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4.4 A ÉTICA E A POSITIVAÇÃO: bases de uma educação para o desenvolvimento humano

4.4.1 O despertar para os valores na atualidade

Com as mudanças provocadas pela globalização econômica liberal, as pessoas começam a se questionar (não tanto como deveriam) por não fazer parte da sociedade moderna líquida de consumidores, de não usufruir e nem mesmo poder adquirir os bens de consumo que são mostrados nos comerciais na tela da televisão, nas vitrines das lojas ou nos outdoors gigantes, coloridos, luminosos, piscantes como vagalumes, que atraem, mas poluem visualmente as cidades.

Questionam por que tem que estar aqui nesse lugar (país, estado, cidade, bairro, nessa casa, nessa rua, nessa marquise, nessa ponte) como determinismo de classe. Questionam por que minha educação é diferente, superior ou inferior, dos outros grupos sociais.

Esses questionamentos, e muitos outros, certamente, estão na base da percepção do que é mesmo um valor para os indivíduos. Bauman (2009) já afirmava que um conjunto de valores considerado importante para uma pessoa média somente poderia ser construído em curso e mediante a comparação com as posses, condições, situações ou qualidades de outra ou outras pessoas, o que poderia levar ao descobrimento, como efeito secundário, de carências de algum valor apreciado.

Esse descobrimento e, ainda pior, a consciência de que a aquisição e o desfrute deste valor estão mais além da capacidade da pessoa geram, no entender de Bauman (2009), sentimentos mais fortes: um desejo constrangedor (muito atormentador, porque existe a suspeita de que é impossível satisfazê-lo) e, ao mesmo tempo, um ressentimento ou rancor causado pelo desesperado esforço de evitar o menosprezo e a inferiorização dela mesma, mediante a degradação e a subvalorização do valor em questão, assim como das pessoas que o possuem.

Esse sofrimento, essa experiência da humilhação, deixa as pessoas vulneráveis e provoca nelas, segundo Bauman (2009), dois impulsos contraditórios: uma ‘dissonância cognitiva’, que pode levar a um comportamento irracional, e a criação de uma barreira impenetrável contra os argumentos da razão, aspectos esses, fonte de contínua ansiedade e de incomodação espiritual para todos aqueles que sofrem. As revoltas urbanas na periferia de Paris em 2005, por exemplo, foi um sinal evidente de insatisfação com a realidade precária e a impossibilidade de vislumbrar um futuro diferente, principalmente dos jovens, pois o que era oferecido pelo mercado e pela economia para a população francesa em geral não chegava até lá. Esses fatos obrigaram o governo francês (que tendia mais a se inserir numa economia de viés liberal) a intervir de forma imediata para debelar a crise e adotar a uma série de políticas sociais, principalmente na educação.

Bauman (2009), com base no pensamento de Scheler, diz que essa vulnerabilidade é potencialmente universal, na medida em que reflete a insolúvel contradição interna de uma sociedade que estabelece nível de felicidade para todos os seus membros, uma situação em que a maioria deles não pode alcançar ou se vê impedida de fazê-la:

Nuestra vulnerabilidad, dice Scheler, es inevitable (y probablemente incurable) em un tipo de sociedad en que la relativa igualdad de derechos políticos y de otro tipo, así como la igualdad social formalmente reconocida, van de la mano de enormes diferencias de poder, patrimonio y educación. Una sociedad en la que todo el mundo ‘tiene el derecho’ de considerarse a sí mismo igual a cualquier otro cuando en realidad es incapaz de ser igual que ellos. (BAUMAN, 2009, p. 37).

As políticas de equiparação, de equidade, tem como pressuposto a ideia de fazer com que as pessoas desenvolvam a capacidade de sonhar e de conseguir viver em um mundo diferente do vivido, sair de seu estágio atual para ir ao encontro de uma vida mais digna, com maior capacidade de escolha entre opções oferecidas pelo mundo e de buscar sua autoafirmação como indivíduo social.

Bauman (2009) inspira-se em Scheler e em seu livro Ordo amoris, no qual afirmava que o ‘ânimo’, com mais razão que o conhecimento e a vontade, merece chamar-se ‘núcleo do homem’ como ser espiritual, onde a ânimo pode ser definido como uma escolha entre os sentimentos de atração e repulsão, amor e ódio:

Las cosas-bienes, a lo largo de las cuales conduce el hombre su vida, las cosas prácticas, las resistencias del querer y del hacer con que tropieza su voluntad, todo eso se halla penetrado del mecanismo selectivo especial de su ordo amoris […] Esta atracción y repulsión […] determina no sólo lo que percibe y observa, y lo que deja de percibir y observar, sino también el material mismo de todo posible percibir y observar. (BAUMAN, 2009, p. 50-51).

Isso porque na formulação humanista de Scheler, diz Bauman (2009) o homem (e a mulher) antes de ser um ens cogitans (um ser que sabe) ou um ens volens (um ser que deseja) é um ens amans (um ser que ama). Pode-se dizer então que o ânimo vive de acordo com suas regras, estabelecidas durante o curso da vida, assim como o coração, que afasta com firmeza outras lógicas que não sejam as suas:

El corazón, dice Scheler haciendo una referencia a Pascal, ‘tiene sus razones, las suyas’, de las que el entendimiento ‘nada sabe y nada puede saber’, ya que las razones del corazón no son ‘evidencias objetivas’ ni las ‘necesidades estrictas’ proclamadas pelo entendimiento como su fundamento y su dominio exclusivo e bien protegido, sino que son razones ‘en el sentido de motivos’, es decir, deseos. No tienen nada que ver con las razones investigadas por el entendimiento, si bien no son menos ‘rigurosas, absolutas e inquebrantables’. (BAUMAN, 2009, p. 51).

Desse modo, o coração constrói o mundo como um mundo de valores, e um valor é, por sua natureza, sempre algo extraordinário, algo que está sempre à frente, em constante construção, pois nada do que existe nesse instante pode se satisfazer plenamente a um valor, pois para Bauman (2009), o amor ama e vê no amar algo mais do que tem em suas mãos. O impulso que o desencadeia pode se reduzir, mas o amor mesmo nunca se reduz. O amor, o desejo e a vontade que entram em ação por um valor, se centram em algo que ainda não é, diz ele. Seus objetivos estão no futuro e este é uma absoluta incerteza, inacessível aos sentidos e que foge de toda prova empírica e desafia qualquer cálculo, pois sobre gostos, desejos, não há como comparar com a razão.

Nesse caso, complementa Bauman (2009), a razão reconhece que, quando se trata de valores, deve ceder espaço ao coração, pois a sorte de um indivíduo, ou grupo de indivíduos, não é o seu destino de acordo com o gesto de Pôncio Pilatos, ao entregar a decisão sobre a vida ou morte de Jesus Cristo à massa manipulada e ensandecida. O destino vai se formando ao longo da vida, da vida individual e também da espécie humana. Conscientes ou não, damos forma ao nosso destino individual, em grupo ou todos juntos e, somente quando ficamos sem recursos ou sem a vontade necessária para seguir construindo ou reformando aquilo que se deseja, é que a trajetória se transforma naquele destino de que falou Spinoza, de deixar a cargo de um Deus dotado de entendimento e de vontade (DELEUZE, 2002).

Mas que força que impede o indivíduo, ou um grupo de indivíduos de avançar mais na busca de conhecer a realidade com mais empenho e profundidade e, mudá-la, se isso for de seu interesse? Um dos fatores que dificulta essa intenção é o compromisso que se assume com uma causa, que vai requerer obviamente a doação de quem nela se empenha. Esse aspecto é o que Bauman (2009) entendeu como a própria natureza do ordo amoris: põe preço à felicidade

que oferece. A ação empreendida tem efeito não apenas no que se procura entender ou mudar, mas também na pessoa que a realiza.

El precio suele establecerse como un compromiso, pero a veces también es un sacrifico unilateral, sin reciprocidad; en la sucinta expresión de Erich Fromm: ‘El amor es principalmente dar, no recibir’. Cualquier tipo de precio puede significar una limitación de la extensión y la intensidad de la felicidad, una visión que no todo el mundo aceptará alegremente en todo momento. (BAUMAN, 2009, p. 53).

Esse aspecto limitador pode levar as pessoas a refletirem sobre o seu empenho em realizar mudanças necessárias em uma determinada realidade, pelo fato de que elas gostam de ser reconhecidas no que fazem, de perceber que suas ações apresentam os resultados esperados, caso contrário, todo o esforço empreendido pode ser sentido como inútil. Mas, por outro lado, o envolvimento com uma causa, principalmente a que se relaciona com as injustiças sociais, leva às pessoas a minimizarem seu interesse próprio em favor do que quer ver transformado e que leva a felicidade do outro.

Si el amor es pela su propia naturaleza una tendencia de unir los objetos de amor (una persona, un grupo de personas, una causa) en su lucha para realizarse, para ayudarlos en su lucha, para promover esa lucha y bendecir a los luchadores, ‘amar’ significa estar dispuesto a abandonar el interese de uno mismo a favor del objeto, convertir la propia felicidad en un reflejo, un efecto colateral de la felicidad del otro…dando de igual modo ‘rehenes del destino’. (BAUMAN, 2009, p. 53).

É evidente que o amor também trás consigo a ideia de compromisso (com outra pessoa, com um grupo de pessoas ou com uma causa) e, em particular, do compromisso incondicional e amplo. Mas esse amor perdeu um pouco o sentido nos dias de hoje. A fórmula de felicidade passa a conter variáveis muito dependentes do mercado de consumo, uma situação que leva as pessoas ao individualismo patológico. Nessa condição, os indivíduos não estão dispostos a construir, integrar-se e renunciar, não se compadecem com o companheirismo e com o amor, especialmente o amor que tire as pessoas da solidão, que seja um porto seguro que as proteja das mudanças desse mundo moderno líquido, que leva as pessoas a conflitos psicológicos profundos.

En el mundo posromántico, apuntan Ehrenreich y English, cuando lo viejos lazos ya no atan, lo único que importa es el tú: tú podes ser lo que quieras, tú escoges tú vida, tú ambiente, incluso tú aspecto y tus emociones […] Las viejas jerarquías de protección y dependencia ya no existen, solo hay contratos libres, libremente interrumpidos. La plaza del mercado, que tiempo atrás se ampliaba para incluir las relaciones de producción, ahora se ha ampliado para incluir todas las relaciones. (BAUMAN, 2009, p. 53).

A desestruturação das relações concretas do mundo moderno pelo sistema capitalista global indica aos pensadores humanistas a necessidade de persistir nas ações efetivas para encontrar um mundo melhor, na esperança de que é possível construir uma civilização humanamente acolhedora, integradora e universal.

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