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2 FAMÍLIA, EDUCAÇÃO E DEFICIÊNCIA: UM DEBATE POLISSÊMICO

2.2 Classe social

2.2.1 O indivíduo, a família e a escola: aspectos da herança cultural

A problemática analisada por Bourdieu é baseada na herança cultural familiar e suas implicações escolares. No entanto, segundo Nogueira e Nogueira (2002), a concepção deste autor é marcada pela solução do clássico dilema sociológico: a questão do subjetivismo e do objetivismo. O indivíduo, em Bourdieu, é um ator socialmente configurado em seus mínimos detalhes. Os gostos mais íntimos, as preferências, as aptidões, as posturas corporais, a entonação de voz, as aspirações relativas ao futuro profissional, tudo é socialmente constituído. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 19).

A partir de sua formação inicial em um ambiente social e familiar que corresponde a uma posição específica na estrutura social, os indivíduos incorporam um conjunto de disposições para a ação típica dessa posição, isto é, um habitus familiar ou de classe, que passa a conduzi-los ao longo do tempo e nos mais variados ambientes de ação.

Na educação, o indivíduo é caracterizado por uma bagagem socialmente herdada, o que inclui componentes externos a ele. De acordo com Nogueira e Nogueira (2002), fazem parte dessa categoria, o capital econômico, tomado em termos dos bens e serviços a que ele dá acesso, o capital social, que é o conjunto de relacionamentos sociais influentes mantidos pela família, além do capital cultural institucionalizado, formado basicamente por títulos escolares. A bagagem transmitida pela família inclui, por outro lado, certos componentes que passam a fazer parte da própria subjetividade do indivíduo, sobretudo, o capital cultural na sua forma incorporada.

Do ponto de vista bourdieusiano, o capital cultural é o elemento da bagagem familiar de maior impacto na definição do destino escolar. As

desigualdades escolares são reafirmadas pelo fator econômico e cultural. Os estudos do autor apontam que a posse do capital cultural favorece o desempenho escolar, além das próprias referências culturais, os conhecimentos considerados cultos e o domínio da língua funcionam como intermédio entre o mundo familiar e a cultura escolar, facilitando o aprendizado. Essa transmissão se dá de forma osmótica, ou seja, espontaneamente, e as pessoas beneficiadas – posto que não têm consciência desta aprendizagem – atribuem esses saberes a dons inatos.

As referências culturais trazidas de casa são consideradas uma ponte entre família e escola e a posse de capital cultural favorece o êxito escolar, porque propicia um melhor desempenho nos processos formais e informais de avaliação. Cobra-se que os alunos tenham um estilo elegante de falar, de escrever e até mesmo de se comportar; que sejam intelectualmente curiosos, interessados e disciplinados; que saibam cumprir adequadamente as regras da “boa educação”. Essas exigências só podem ser plenamente atendidas por quem foi previamente, na família, socializado nesses mesmos valores. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 21).

Lahire (1995) apud Nogueira e Nogueira (2002) observa que é necessário estudar a dinâmica interna da família, as relações de interdependência social e afetiva entre seus membros para entender seu grau e modo como os recursos disponíveis – os vários capitais e o habitus incorporado dos pais – são ou não transmitidos aos filhos. A transmissão do capital cultural depende de um trabalho ativo realizado tanto pelos pais quanto pelos próprios filhos, podendo ser bem sucedido ou não, contrapondo-se à imagem do herdeiro que passivamente recebe uma bagagem familiar privilegiada, pois a apropriação da herança advém de um processo complexo e de resultados incertos.

No conjunto, essas críticas a Bourdieu realçam o fato de que o

habitus de uma família e, mais ainda, de um indivíduo não pode ser

deduzido diretamente do que seria seu habitus de classe. As famílias e os indivíduos não se reduzem à sua posição de classe. O pertencimento a uma classe social, traduzido na forma de um habitus de classe, pode indicar certas disposições mais gerais que tenderiam a ser compartilhadas pelos membros da classe. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 27).

Outro componente específico relevante do capital cultural é a informação sobre a estrutura e o funcionamento do sistema de ensino, não apenas da organização formal, como por exemplo, ramos de ensino, cursos, estabelecimentos, mas, sobretudo, da compreensão que se tenha das hierarquias que distinguem as ramificações escolares do ponto de vista de sua qualidade acadêmica, prestígio social e retorno financeiro. É por meio deste conhecimento que os pais formularão estratégias para orientar a trajetória escolar dos filhos, especialmente nos momentos de decisões importantes, quais sejam, continuação dos estudos, mudança de estabelecimento, escolha do curso superior, entre outros. Esse tipo específico de capital cultural é proveniente não somente da experiência escolar e profissional, no caso dos pais professores, mas também através do contato pessoal com amigos e parentes que possuam familiaridade com o sistema educacional.

Nesse caso, o capital social é um instrumento de acumulação do capital cultural; o capital econômico e o social funcionam, na maior parte das vezes, como pontes à acumulação do capital cultural. O beneficio escolar extraído dessas oportunidades depende sempre do capital cultural previamente possuído.

A bagagem herdada por cada indivíduo não pode ser entendida simplesmente como um conjunto mais ou menos rentável de capitais que cada um utiliza a partir de critérios definidos de modo idiossincrático. Cada grupo social, em função das condições objetivas que caracterizam sua posição na estrutura social, constitui um sistema específico de disposições para a ação, que é transmitido aos indivíduos na forma do habitus. Na concepção bourdieusiana, é pelo acúmulo histórico de experiências de êxito e de fracasso que os grupos sociais constroem um conhecimento prático, não plenamente consciente, relativo ao que é possível ou não ser alcançado pelos seus membros dentro da realidade social concreta na qual eles agem, e sobre as formas mais adequadas de fazê-lo.

Esse raciocínio, aplicado à educação, indica que os grupos sociais se baseiam pelos exemplos de sucesso e/ou fracasso vivido por seus membros, adequando inconscientemente seus investimentos às chances objetivadas no universo escolar. A origem e a intensidade dos investimentos escolares dependem do sucesso escolar dos membros da família e variam, ainda, em

relação ao grau social de cada grupo, ou seja, à manutenção da posição estrutural atual ou da tendência à ascensão social. Neste sentido, as elites econômicas, por exemplo, não precisam investir alto na escolarização de seus filhos quanto certas frações das classes médias que devem sua posição social, quase que exclusivamente à certificação escolar.