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Parte I – Enquadramento teórico 9

4.2   O cenário e os adereços: situar a narrativa e as personagens 93

Para cada marca ou produto existe um lugar, um ambiente, alguns objetos e personagens que a situam, a fim de a caracterizarem e de lhe reportar uma identidade.

Na produção de anúncio de televisão, existem profissionais ligados à produtora audiovisual que se ocupam da construção do habitat visual da marca, investindo no invólucro e na “arte visual do cinema”100 (Aumont e Marie, 2008: 260).

É sobre o exterior tangível (cenário e adereços) que germinam as particularidades intangíveis (da marca) que se pretendem comunicar ao consumidor. No seu todo a

100O campo visual em relação às artes abrange o aspeto representativo e o aspeto plástico. Este duplo significado permite que se possa afirmar que o cinema é uma arte do visual (Jacques Aumont e Michel Marie, 2008: 260).

mensagem publicitária, desta vez é (re) interpretada pelos seguintes intervenientes: realizador, diretor de arte, aderecista e diretor de fotografia.

Este processo tem como timoneiro o realizador, cabendo-lhe pronunciar-se primeiramente sobre o ambiente e a estética que pretende recriar para o anúncio (embora em consonância com o cliente e agência de publicidade). Com ele trabalha, de forma direta, o diretor de arte, que tem como missão criar toda a estética do anúncio, desde os adereços ao mobiliário. A sua função consiste em desenvolver uma atmosfera na qual se identifique a marca, através de um conjunto de escolhas (adereços e cenário) que funcionam no contexto publicitário como símbolos, que traduzem a ‘alma’ do seu referente (marca) e que serão posteriormente descodificados pelo consumidor.

Toda a intervenção sobre o espaço que se constrói e se altera para modificar a sua aparência, como a cor, a textura das superfícies ou a colocação de adereços produz uma projeção de significado sobre tudo o que se expõe.

Assim sendo, o cenário pode contribuir e influenciar um determinado significado a uma marca Berger refere o exemplo de um anúncio de imprensa da marca Badedas (1972: 146),

101 no qual é utilizado “arquétipo da Cinderela” como é designado por Mark e Pearson

(2001: 193). Na história da Cinderela temos uma fada que utiliza os seus poderes mágicos conseguindo transformar a menina frágil numa princesa, oferendo-lhe um vestido e uma carruagem para ir ao baile. No anúncio em questão usa-se a mesma estratégia - tornar a mulher desejável e bela através da magia que o produto lhe oferece e produz:

[P]ublicity principally addressed to the working class tends to promise a personal transformation through the function of the particular product it is selling (Cinderella); [m]idle-class publicity promises a transformation of relationships through a general atmosphere created by an ensemble of products (The Enchanted Palace) (idem).

101O anúncio exibe uma modelo nua (com uma toalha que apenas lhe encobre um pouco o corpo) de costas para o espetador que espreita através de uma janela imensa. Esta direciona o seu olhar e espreitando o homem que caminha na sua direção, do exterior de um enorme jardim. Num plano mais afastado, está um automóvel estacionado (Ford A) e um motorista de costas e de pé a olhar para o jardim, que se assemelha aos jardins de uma casa nobre. As personagens colocados em três planos distintos imprimem à imagem uma certa tensão, de desejo e expetativa.

O slogan da marca Badedas, “Things happen after a Badedas bath” reforça e espelha o poder de transformação do produto102.

Neste cenário todos os adereços são emblemáticos. O automóvel usado simboliza tecnologia e robustez. O motorista funciona na imagem como um adereço, (vestido a rigor), simbolizando por sua vez o poder económico do Príncipe Encantado.

Tal como observámos, os adereços funcionam como símbolos em publicidade, contendo significados que serão transferidos para imagem de marca que pretendem comunicar.

A seleção dos adereços dos anúncios de publicidade é da responsabilidade do realizador, cabendo-lhe na fase de pré-produção do anúncio transmitir à direção de arte a atmosfera de que necessita para comunicar a marca. Estas indicações podem ser transmitidas de forma variada, nomeadamente através de filmes de referência, fotos de arquivos e revistas, por exemplo. Depois deste briefing, o diretor de arte reúne com o cenógrafo, para se iniciar a pesquisa para a construção do set:

[A]sí, la función principal del director artístico, una vez imaginados los espacios un su funcionalidad, dramática, narrativa y cinematográfica, consiste en una concienzuda labor de documentación histórica: arquitectónica, tecnológica, sociológica, etc., para que todos los espacios creados se construyan con una notable apariencia de autenticidad (Barroso, 2008: 214).

A razão pela qual a direção de arte é importante prende-se com outra das preocupações existentes na criação das mensagens publicitárias nos spots de televisão, ou seja, transmitir uma personalidade aos modelos escolhidos para comunicar as marcas. Em relação à veracidade da imagem e na tentativa de a tornar próxima do espetador, e torná-la

consubstancial, Joly expõe o seguinte:

[S]e face à imagem, seja ela qual for temos uma expectativa de verdade (que não temos, por exemplo, da linguagem), é porque, como vimos, a natureza da imagem está não só associada, desde a Antiguidade, à noção de verdade, mas também à sua capacidade de estar fisicamente ligada ao que ela representa, como a sombra, o ídolo, o ícone, a fotografia, e assim por diante... (2002: 154-155).

102O slogan pode ser uma frase sucinta utilizada de forma repetida na publicidade de um produto, empresa ou serviço. É o dispositivo que provoca associações de cariz funcional e emocional (Clotilde Perez, 2004: 86-87).

A colocação dos adereços num anúncio tem como objetivo primordial tornar próximo o objeto sígnico (que aqui se entende como sendo a marca) do consumidor em duas perspetivas:1) humanizar o seu habitat e simultaneamente 2) gerar valor relativamente à marca. A primeira perspetiva prende-se com a aplicação de estratégia sociocultural da marca, partindo do pressuposto que o consumidor vive inserido numa sociedade na qual se sente influenciado pelas suas ações. Consequentemente, como nos recorda Perez (2004: 120), a marca “(...) também influencia as outras pessoas com as quais convive”. O consumidor está inserido num contexto cultural no qual as marcas se caracterizam como sendo símbolos sociais, ficando desta forma com o legado das sensações de aceitação e pertença a um determinado grupo social (idem). Nesta medida, o consumidor aspira ao reconhecimento social e aceitação perante um determinado grupo através do uso do produto e pelos objetos que o circundam, podendo desta forma elevar-se a um determinado estatuto social.

Sobre o valor simbólico dos produtos, Baudrillard recorda ainda:

[N]unca se consome o objecto em si (no seu valor de utilização); manipulam-se sempre os objectos (no sentido mais alargado) como signos que nos diferenciem, seja por aplicação no nosso próprio grupo tomado como referência social, seja para nos demarcar do nosso próprio grupo por referência a um grupo de estatuto superior”. (cit in Lindon et al, 2010: 106). Nesta ideia verifica-se que o somatório de alguns objetos por adição de outro conjunto de signos permite que o consumidor possa ascender a outro estatuto social, daí a relevância da simbologia dos adereços colocados nos anúncios de televisão e o significado que cada um deles exerce sobre a marca. A seleção do mobiliário e adereços deve no entanto, ser o mais criteriosa possível e ir de encontro à imagem que se pretende comunicar acerca da marca:

[C]om efeito, não há verdadeira diferença em tratar um calhau ou uma borracha. Para os dois objetos, isso pressupõe - a respeito da nossa finalidade, a análise das imagens – passar por um suporte intermediário, desenho, gravura, fotografia ou pintura. Tal como na arquitetura, estes suportes são uma interpretação do objecto. Obriga-nos portanto, a estudar a própria representação e aquilo que esta indica (Gervereau, 2007: 150).

Os estilos de vida são uma forma de segmentar e dirigir as marcas, nomeadamente os valores pessoais103 dos consumidores, apesar de os consumidores poderem não ter

103Os valores pessoais consistem num “sistema de valores e das características de personalidade que determinam as interações entre o individuo e o que o rodeia. Isto compreende aspectos psicológicos,

consciência do papel da importância que os estilos de vida têm em relação à sua decisão de compra104.

O estilo de vida dos consumidores reflete-se sempre na imagem da marca apresentada nos anúncios de televisão e na qual espelham, cuidadosamente, a sua própria imagem. Importa, todavia, realçar que, de um modo geral, os consumidores tendem a preferir produtos e marcas que melhor se adaptam à sua auto imagem (Hawkins, 2007: 232). Esta harmonia é quantificada pelo simbolismo e pelo consumo visível ou público (idem). E é apontada como sendo mais relevante, para produtos como perfumes ou carros, produtos cujo simbolismo expressa valores, em detrimento de outros mais utilitários, como pilhas para o rádio, por exemplo.

Este conceito é utilizado nas campanhas de publicidade de carros de luxo. Estes anúncios utilizam cenários e adereços que se coadunam com os estilos de vida do seu público-alvo. Após um estudo efetuado por algumas marcas de luxo, chegou-se à conclusão de que os segmentos que ocuparam a maior percentagem têm a seguinte classificação: poderosos (70%), elitistas (24%); e clientes vaidosos (23%), etc (idem).

Todos estes indicadores estão patentes no anúncio da marca Porsche que selecionámos como exemplo. Neste caso concreto, o poder económico do consumidor é evidenciado pelos acessórios da atriz (malas da marca Louis Vuitton e tipo de habitação) e no anel de brilhantes que a atriz deita pela janela. A história presente no anúncio relata um corte numa relação conjugal e uma procura da felicidade (a modelo ao deixar a sua casa leva consigo o objeto que considera mais precioso, o carro) Antes da partida desta personagem, podemos ‘ler’ através da sua postura sentimentos como a cobiça e a luxúria. A atitude que assume denota ainda rebeldia e vontade de viver uma aventura.

tais como personalidade, e aspectos psicossociológicos, assim como a percepção feita por cada indivíduo do modo como os diferentes papéis sociais devem ser desempenhados” (Denis Lindon et al, 2010: 107).

104As empresas procuram criar relacionamentos entre os seus produtos/marcas com os grupos de estilos de vida. Um fabricante, ao constatar que a maioria dos compradores do seu equipamento é orientado para a realização, poderá posicionar e direcionar a sua marca para o estilo de vida deste consumidor. Uma das medidas poderá passar pela redação da mensagem da sua marca. Os textos publicitários deverão conter palavras e símbolos que atraiam as pessoas que procuram a realização (Philip Kotler, 1998: 172).

A expressão do rosto por sua vez também se vai alterando: nos primeiros planos mostra-se zangado e sério, passando a transmitir uma certa alegria e satisfação à medida que se aproxima do produto. Deste modo, o espetador é levado a percorrer uma série de sentimentos que a marca projeta no consumidor e que simultaneamente deseja projetar105. Além disso, neste discurso visual encontramos ainda uma associação entre a imagem de marca e os momentos de mudança/rutura que passam a ser determinantes na vida do consumidor e com os quais este se pode identificar.

Fig. 6 Spot de TV: Porsche

Fig.7 Spot de TV: Porsche

Em suma, todo o mobiliário e adereços, quando colocados em cena, deverão encontrar-se em conformidade os objetivos da marca, além de contribuírem em termos de significado

105 Spot de televisão disponível

para o processo da mensagem audiovisual: por um lado, ornamentam e decoram o ambiente no qual o produto se move, e fundamentalmente, têm uma aplicação funcional: “cuando intervienen de forma destacada y singularizada con respecto a un personaje o un acción [...]” (Barroso, 2008: 218).

No próximo ponto, levaremos a cabo uma incursão sobre um dos recursos discursivos mais importantes e recorrentes no que concerne ao tratamento das personagens que povoam os anúncios de publicidade: a caracterização.