aplicação do Procedimento de Desenhos-Estórias em crianças de nove anos, estudantes da terceira série em um colégio particular de São Luís-MA. A análise dos casos foi realizada a partir do método clínico, tendo como referencial teórico a psicanálise.

É a partir da análise e da interpretação de cada unidade de produção que será possível saber qual o caminho que esta pesquisa irá tomar. De acordo com Hermann (1991), é preciso deixar primeiro que surja para depois tomar em consideração.

Vou tomar em consideração aquilo que surgir da interpretação do Procedimento Desenhos-Estórias. Por ser uma pesquisa qualitativa, não pretendo generalizar os resultados obtidos que dizem respeito a este grupo específico de crianças. Considero importante a reflexão feita por Hermann(1993, p. 143):

Quando o pesquisador se lança numa pesquisa psicanalítica, ele faz também o papel de Therapon, quer dizer, ele não vai descobrir, ele vai permitir que se descubra, permitir que algo tire a coberta de cima de si próprio, vai permitir que se dê uma aletheia, um desesquecimento, já que as águas do rio Lethes eram as águas do esquecimento.

Antes de finalizar esta discussão, acredito ser importante remeter o conceito de método psicanalítico ao leitor. Vale a pena recordar, primeiramente, a definição feita por Freud (1910) sobre o que é a psicanálise:

[...] psicanálise é o nome de um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica (FREUD, 1976, p. 287).

O método psicanalítico surgiu da prática clínica de Freud, no entanto, seu objeto não se reduz à sessão de análise. É o método psicanalítico – interpretação – que nos possibilita entrar em contato com os aspectos inconscientes, provenientes do material utilizado para a pesquisa. Este método, quando posto em prática, possui um efeito disruptor no campo de sentido comum, ou seja, ela vai possibilitar que novos sentidos e significações surjam.

Então, aplicar o método psicanalítico é fazer brotar, do estudo de algumas relações humanas, as estruturas profundas que as determinam. Mais precisamente, aquilo que eu costumo chamar de ‘campo’ dessas relações. Para isso, o método todo consiste essencialmente em fazer explodir, ou talvez, mais precisamente, implodir o sistema consensual dessas relações, a forma como habitualmente as lemos, compreendemos, para aquilo que esta aí, oculto, brote [...] (HERMANN, 1993, p.135)

Assim, é com o olhar de estrangeiro que vou me debruçar sobre o material obtido através dos D-E tentando, em um primeiro momento, me despojar dos sistemas teóricos fechados e aprisionantes. Segundo Freud (1910), a psicanálise se constitui de uma teoria, uma técnica e um método. Contudo, é através de seu instrumento metodológico que a psicanálise se defronta com o novo, com um conhecimento que não é estático, nem definitivo. Para finalizar, recorro a uma importante reflexão feita por Silva (1993, p. 22-24) sobre o pensar e o pesquisar em psicanálise.

Ao iniciar-se uma investigação, portanto, há que renunciar aos conhecimentos prévios e colocar-se numa posição de receptiva curiosidade, sem que a ânsia de conhecer obstrua ou determine as representações deixadas livres para se organizar ‘gestalticamente’ a partir do material que se oferece à observação [...] Para se contrapor ao medo de que nada de novo surja, ou à necessidade imperiosa de mostrar eficiência, há que acreditar no eterno movimento da vida, na natureza sempre pulsando em direção à representação, e ficar tranqüilo de que um sentido sempre acabará por se fazer, porque é da ordem do humano que assim aconteça [...] O panorama que afinal se descortina pode enfim se oferecer como uma verdadeira contribuição, trazendo algo de novo, e não como a comprovação de uma teoria apriorística e sem consideração pelos dados, em que se aprende o que já se sabia.

No documento GIANNA FILGUEIRAS MOHANA PINHEIRO (páginas 68-71)