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1. O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO

1.2 O CONTRADITÓRIO COMO PRINCÍPIO

princípio do contraditório é que a sua origem é efetivamente constitucional. No Brasil, referido princípio não foi contemplado nas Constituições de 1824, 1891 e 1934. Apenas ganhou assento constitucional com a Carta outorgada em 1937, em seu artigo 122, §117. Todavia, a fórmula então adotada pelo legislador constitucional limitava

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“Art 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] 11) à exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão depois de pronúncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei e mediante ordem escrita da autoridade competente. Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, senão pela autoridade competente, em virtude de lei e na forma por ela regulada; a instrução criminal será contraditória, asseguradas antes e depois da formação da culpa as necessárias garantias de defesa; [...].”

o espectro de aplicação do princípio ao processo penal, o que se manteve nas Constituições de 1946 e 1967.8

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1976, p. 225-258), ao comentar a Carta Constitucional de 1967, há muito defendeu que o princípio do contraditório insculpido no artigo 153, §16, representa a necessária garantia e segurança de igualdade das partes no processo, justamente para protegê-las de práticas arbitrárias que ameaçavam avassalar o direito processual brasileiro.9

A referência à possibilidade de contraditório, àquela época, era feita apenas em relação ao processo penal. O comando constitucional abrandava-se quando tratava do processo civil ou administrativo, em contrassenso aos parâmetros democráticos experimentados no Brasil (AGUIAR, 2004, p. 86).

A inovação trazida pela atual Constituição Federal foi de grande profundidade na medida em que invoca expressamente comando de que o contraditório deve alcançar todos os procedimentos judiciais, inclusive o civil e o administrativo. É como estabelece o artigo 5°, inciso LV, da Carta Constitucional: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e os acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes.”.10

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A simples possibilidade de contraditório esteve presente – embora, por vezes, com denominações distintas (como ampla defesa) – no artigo 72, §16, da Constituição de 1891; no artigo 113, n. 24, da Constituição de 1943. Como princípio, no âmbito penal, no artigo 122, n. 11, da Constituição de 1937; no artigo 141, §25, da Constituição de 1943; no artigo 150, §15, da Constituição de 1967; no artigo 153, §16, da Constituição de 1969. E, finalmente, como princípio constitucional amplo, no artigo 5°, inciso LV, da atual Carta Magna (LIMA, 2009, p.173-175).

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Nos comentários da primeira parte do §16 do artigo 153 da Constituição de 1967, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1976, p. 225-258) assinalou: “[...] assenta-se que a instrução criminal há de ser contraditória o que já representa garantia contra praxes que ameaçavam avassalar o direito processual brasileiro em 1937-46 e 1964-67. Fica afastada qualquer possibilidade de expedientes inquisitórios, com as características de opressão e consequentes parcialidades e arbitrariedades. Seja judicial, seja judicialiforme, ou perante o juiz, ou perante a polícia, ou perante as autoridades administrativas, a instrução criminal tem de ser, por força da Constituição, contraditória”.

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Como aponta o texto constitucional, o contraditório não se limita apenas aos processos judiciais, mas abrange também os processos administrativos. É possível, outrossim, haver incidência do princípio do contencioso em “procedimentos prévios” à instauração de um processo judicial. O assunto foge ao escopo deste trabalho, mas é importante citar que existem “formulários

Revela-se, assim, a adoção de uma postura mais aberta por parte do legislador constituinte de 1988, no que diz respeito à aplicação das garantias do contraditório e da ampla defesa. Referidas garantias estão hoje presentes e se estendem a todos os participantes em feitos judiciais, independente de serem pessoas físicas ou jurídicas, autor, réu, opoente, denunciado, assistente, Ministério Público ou até aquelas entidades despersonalizadas, desde que partes em processo, qualquer que seja: judicial, penal, cível ou processo administrativo (LIMA, 2009, p. 176).11

Bem por isso, José Afonso da Silva (1989, p. 83) qualificou o princípio em comento como um “princípio-garantia”. Na sua clara lição: Princípios constitucionais gerais informadores da ordem jurídica nacional decorrem de certas normas constitucionais e, não raro, constituem desdobramentos [ou princípios derivados] dos fundamentais, como o princípio da supremacia da Constituição e o consequente princípio da constitucionalidade, o princípio da legalidade, o princípio da isonomia, o princípio da autonomia individual, decorrente da declaração dos direitos, o da proteção social dos trabalhadores, fluente de declaração dos direitos sociais, o da proteção da família, do ensino e da cultura, o da independência da magistratura, o da autonomia municipal, os da organização e representação partidárias, e os chamados princípios – garantias (o do nullum cimen sine lege e da nulla poena sine lege, o do devido processo legal, o do juiz natural, protocolares” criados pelas Civil Procedure Rules inglesas para estabelecer os limites do objeto litigioso antes de as partes ingressarem definitivamente em juízo. Também, incide em sua plenitude o contraditório em “procedimentos alternativos de resolução de conflitos”, especialmente na “arbitragem”, onde a paridade de armas entre as partes é considerada um elemento da ordem pública internacional em matéria de arbitragem (SANTOS, 2011, p. 89-90).

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Eduardo Arruda Alvim (2013, p. 145) consigna observação importante sobre a distinção entre o contraditório no processo civil e no processo penal: “No processo penal, exige-se defesa técnica substancial do réu, mesmo que revel (art. 261 do CPP), mandando-se dar defensor ao réu que seja tido por indefeso. No processo civil, a projeção do princípio é menor. Exige-se que seja dada ciência ao réu da propositura da ação, porém isso não impede que, tratando-se de direitos disponíveis, seja julgada a ação, a despeito do fato de o réu ser revel (art. 330, II, do CPC).”.

o do contraditório, entre outros, que figuram nos incisos XXXVIII a LX do art. 5º).

Como mencionado antes, o presente estudo se debruçará sobre a garantia constitucional do contraditório, sem a preocupação de diferenciá-lo da ampla defesa. Todavia, cumpre salientar que a ampla defesa tem cunho instrumental, funcionando como aparato inequívoco do regular exercício do direito natural à contraposição e, por consequência, como concludente lógica do princípio do contraditório, ora em sua face jurisdicional (DEUS, 2009, p. 42).

O princípio inscrito na Carta Magna brasileira, no artigo 5º, inciso LV, citado linhas atrás, articula-se com o imediatamente anterior: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”.

Ovídio Araújo Baptista da Silva (1993, p. 150) ensina que, embora as exigências básicas para a observância de um “devido processo legal” tenham acompanhado, invariavelmente, a história de nossas instituições processuais desde o velho direito lusitano, também neste ponto o constituinte federal houve por bem inscrever em texto expresso a consagração do instituto correspondente do direito comum anglo-americano, estabelecendo a exigência do “devido processo legal”, a ser reconhecido tanto aos acusados em geral como a qualquer “litigante em processo judicial”, e também por eles observado.

O processo civil moderno é banhado pela cláusula do devido processo legal, assegurada expressamente pela Constituição da República (artigo 5°, inciso LIV), não apenas sob um enfoque individualista da tutela de direitos subjetivos das partes, mas, sobretudo, como conjunto de garantias objetivas do próprio processo, fator legitimante do exercício da jurisdição. Assim, pode-se afirmar que garantias como as da defesa, do contraditório, da igualdade estão incrustadas na base da regularidade do processo e da justiça das decisões (GRINOVER, 2000, p. 115).

Na conclusão de Nelson Nery Junior (2009, p. 205), o contraditório se consagra como um princípio de Estado de Direito, pois o texto constitucional garante a igualdade das partes, direito de ação e direito à defesa, isto é, a possibilidade de o jurisdicionado deduzir pretensão em juízo e poder defendê-la, provar os fatos que compõem o seu direito.

A origem do princípio do devido processo legal e seus desdobramentos – o princípio do contraditório e da ampla defesa – é política. A ciência política é que lapidou o contraditório como forma de

garantia dos direitos individuais e, até, como forma de reação12 às tiranias exercidas na Idade Antiga, repetidas na Idade Média.

É ainda de Ovídio Araújo Baptista da Silva (1993, p. 149) a percuciente observação de que o fenômeno do princípio do contraditório, que fora sempre limitado ao processo penal, invadir o domínio do processo civil e do processo administrativo é compreensível, e até natural, considerando o ambiente e o condicionamento ideológico a que se submeteu o constituinte brasileiro ao elaborar a atual Constituição Federal. As Constituições redigidas após a derrubada de regimes políticos totalitários, em que o desrespeito pelos direitos mais elementares da pessoa humana propicie torturas e até assassinatos oficiais, em nome da “segurança nacional”, em geral, excedem-se no cuidado contra o arbítrio do Estado.

Esse novo enfoque, não por acaso, surge a partir dos anos cinquenta do século XX. Como aponta José Frederico Marques (2003, p. 7), inicialmente, foi para dirimir lides entre particulares que o Estado passou a exercer a jurisdição, visto que, nos litígios entre órgãos do poder público e sujeitos de direito privado, o Estado impunha a solução do conflito, administrativamente, exercendo verdadeira autotutela de seus interesses. Aos poucos, no entanto, com o reconhecimento dos direitos públicos subjetivos, a função jurisdicional foi ampliando-se de modo a se estender aos conflitos entre o particular e o Estado, ou de órgãos deste entre si.

Ultrapassados os paradigmas dos Estados Liberal e Social13, o Estado Constitucional se caracteriza pela conjugação das qualidades de Estado de Direito e de Estado Democrático14.

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Como explica Pedro Miranda de Oliveira (2009b, p. 102, grifo do autor): “A Constituição brasileira de 1988 talvez seja a mais pródiga e detalhista do mundo em discriminação de direitos e garantias fundamentais. A razão imediata é histórica, política e até cultural. Tínhamos acabado de sair do regime de repressão. Estávamos ávidos por novas conquistas e romper, como então se dizia, com o ‘entulho autoritário’. Além disso, é da tradição brasileira a composição de legislações estatutárias, nos moldes dos estatutos, onde tudo se regula nos mínimos detalhes. Maior exemplo disso é a nossa própria Constituição Federal.”.

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Os doutrinadores alemães Bodo Pieroth e Bernhard Schlink (2012, p. 68, grifos dos autores) comentam que a mudança do Estado de Direito Liberal para o Estado de Direito Social proporcionou, também na Alemanha, uma ampliação do entendimento dos direitos fundamentais: “Para a teoria do Estado do século XIX e do início do século XX, era corrente a ideia de que o particular, o cidadão com posses e cultura era, como membro da sociedade civil, autossuficiente e

Jürgen Habermas (2003), com efeito, deu grande contribuição à compreensão do Estado de Direito Democrático na medida em que sua doutrina se apropria de elementos das teorias liberal, republicana e, integrando-as a um conceito ideal, objetiva a deliberação e a tomada de decisões por meio de uma visão procedimentalista. Para este autor, a formação da vontade democrática é baseada em princípios constitucionais que ditam as formas comunicativas institucionalizadas. No pensamento habermasiano, o princípio da democracia resulta da confluência entre o princípio do discurso e a forma jurídica.15

O que se convencionou chamar Estado Democrático de Direito é um Estado não só assentado no primado normativo da Constituição, autônomo. A sua liberdade era liberdade em face do Estado; a sociedade podia por si só cuidar dos seus próprios interesses econômicos e culturais e precisava do Estado apenas para a defesa contra perigos externos e internos: nas suas funções de exército, de polícia e de justiça. Esta concepção não correspondia à realidade já no século XIX e no início do século XX, nem era reconhecida universalmente. Caiu definitivamente em descrédito na sociedade contemporânea da guerra e do pós-guerra, tanto da Primeira como da Segunda Guerra Mundial. Duas vezes se mostrou que o particular está fundamentalmente dependente de medidas, instituições, distribuições e redistribuições do Estado; que sua liberdade tem condições sociais e estatais que ele próprio não consegue assegurar. Em vez da ficção do indivíduo autocrático da sociedade burguesa, surgiu a imagem de um indivíduo simultaneamente necessitado e responsável na comunidade social. A ideia de que o Estado de direito podia, como Estado liberal, intervir o mínimo possível na liberdade particular foi complementada com a ideia que, como Estado social, tinha em primeiro lugar de criar e assegurar as condições de liberdade.”.

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Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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Para Jürgen Habermas (2003, p. 158), somente o discurso jurídico tem o poder e o papel de legitimar a norma. Afirma ainda o autor que: “[...] o princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do princípio do discurso ao direito a liberdades subjetivas de ação em geral – constitutivo para a forma jurídica enquanto tal – e termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equipar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com a forma jurídica. Por isso, o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual o código do direito e o mecanismo para a produção do direito legítimo, portanto o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário”.

mas, sobretudo, na garantia dos direitos fundamentais no plano prático e funcional da estruturação e exercício dos poderes e em uma real e adequada organização política e social da comunidade (THEODORO JÚNIOR, 2011, p. 62).

A par disso, Francisco José Borges Motta e Adalberto Narciso Hommerding (2013, p. 200, grifo dos autores) sustentam que o modelo democrático de processo é aquele que assegura participação. E completam a ideia: “A construção da decisão judicial é uma questão de democracia. Isso nos autoriza a dizer: não haverá processo jurisdicional democrático sem que se assegure a participação dos interessados na obtenção do provimento.”.

Naturalmente, no transcurso dos anos, outros valores passaram a influenciar a conformação da garantia do contraditório, especialmente a necessidade de um maior ativismo judicial, a ânsia de efetividade – a exigir mais do que a simples proclamação formal das garantias processuais – e a revitalização do caráter problemático do direito (OLIVEIRA, 1998, p. 11).

Portanto, nessa mesma linha de evolução, consentânea com a consciência do caráter público do processo e com a necessidade de uma solução mais eficiente e rápida do litígio, insere-se o valor da efetividade. Assim como a necessidade de cooperação das partes com o juiz e deste com as partes passou a intensificar a necessidade do contraditório, a alargar o seu alcance, um movimento não menos poderoso, dando relevo ao valor da celeridade, tende a fazê-lo diminuir. Seria a colisão entre os princípios constitucionais.

Contudo, como explicam Humberto Theodoro Junior e Dierle José Coelho Nunes (2009, p. 116-117), ao contrário do que prega este movimento, a garantia constitucional do contraditório não constitui um obstáculo para obtenção de maior celeridade e/ou menores custos, pois um processo sem o seu exercício, em que não houve colocação clara (e debates acerca) dos pontos controvertidos, é fonte geradora de um sem- número de recursos (a começar pela interposição de embargos de declaração, por vezes sucessivos), o que, certamente, não auxilia na obtenção de uma razoável duração do processo.

Em determinadas situações, vale lembrar, as diferentes concepções acerca da aplicação dos princípios motivam o conflito do contraditório com outros princípios constitucionais, como o da efetividade da tutela jurisdicional.

A questão dos conflitos entre princípios, a propósito do escopo deste estudo, precisa ser bem compreendida. É o que se propõe na seção seguinte.