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1. O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO

1.4 O PROCESSO COMO PROCEDIMENTO EM

processo evidencia que a própria Constituição Federal se encarregou de configurar o direito processual não mais como um mero conjunto de regras acessórias de aplicação do direito material, mas, cientificamente, como um instrumento de realização deste e, mais importante, como um instrumento de realização da justiça.17

O surgimento do direito processual civil como disciplina autônoma, com princípios, instituições e metodologia próprios, ocorreu em meados do século XIX, como herança cultural dos séculos anteriores, a partir da tradição medieval romano-canônica. A matéria que lhe forneceu os fundamentos iniciais para a independência dogmática foi a relação jurídica processual, dinâmica e em constante movimento e transformação (SILVA, 1997, p. 161).

No desenvolvimento do direito processual baseado na concepção de Oskar Von Büllow18, superou-se a ideia de processo como tipo de procedimento que consistia na mera sucessão de atos que compunham o rito de aplicação judicial do direito. Todavia, a autonomia proclamada influenciou gerações – até Enrico Tullio Liebman19 e Alfredo Buzaid,

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“A evolução do direito processual pode ser sintetizada em quatro fases: a) praxismo ou sincretismo, em que não havia a distinção entre o processo e o direito material; b) o processualismo, em que se demarcaram as fronteiras entre o direito processual e o direito material, com o desenvolvimento científico das categorias processuais; c) instrumentalismo, em que, não obstante se reconheçam as diferenças funcionais entre o direito processual e o direito material, se estabelece entre eles uma relação circular de interdependência, já que o direito processual concretiza e efetiva o direito material; d) neoprocessualismo, a atual fase, com a revisão das categorias processuais a partir da Constituição, seguindo a linha do neoconstitucionalismo.” (DIDIER JR, 2012, p. 33, grifos do autor).

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O jurista alemão Oskar Von Büllow (2003, p. 171), em sua obra intitulada “Teoria das exceções processuais e dos pressupostos processuais”, conceitua o processo como relação jurídica de direito público, que se desenvolve de modo progressivo entre as partes, juiz, autor e réu, e que se diferencia da relação jurídica material pela exigência de configuração dos pressupostos processuais, requisitos de admissibilidade e condições prévias para a tramitação de toda a relação jurídica processual.

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“Enrico Tullio Liebman nasceu na Itália, aos 4 de janeiro de 1903, tendo sido aluno de Giuseppe Chiovenda, do período de 1920 a 1924, na Faculdade de Direito da Universidade de Roma. No ano de 1940, com o advento da Segunda

orientando o Código de Processo Civil Brasileiro de 1973 – e provocou distorções ao eternizar a dicotomia direito processual autônomo-direito material e mitigar o procedimento a ponto de concebê-lo como simples forma de exteriorização de atos encadeados.20

Sálvio de Figueiredo Teixeira (1993, p. 81-82) relata que os estudos processuais, a partir do “processualismo científico”, demarcaram, pela primeira vez, os limites entre conceito de processo e procedimento. Processo, pelo prisma científico, passou a ser compreendido como o conjunto de atos tendentes à composição da lide; sob o ponto de vista da cidadania, revela-se como instrumento de efetivação das garantias constitucionalmente asseguradas. Procedimento, por sua vez, compreende o modo e a forma como aqueles atos atuam, variando para corresponder à pluralidade de provimentos, alguns complexos, outros mais expeditos, sumários ou abreviados pela redução de prazos ou supressão de atos.

Elio Fazzalari (2006) tem o mérito de romper esse paradigma, ao propor a análise do procedimento e do processo pelo critério lógico, com base no sistema jurídico que os disciplina.

A concepção de processo como procedimento em contraditório foi apresentada pelo citado jurista, em 1975. Sua obra, intitulada “Teoria Grande Guerra, Liebman vem ao Brasil, com rápidas passagens pelas cidades de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro, estabelecendo-se, por fim, em São Paulo. [...] Os passos fundamentais que foram dados no sentido de aproximar a Constituição e processo podem ser atribuídos a Liebman, quando este autor preconiza a normatividade dos princípios aplicáveis aos institutos do processo como garantias. [...] No que pertine ao princípio do contraditório, Liebman trabalhou a conexão existente entre a Constituição e processo, cuja interpretação resulta na sua associação à garantia da jurisdição.” (PEREIRA LEAL, 2007, p. 68).

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Além de Büllow, também a obra de Adolph Wach foi fundamental nas origens do processualismo científico, publicada em 1885, como “Manual de Direito Processual Civil” alemão. Na Itália, foi Giuseppe Chiovenda que, ao proferir, em 1903, na Universidade de Bolonha uma conferência sob o título “A ação no sistema dos direitos”, introduziu o processualismo científico entre os povos de língua latina. Entre seus discípulos, destaca-se Piero Callamandrei (ressaltou a ligação do processo com as diretrizes políticas presentes na Constituição) e Enrico Tulio Liebman. Especificamente no que tange ao processualismo científico na América Latina, é fundamental lembrar o nome do uruguaio Eduardo Couture, cuja obra, publicada em 1946, “Introdução ao Estudo do Processo Civil”, teve como ponto central de preocupação a relação do processo com as diretrizes políticas contidas no Direito Constitucional (RODRIGUES; LAMY, 2012, p. 26-28).

Geral do Processo”, constitui um marco histórico de estudo no campo do direito processual. E, considerando o contraditório como a própria essência do processo, assim explica:

Se, pois, no procedimento de formação do provimento, ou seja, nas atividades preparatórias por meio das quais se realizam os pressupostos do provimento, são chamados a participar, em uma ou mais fases, os ‘interessados’, em contraditório, colhemos a essência do ‘processo’: que é, exatamente, um procedimento pelo qual, além do autor do ato final, participam, em contraditório entre si, os ‘interessados’, isto é, os destinatários dos efeitos de tal ato (FAZZALARI, 2006, p. 33). Ao estabelecer a noção de processo como procedimento em contraditório e fazer deste princípio constitucional o elemento distintivo de processo e procedimento21, Elio Fazzalari (2006) afastou a relação jurídica processual que sustenta a instrumentalidade do processo, capitaneada no Brasil por Cândido Rangel Dinamarco e alicerçada em Enrico Tullio Liebman e Giuseppe Chiovenda.

Cândido Rangel Dinamarco (2003), em sua obra intitulada “A Instrumentalidade do Processo”22, defende a ideia de que o direito processual civil como um todo e o processo em particular só podem ser concebidos e entendidos como instrumento do direito material e do exercício do poder pelo próprio Estado. Para tanto, o direito processual precisa identificar o seu escopo ou as suas finalidades: o “social”, o “político” e o “jurídico”.

Para Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (2006, p. 295), os “instrumentalistas” pouco diferem “processo” de “procedimento”. O conceito que apresentam é o seguinte:

O procedimento é, nesse quadro, apenas o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e

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Em breve síntese: o procedimento seria uma sequência de normas, atos e posições jurídicos, colocando-o, desta forma, como gênero. Por sua vez, o processo passa a ser espécie de procedimento, qualificado pelo contraditório e realizado entre as partes, em simétrica paridade, na preparação da tutela jurisdicional (FAZZALARI, 2006).

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termina o processo; é a manifestação extrínseca deste, a sua realidade fenomenológica perceptível. A noção de processo é essencialmente teleológica, porque ele se caracteriza por sua finalidade de exercício de poder (no caso, a jurisdicional). A noção de procedimento é puramente formal, não passando da coordenação de atos que se sucedem. Conclui-se, portanto, que o procedimento (aspecto formal do processo) é o meio pelo qual a lei estampa os atos e fórmulas da ordem legal do processo.23

Por outro lado, a proposta do processo como procedimento em contraditório traduz o ápice do pensamento jurídico na condução efetivamente dialética e democrática do processo. É justamente o contraditório que distingue o processo do procedimento. Enquanto os retrocitados processualistas brasileiros enxergam o procedimento a partir da visão de processo, Elio Fazzalari desenvolve, primeiro, a noção de procedimento para, só depois, e com visão democrática, conceituar processo como procedimento realizado em contraditório. O processo é fruto do procedimento e não este daquele (TEIXEIRA, 2006, p. 152).

Portanto, a forma pela qual se propõe visualizar o princípio do contraditório, conforme se explanará ao longo deste capítulo, certamente não estaria de acordo com a teoria da “instrumentalidade do processo”.

Como reflete Fernando Rubin (2011, p. 34), essa corrente, que não articula suficientemente o direito processual com os ditames constitucionais, está fortemente vinculada à visão positivista-dogmática, que tende a destacar sobremaneira a aplicação da lei, como fonte de Direito, na resolução do litígio.

De acordo com o contexto contemporâneo a ser apresentado neste trabalho, a considerar o enfoque que aponta para a possibilidade de a garantia representar efetiva (substancial) participação das partes na decisão judicial a ser tomada, auxiliando, inclusive, na escolha e

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Na mesma linha, José Joaquim Calmon de Passos (2001, p. 3), ao comentar os termos processo e procedimento, assim define: “A noção de processo é eminentemente teleológica, finalística, voltada para o resultado a obter-se. A noção de procedimento, ao invés, é eminentemente formal. O procedimento é o processo visto em sua exterioridade, na sua dinâmica ou, para usar distinção já percebida pelo grande mestre que foi João Mendes, o processo é o movimento em sua forma intrínseca, enquanto o procedimento é esse mesmo movimento em sua forma extrínseca.”.

principalmente na extensão (alcance) das normas jurídicas a dirimir o caso concreto, por certo, admitir-se-á que o processo não é mero instrumento declaratório de um direito (RUBIN, 2011, p. 35).

A compreensão do processo como procedimento em contraditório representa, pois, um avanço em relação à concepção de “instrumentalidade do processo”.

Na proposta de Elio Fazzalari (2006), a exteriorização do princípio do contraditório compõe uma simétrica paridade, que vincula compulsoriamente o autor, o réu, o interveniente, o juiz, o representante do Ministério Público (quando necessário) e seus auxiliares a atuarem em pé de igualdade. Produz, desta feita, uma aproximação entre a teoria geral do processo e a Constituição Federal, principalmente no que diz respeito à participação das partes em simétrica paridade de armas, apta a produzir um ato final democrático na medida em que todos contribuíram efetivamente no caminhar do processo. Aqui, novamente, visualiza-se um contraponto em relação à noção instrumental do processo porque garante a dialética participação não só de autor e réu, tradicionais destinatários do ato, mas também das demais pessoas envolvidas na atividade jurisdicional. Sob este enfoque, todos são considerados partes.

Contudo, os ensinamentos de Elio Fazzalari (2006) não se encerram na noção de processo como procedimento em contraditório; trazem à baila o conceito de norma como cânone de valoração de uma conduta, entendida como alguma coisa aprovável ou preferível em determinada cultura. Para o autor italiano, portanto, o processo deve ser compreendido e praticado como uma garantia. Logo, quando se inicia um processo não se exercita um ilícito, ao contrário, pratica-se um direito constitucionalmente assegurado.

Assim, percebe-se que a constitucionalização do direito processual é uma das características do direito contemporâneo; não pode ser estudado nem compreendido fora de uma perspectiva que tenha por base direitos fundamentais.

Nesse sentido, a perspectiva contemporânea do processo supera as justificações e as explicitações mais restritas historicamente apresentadas. Acrescente-se que as teorias privatistas estão totalmente

superadas e também, em grande parte, as

teorias publicistas desenvolvidas no período

do processualismo científico (RODRIGUES; LAMY, 2012, p. 126). Sobre o conceito contemporâneo de processo, pode-se então afirmar, junto com Horácio Wanderley Rodrigues e Eduardo Lamy (2012, p. 126), que é:

[...] o instrumento de que serve o estado para, tanto no exercício da sua função jurisdicional quanto fora dela, com a participação das partes e obedecendo ao procedimento estabelecido na legislação específica, eliminar os conflitos de interesses, solucionando-os; um ato jurídico complexo constituído pela operação de um núcleo de direitos fundamentais sobre uma base procedimental, não somente no âmbito da jurisdição e não apenas para declarar os direitos, mas principalmente para satisfazê-lo no mundo dos fatos, na vida dos litigantes.

Na mesma linha, Fredie Didier Jr (2012, p. 23) explica que o processo pode ser compreendido como método de criação das normas jurídicas, ato jurídico complexo (procedimento) e relação jurídica.

Hoje, com apoio no núcleo de direitos fundamentais (contraditório substancial, isonomia, ampla defesa e devido processo legal), chega-se à conclusão de que (i) o próprio elemento constituído pela jurisdição não precisa ser inerente ao conceito de processo e (ii) não é apenas a carga declaratória que interessa ao escopo da jurisdição, mas principalmente a produção de resultados efetivos por meio do processo (LAMY, 2013, p. 392-393).

Em âmbito jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal (STF) já se apoiou na teoria de Elio Fazzalari, conforme se infere do excerto do seguinte julgado:

Não há, deveras, como conceber-se processo jurisdicional Ӎ que, como categoria jurídica, tem por pressuposto de validez absoluta a concreta realização da promessa constitucional (inc. LIV, art. 5°, CF) de ser justo ou devido por justiça (due process) Ӎ , sem garantia da possibilidade de participação oportuna e efetiva, a título de colaboradores, na preparação do ato final que ali se persegue e forma, das pessoas que, segundo os interesses e as respectivas posições teóricas contrapostos, assim estimados, em via hipotética, ao início do procedimento devam, nesse esquema, suportar, em seu patrimônio jurídico, os efeitos da sentença, favoráveis ou desfavoráveis, com a firmeza da coisa julgada material. Nesse sentido, à luz dos preceitos constitucionais, em toda

modalidade de processo a decisão há de resultar de um como diálogo ou, mais precisamente, de uma colaboração entre os protagonistas presentes na causa, aos quais se assegura a possibilidade de influir ativamente no desenvolvimento e na sorte ou teor do juízo decisório (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. AI 431264 AgR-segundo, j. 23.11.2007).

Dessa forma, com apoio na teoria proposta por Elio Fazzalari (2006) e no conceito contemporâneo de processo, verifica-se que o estudo do processo nos dias atuais passa a exigir um procedimento aberto e dialético, ou seja, requer a participação das partes.

Nesse sentido, o processo surge como procedimento estruturado na forma de contraditório, que não dispensa a publicidade nem a fundamentação. Apenas se estiver estruturado desta forma o processo poderá ser considerado legítimo em um Estado Democrático e Social de Direito.

A verdadeira práxis democrática, configuradora de um autêntico Estado de Direito, reside principalmente na efetiva concretização dos direitos e garantias fundamentais e não em meras abstrações legais contidas em um texto normativo. Esses direitos e garantias fundamentais, por sua vez, somente ganham vida por intermédio do mais afinado instrumento democrático: o processo (RIBEIRO, SCALABRIN, 2009, p. 66).

Para a exata compreensão dessa teoria, entende-se necessário estudar as dimensões do princípio do contraditório e a sua interferência na aplicação de outros princípios constitucionais.