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A narrativa “Issao e Guga”, escrita por matthew lipman, destinada às crianças do primeiro e segundo ano do Ensino Fundamental I, está dividida em dez capítulos, que tem como objetivo desenvolver a lin- guagem por meio do diálogo; intensificar a consciência perceptiva das crianças, a partir dos temas e conceitos apresentados que são: diálogo, raciocínio sobre sentimentos, classificação e distinção.

Nesta narrativa, os personagens Issao e Guga nos contam sobre suas férias inesquecíveis que viveram juntos. Issao visita a fazenda de seus avós e torna-se amigo de Guga, que mora com sua família ali perto. o avô de Issao, que já foi marinheiro, conta sobre um encontro que teve com uma baleia e diz que gostaria de visitar um lugar onde pudesse, novamente, observar as baleias. Issao o convence a fazer esta viagem e levar a família de Guga. A maneira como Issao e Guga demonstram interesse por animais, pela noção de espaço e tempo e por muitos outros aspectos da natureza, faz deste texto uma introdução ideal à investigação sobre as relações entre a linguagem, o mundo e as diferentes formas de percepção.

o diálogo filosófico apresenta-se em toda a narrativa. Para com- preendermos melhor, destacar-se-á, a seguir, alguns trechos para análise e compreensão da proposta lipmaniana, tal como a experiência que o avô de Issao teve, ao encontrar uma baleia, nos dias que atuava como marinheiro. Com isso, Lipman, (1997, p. 16-17):

[...] Foi num verão, quando estava num barco a motor na costa do Nordeste. [...] Bati em alguma coisa. Não sei o que foi, não cheguei a ver o que era. Talvez fosse um barco meio naufragado. Com

a batida fui jogado contra a roda do leme e quebrei o braço. Aí então o barco virou, não de todo, mas o suficiente para me jogar na água. [...] o leme do barco emperrou, e o barco começou a andar em círculos. [...] Pensei que a qualquer minuto eu seria puxado pra baixo do barco e pra dentro da hélice do motor.

- o que aconteceu? A gasolina acabou?

- Não, não foi isso, Issao ... de repente, ouvi um estrondo como um trem se aproximando, como uma locomotiva subindo do fundo do mar. - era uma baleia! Aposto que era isso! - Você está certo. Era exatamente isso [...]

- o que ela fez depois, vô? Conta pra mim ... - Nadou direto para o barco e, com um estalo do rabo, fez o barco em pedaços.

- Ela salvou sua vida. - Isso mesmo.

- Mas ela não sabia disso vô. Provavelmente, ela só estava assustada com o barco ou brava com ele. Ela não tinha a intenção de salvar sua vida. [...] (Grifo do autor)

o trecho acima, além do diálogo que permite o uso da raciona- lidade, concede oportunidade também para o desenvolvimento da linguagem, pois algumas palavras são grafadas para, posteriormente, discutir seu significado e seu sentido no contexto do diálogo entre Issao e seu avô. Toma-se como exemplo, o vocábulo “exatamente”. Todavia, a discussão filosófica nos permite refletir o significado da palavra “sa- ber”, ou seja, analisar o que podemos ou conseguimos saber, conforme o trecho citado acima: “será que podemos saber tudo?”. os questio- namentos que podem ser realizados pelo professor ou por qualquer membro da comunidade de investigação filosófica, levam às crianças ao exercício da reflexão, em um exercício sistemático de organização do pensamento. As crianças, geralmente, despertam interesses pelos animais e pelas questões da natureza. Tais interesses se evidenciam na narrativa e convidam o leitor para a imersão no conhecimento

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filosófico/científico, na questão da linguagem, na relação com o mundo e nas formas diferentes de percepção.

A narrativa “[...] visa ajudar as crianças a desenvolverem habili- dades cognitivas de uma maneira sequencial e também acumulativa.” (LIPMAN, 1997, p. 02). Esta obra se dividi em dez capítulos, cujas temáticas são: 1. Habilidades de Inferência; 2. leitura Profunda; 3. Formação de Conceito; 4. experiência por meio da poesia; 5. o papel da deficiência da Guga.

Habilidades de Inferência: Inferir é uma habilidade fundamentalmente importante para o raciocínio [...]. o Programa de Filosofia para Crianças propicia às crianças a oportunidade de praticar a inferência dedutiva [...], que as introduzirão nos princípios lógicos subjacentes ao que elas estiverem pondo em prática.

Outro tipo de inferência é a indutiva. Onde a in- ferência dedutiva pode garantir a verdade das conclusões (se as premissas são verdadeiras e a forma do argumento é válida, a conclusão pre- cisa ser verdadeira, o raciocínio indutivo só pode, na melhor das hipóteses, dizer que a conclusão provavelmente é verdadeira. [...]. (LIPMAN, 1997, p. 24-25)

Assim a leitura da narrativa lipmaniana desvela-se a partir de situações que as crianças realizam as inferências pautadas nas ob- servações. Além de que, o capítulo 1 (um) inicia com Issao sendo o narrador e, posteriormente, Guga. Mas, nos capítulos seguintes as crianças observarão quem é o locutor, ou seja, “inferir a partir do texto. Isso significa procurar no texto as evidências internas para determinar quem é o narrador”. (lIPmAN, 1997, p. 28). Para o autor, essa estratégia estimula e aprimora as habilidades do pensar.

De acordo com Lipman (1997) a leitura atenta oportuniza as crian- ças a explorar cuidadosamente o que estiverem lendo. Assim a prepa- ração do leitor meticuloso em compreender as palavras, reconhecê-las no contexto que estão sendo empregadas, estabelecer significados à criança é importante. Para o autor “[...] o único sentido que as crianças respeitarão será aqueles que elas mesmas possam extrair de suas pró- prias vidas, e não aqueles que lhes é oferecido pelos outros.” (lIPmAN, 1994, p. 98). Essa concepção presente nas propostas tradicionais de ensino, ainda de caráter cientificista e racionalista, a qual as ideias e

verdades são sustentadas pela concepção do adulto, o que caracteriza, portanto, a aprendizagem pela imposição.

Na questão de formação de conceitos “[...] a ênfase está nas habi- lidades de pensamento e nos conceitos filosóficos [...] nas habilidades cognitivas, mas com atenção especial aos conceitos científicos.” (lIP- mAN, 1997, p. 25). oportunizando as crianças a refletirem imersas em uma lógica do pensamento filosófico e científico. uma vez que os temas de ecologia e zoologia fazem parte desta narrativa. Os conceitos são construídos a partir de uma ampla discursão de ideias, não necessa- riamente conceitos fechados, mas conceitos que levem a aproximação mais possível da verdade. Pensar cientificamente é pensar de forma filosófica, com o uso da lógica.

Estudando lógica, podemos aprender a identi- ficar o que se pode inferir logicamente a partir de determinadas afirmações ou grupo de afir- mações. [...]

A lógica pode nos dizer, em outras palavras, o que está implicado no que dizemos possa ser cuidadosamente formulado e arranjado de acordo com as regras da lógica. (LIPMAN, 1994, p. 161) observa-se que na proposta lipmaniana o trabalho da lógica parte do sentido real da vivência das crianças. Assim, para o autor nossas falas obtém significados próprios do nosso quadro de referência, ou seja, dentro da nossa realidade.

outra consideração que merece destaque é a intensificação da experiência por meio da poesia. Para lipman (1997, p. 25) “[...] um po- ema sobre um animal pode ser dado para promover, nas crianças, uma consciência mais intensa do animal sobre o qual o poeta escreveu [...]”.

tucano de Bico Verde

Tucano eu sou Tucano eu fico: Se gostou Ou não gostou Do tamanho Do meu bico

Mudá-lo seria engano, Pois um tucano tem bico Tem um bico de tucano.

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E se encurtam o seu bico Fica o bico do tucano Igual ao bico do tico-tico, e é normal que cada qual Seja senhor do seu bico (Sidônio Mulhara40) (Grifo do autor)

Nessa proposta, o autor enfatiza a importância da poesia, ao tratar temáticas distintas, tal como as ciências da natureza, temáticas que possibilitam trabalhar a poesia. A poesia aguça o pensamento das crianças a “[...] ser boas observadoras tanto quanto raciocinado- ras e, provavelmente não há nenhum grupo de pessoas que observe mais atentamente ou mais intensamente do que artistas e poetas.” (LIPMAN, 1997, p. 25). A poesia é encantamento, permite aguçar a sensibilidade, trabalha a linguagem, a escrita entre outras habilidades que podem ser desenvolvidas de forma interdisciplinar, inclusive a questão da identidade.

A narrativa também traz a possibilidade de observarmos a defici- ência de Guga, conforme destacado pelo autor. No entanto, no decorrer da narrativa, Guga se revela e abre espaços para que crianças leitoras descubram a deficiência dela. É interessante também salientar que Issao trata as limitações de Guga de modo natural, o que permite que Guga tenha autonomia, apesar de alguns momentos ela necessitar da ajuda do amigo.

A percepção de como Guga interage com o mundo é destacado na narrativa:

Penso no que percebo quando passo a mão pelo rosto da minha mãe e do meu pai. Tento descobrir se meu nariz se parece mais com o nariz dela ou dele. O nariz dele é arrebitado. E o nariz dela é bem gordinho. estou usando um colar de contas que ganhei no meu último aniversário. Não são péro- las de verdade, são artificiais. São todas parecidas. Se elas fossem pérolas reais, cada uma delas seria diferente. (LIPMAN, 1997, p. 61).

40 Nasceu em lisboa no dia 28 de julho de 1920. Poeta e ficcionista, fez parte do primeiro movimento neorrealista. em 1942 deixou Portugal a caminho do Zaire e, em 1962, fixou-se no Brasil onde desenvolveu a sua vocação de contador de histórias para crianças, paralela- mente à sua atividade poética. Morreu no dia 8 de dezembro de 1982, em Curitiba, Paraná.

o processo filosófico de conversação e exercícios para compreensão vislumbra o que seja comparação, analogia e símile, que possibilita às crianças a percepção no dia a dia, de forma simples, estimulando o uso da lógica filosófica. No caso de Guga, a percepção do mundo é aguçada pelo tato e audição, já que Guga é cega, mas não impossibilita Guga de encontrar as baleias no litoral do nordeste do Brasil. O avô de Issao diz:

o primeiro que ver uma vaca ganha uma moeda! [...] vejo uma vaca e ganho a moeda. Então come- çamos a brincar disso: [...]

Guga tinha se encolhido toda quando a gente pegou o caminho do hotel. Ela se endireita e pergunta: - o que o senhor vai dar pro primeiro que ouvir uma baleia?

- Guga, larga de ser boba. Não dá pra ouvir uma baleia.

- eu as ouvi – diz vovô. A primeira pessoa que ouvir uma baleia nesta viagem vai ganhar duas daquelas moedas antigas! [...] o que você está ouvindo me- nina? Fala, o que você está ouvindo?

- É como alguém cantando. Parecem três notas. A segunda é mais alta que a primeira, e a terceira é mais alta que a segunda.

[...] – É isso! – vovô grita – Você ouviu! É o som das baleias!

(LIPMAN 1997, p. 53- 63)

entende-se, portanto, que incluir Guga no passeio para ver as baleias, não significa que ela não possa sentir esse momento; pelo contrário, suas sensações são aguçadas pela própria necessidade de interagir com o mundo que a cerca. Assim, Santos e Paulino (2008, p. 12):

[...] a educação inclusiva tem importância funda- mental, pois busca, por princípio básico, a mini- mização de todo e qualquer tipo de exclusão em arenas educacionais e, com isso, elevar o máximo o nível de participação, coletiva e individual, de seus integrantes. Baseadas nesses ideais democráticos, as propostas inclusivas são revolucionárias, pois

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almejam, incondicionalmente, uma estrutura social menos hierarquizada e excludente, tendo como base o argumento de que todos temos o mesmo valor, pelo simples fato de sermos humanos. (Grifo do autor)

A inclusão é um processo de aceitação do outro, de compreensão de suas limitações, sem com isso ignorá-lo. Na narrativa, em vários momentos Guga pede a Issao que descreva pra ela, o céu, as estrelas entre outras coisas, e assim Guga vai se revelando como uma criança curiosa, participativa e inteligente.

Do ponto de vista pedagógico, estimular as crianças ao desenvol- vimento das habilidades do pensamento, a partir de suas observações e realidades, compõe o desenvolvimento de habilidades cognitivas importantes para o desenvolvimento da linguagem, além de permitir a melhoria do vocabulário na busca de novas significações. No diálogo filosófico, a reflexão é a construção de narrativas que tudo tem uma história ou faz parte de uma história, que podemos conhecer e este conhecer se é possível pela investigação, pela filosofia, pela ciência, pela arte, pela literatura e pela poesia proposta na narrativa “Issao e Guga”, de mattew lipman.

coNSidErAÇÕES fiNAiS

Referindo-se ao objetivo proposto, o qual se ocupa nas contri- buições da proposta de mattew lipman, que emprega a Filosofia para Crianças. A compreensão das temáticas são trabalhadas na narrativa “Issao e Guga”, a partir da interdisciplinaridade e inclusão. então, foi possível compreender a aquisição da linguagem filosófica pela per- sonagens, para introduzir o diálogo investigativo de forma lúdica, presente na narrativa lipmaniana, que remete ao universo infantil questões pertinentes para o uso da razão. Todavia, sem menosprezar e reduzir o conhecimento e percepção da criança. As personagens, Issao e Guga, além de contribuir para o enriquecimento do repertó- rio linguístico, proporciona às crianças o pensamento arrazoado, ou seja, conforme o exercício do pensamento racional, reflexivo. Assim, a narrativa nos instiga a inferir, a conhecer, a compreender o mundo, a escutar histórias, a poetizar na ciência com encantamento da arte, da filosofia e da inclusão.

rEfErêNciAS

CuNHA, José Auri. Filosofia – iniciação à investigação Filosófica. São Paulo: Atual, 1992.

lIPmAN. matthew; SHARP, Ann margareth. a Filosofia na sala de aula. Tradução Ana Luiza Fernandes Falcone. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. ________. Matthew. a Filosofia vai à escola. Tradução de Maria Alice de Brzezinsk Prestes; lúcia maria Silva Kremer. 2ª ed. São Paulo: Summus, 1990.

________. Mattew. issao e Guga. Tradução de Sylvia Judith H. mandel, 2ª ed. São Paulo: Difusão de Educação e Cultura, 1997.

LORIERI, Marcos Antônio. Filosofia no ensino fundamental. São Paulo: Cortez, 2002.

SANTAELLA. Lúcia. Estética de Platão e Pierce. 2ª ed. São Paulo: Ex- perimento, 2000.

SANToS, mônica Pereira dos; PAulINo, marcos moreira. (orgs). In- clusão em Educação: culturas, políticas e práticas. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.