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4.4 A ÉTICA E A POSITIVAÇÃO: bases de uma educação para o desenvolvimento humano

4.4.2 A percepção dos valores humanos e sua apropriação e tutela do Estado

Mesmo com as mudanças que ocorrem de forma acelerada, os valores humanos ainda são percebidos como importantes e necessários na sociedade atual, até mesmo como uma reação consciente ao individualismo e ao consumismo, que leva a outra visão de mundo. A sua forma material e explícita pode ser encontrada na base das Constituições democráticas, que mesmo a globalização econômica liberal, embora tente, ainda não conseguiu impedir (mas que continua tentando).

O preâmbulo da Constituição Brasileira de 1988 faz, de forma expressa, a referência de que somos um Estado democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista, sem preconceitos,... O Título I (Dos Princípios Fundamentais) apresenta os fundamentos do Estado democrático de direito baseados, entre outros, na cidadania, na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

O Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) reservou dois capítulos específicos para tratar dos direitos e deveres individuais e coletivos e dos direitos sociais. O Capítulo I tem um único artigo, o artigo 5º, e 77 incisos, para pontuar em que termos ‘todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade’.

Os direitos individuais e coletivos se constituem em liberdades no dizer de Bobbio (1992), que exigem da parte dos outros, inclusive dos órgãos públicos, obrigações puramente negativas por implicar na abstenção, destes ou daqueles, de certos comportamentos restritivos. Já os direitos sociais inseridos no Capítulo II consistem em poderes, que só podem ser efetivados se for imposto a outros, inclusive também aos órgãos públicos, certo número de obrigações positivas.

Mas como e por que esses direitos do homem (individuais e sociais) foram considerados no processo de construção que resultou na Constituição?

Uma primeira resposta pode ser encontrada nas próprias condições políticas e sociais da realidade brasileira, que buscava assegurar os direitos sociais e políticos duramente conquistados num período de poucas liberdades e garantias.

Outra resposta, mais ampla (mas que também diz respeito à realidade brasileira), pode ser encontrada no pensamento de Bobbio (1992). Para ele, os direitos do homem expressos nos dispositivos legais são direitos históricos e em permanente transformação, que emergiram de lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Assim, nesse contexto desenhado por Bobbio:

A liberdade religiosa é efeito das guerras de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; a liberdade política e as liberdades sociais, do nascimento, do crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades negativas, mas também a proteção do trabalho contra o desemprego, os primeiros rudimentos da instrução contra o analfabetismo, depois a assistência para a invalidez e a velhice, todas elas carecimentos que os ricos proprietários podiam satisfazer por si mesmos. (BOBBIO, 1992, p. 5-6).

Mesmo com a intenção de tentar definir direitos nos diplomas legais, a linguagem utilizada para defini-los pode parecer ambígua, pouco rigorosa e muitas vezes com uso retórico (vazio), que serve até mesmo para defender posições conservadoras, principalmente quando se trata de direitos sociais, agilmente exibidos em declarações nacionais e internacionais, mas vagarosamente assumidos, quando o são. Proclamar os direitos das pessoas é uma coisa, desfrutá-los efetivamente é outra. Por esse motivo é que a linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande função prática, que é:

emprestar uma força particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os outros a satisfação de novos carecimentos materiais e morais; mas ela se torna enganadora se obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivindicado e o direito reconhecido e protegido. Não se poderia explicar a contradição entre a literatura que faz apologia da era dos direitos e aquela que denuncia a massa dos ‘sem direitos’. Mas os direitos de que fala a primeira são somente os direitos proclamados nas instituições internacionais e nos congressos, enquanto os direitos de que fala a segunda são aqueles que a esmagadora maioria da humanidade não possui de fato (ainda que sejam solene e repetidamente proclamados). (BOBBIO, 1992, p. 10).

A questão principal dos direitos hoje, na opinião de Bobbio, não é tanto o de justificá- los ou de fundamentá-los, mas o de protegê-los. Por esse entendimento, a proteção aos direitos deixa de ser uma questão vinculada ao campo filosófico para se inserir no campo jurídico, ou de forma mais ampla, no campo político.

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados. (BOBBIO, 1992, p. 25).

Nesse sentido, complementa Bobbio, o problema dos fundamentos dos direitos do homem foi solucionado na Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), aprovada na Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948. A partir daquele momento, a DUDH passou a representar a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso acerca de sua validade. Tanto que as campanhas ao redor do mundo versando sobre respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais nascem da convicção de eles possuem fundamento de forma inquestionável.

Bobbio (1992) entende que existem três modos de fundar valores: primeiro é deduzi- los de um dado objetivo constante; por exemplo, a natureza humana. Natureza humana? Qual o direito fundamental do homem segundo sua natureza? O direito do mais forte, conforme Spinoza, ou o direito à liberdade, proposto por Kant? Mesmo na história do jusnaturalismo a natureza humana foi interpretada de diferentes modos e serviu para justificar sistemas de valores diferentes entre si (Hobbes e Rousseau, por exemplo).

O segundo modo é considerá-los como verdades evidentes em si mesmas. Será que isso é possível? Esse modo tem o defeito de se situar para além de qualquer prova e de se recusar a qualquer argumentação possível de caráter racional, pois desconsidera a verificação histórica. O direito à propriedade, por exemplo, sagrada e inviolável na Declaração de Direitos da Revolução Francesa de 1789, como direito fundamental do homem, hoje não aparece nos documentos mais recentes; a tortura, hoje condenável, no passado era aceita e defendida como um procedimento judiciário normal; a escravidão,...

O terceiro modo que parece ser o mais adequado é aquele em que os valores são formulados e apoiados no consenso, ou seja, um valor é tanto mais fundado quanto mais é aceito, pois nesse caso, substitui a prova da objetividade – considerada impossível ou extremamente incerta – pela da intersubjetividade. Trata-se de um fundamento histórico, portanto não absoluto, mas é o único que pode ser factualmente comprovado.

Para Bobbio (1992), a DUDH pode ser citada como exemplo do consenso entre as pessoas sobre um determinado sistema de valores. Pela primeira vez na história, diz ele, um sistema de valores foi universal, não em princípio, mas de fato, na medida em que o consenso sobre a sua validade e sua capacidade de reger os destinos da comunidade futura de todos os

homens foi explicitamente declarado. Universal, significa, não algo dado objetivamente, mas, algo subjetivamente acolhido, no universo do homem.

Esse universalismo foi uma lenta conquista que resultou, segundo Bobbio, de pelo menos três momentos históricos. O primeiro pode ser encontrado nas obras dos filósofos jusnaturalistas, principalmente de Locke, que define o verdadeiro estado do homem como o natural, ou seja, o estado da natureza, no qual os homens são livres e iguais. O homem tem direitos por natureza que ninguém, nem mesmo o Estado pode lhe subtrair, e que ele mesmo não pode alienar.

Porém, para Bobbio (1992), a natureza humana que Locke pesquisou foi apenas a do burguês ou do comerciante, pois as demais classes para ele não tinham natureza humana, portanto, nenhuma exigência ou demanda. A DUDH corrigiu o pensamento de Locke ao abrir a declaração com a afirmativa “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, o que é uma maneira diferente de dizer que os homens são livres e iguais por natureza. Segundo Bobbio, a DUDH apenas conservou o eco porque os homens, de fato, não nascem livres e nem iguais. A liberdade e a igualdade não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser.

O segundo momento histórico pode ser visto na transformação do pensamento reflexivo em ação, quando as teorias filosóficas foram acolhidas pela primeira vez por um legislador dentro de uma nova concepção de Estado – não mais absoluto e sim limitado, não é mais um fim em si mesmo, e sim, um meio para alcançar os fins que são postos antes e fora de sua própria existência, como foram as Declarações dos Estados Norte-americanos e da Revolução Francesa.

Nesse instante, a afirmação dos direitos do homem não é mais expressão de uma nobre exigência, mas o ponto de partida para a instituição de um autêntico sistema de direitos no sentido estrito da palavra, isto é, enquanto direitos positivos ou efetivos. Há passagem da teoria à prática, do direito somente pensado para o direito realizado. Agora, os direitos do homem ganham concreticidade, mas perdem em universalidade; os direitos são protegidos, mas valem somente no âmbito do Estado que o reconhece; agora são direitos do homem somente enquanto são direitos do cidadão, deste ou daquele Estado em particular.

O terceiro momento histórico pode ser percebido na materialização da DUDH de 1948, na qual a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva:

universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem

deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. (BOBBIO, 1992, p. 30).

Como os direitos proclamados na Declaração Universal decorrem de um processo histórico:

Ela contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais. (BOBBIO, 1992, p. 30).

‘Contém em germe’ significa, no entender de Bobbio (1992), que a Declaração Universal é apenas o início de um longo processo, pois há dificuldade de adotar medidas eficientes para sua garantia, numa comunidade internacional heterogênea, além do que, a quantidade e a qualidade dos direitos apontados não se presumem definitiva, mesmo porque, os direitos do homem são direitos históricos, que emergem gradualmente das lutas que ele leva a efeito para sua própria emancipação, e para a transformação das condições de vida que essas lutas produzem.

Principalmente na sociedade global, onde muito se degrada pelo interesse econômico, com base no desenvolvimento da tecnologia, na transformação das condições econômicas e sociais que levam muitas vezes à supressão de direitos, na ampliação dos conhecimentos, no uso global dos meios de comunicação para consolidar a ideologia liberal. Esses, e outros fatos, produzem mudanças na organização da vida humana e das relações sociais e levam ao surgimento de situações favoráveis para o nascimento de novos carecimentos e, portanto, de novas demandas de liberdades e poderes.

Por esse motivo, Bobbio recomenda, a quem deseja fazer um exame isento do desenvolvimento dos direitos humanos na sociedade atual, ler a Declaração Universal e depois olhar em torno de si. Esse alguém terá necessariamente que reconhecer que:

apesar das antecipações iluminadas dos filósofos, das corajosas formulações dos juristas, dos esforços dos políticos de boa vontade, o caminho a percorrer é ainda longo. E ele terá a impressão de que a história humana, embora velha de milênios, quando comparada às enormes tarefas que está diante de nós, talvez tenha apenas começado. (BOBBIO, 1992, p. 45-46).

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