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1 FAMÍLIA ATRAVÉS DA HISTÓRIA

1.3 A família brasileira

1.3.1 O nascimento do lar burguês

A ruptura na complexidade familiar, que por razões diversas levou os pais a se separarem dos filhos solteiros, casados, genros, noras, netos e mesmo dos parentes, não revive, nos séculos XVIII e XIX, o mesmo ambiente da casa-grande, que por outro lado parece não intervir no ciclo de obrigações mútuas que unem os sujeitos ligados por parentesco, amizade ou trabalho. Nesse sentido, Samara (1987) salienta que a absorção dessas relações não ocorre na estrutura interna da família, continua correndo fora dela, pois os laços de sangue e solidariedade estão presentes na trama social.

O capitalismo tardio desenvolvido no Brasil e as relações estabelecidas pelo colonizador português definiram traços culturais e sociais bastante específicos. Em relação às características da família, inicialmente elas foram “livres”, adotaram normas e comportamentos de acordo com a cultura patriarcal, refletindo obviamente a ideologia dos colonizadores, mas sem intervenções jurídico-legais. O caráter privado da família brasileira no período colonial não possuía o mesmo sentido da privatização inerente ao modelo de família nuclear moderno que se desenvolvera a partir do século XVIII na Europa. Sua ampla estrutura incluía agregados, compadres, afilhados e parentes em geral que, mesmo migrando do campo para a cidade, resistiu a qualquer proposta de mudança. (PINHEIRO, 2002, p. 66-67).

As mutações na família brasileira estão inicialmente atreladas ao sentimento de intimidade, aos hábitos alimentares, ao pudor do corpo, que foram desenvolvidos a partir do século XIX, auxiliadas pelos médicos que, utilizando-se do discurso da higiene, da moral e até do amor à pátria, modificaram suas práticas. Essa união entre o Estado e a medicina foi fundamental, especialmente para as mudanças que aconteceram nas famílias ricas.

A família patriarcal manteve durante muito tempo em sua estrutura uma extensa rede de pessoas fora do critério da consanguinidade ou dos laços matrimoniais, como os compadres, afilhados e outros. Sua extensão não significava necessariamente autonomia ou liberdade para as pessoas envolvidas, mas consistia em reforço ideológico da ideia de dominação dos senhores. Desta forma, mesmo com características privadas, sua conduta não era condizente com uma sociedade urbana que, na perspectiva de seus ideólogos, precisava ser “europeizada.” (PINHEIRO, 2002).

Nesse contexto, a família engendrou um impedimento movido pela urbanização: ou mudava os hábitos para acompanhar as novas regras de

competição social e econômica, ou continuava estagnada em seu modo de vida, correndo o risco de enfraquecer-se economicamente, sendo que ambas as escolhas resultavam em desestruturação. Nesse impasse, a família aceitou a medicina como padrão de comportamentos íntimos, fortalecendo a urbanização, as normas de convivência, entre outras.

Paulatinamente, a nova família nuclear rompeu com as raízes extensas do passado, edificando em seu lugar um conjunto de cuidados físicos e emocionais.

Desse rompimento resultou a quebra de antigos valores relacionados, por exemplo, à religião e à propriedade. Em seu lugar, valores de classe, corpo, raça e individualismo foram sendo assumidos, até chegarem às concepções modernas de educação e conservação das crianças como objetivo fundamental do lar burguês. Essas são, portanto, as origens das idéias que percebem a família enquanto local privilegiado de proteção e cuidados com a infância. (PINHEIRO, 2002, p. 68).

A medicina voltou-se às famílias de elite, as quais tinham condições de oferecer educação aos filhos. Houve favorável articulação dos profissionais entre as famílias e o Estado, tais como estruturação de hábitos, comportamento, forma de criar os filhos. O comportamento do homem burguês foi uma construção social que precisou tirar as crianças do convívio dos pais. Nesse âmbito, surge o colégio interno como âncora nos estudos que a família não dava conta, como sexualidade saudável, harmonia física e moral, pressupostos desse modelo de colégio que distinguia as crianças burguesas das demais.

A mudança estrutural da família brasileira se deu no período de transição entre o trabalho livre e o trabalho escravo, não havendo, por parte do Estado, preocupação com as famílias pobres e livres em geral, pois não eram motivo de inquietações. As atenções, no entanto, estavam voltadas para as mudanças nas famílias burguesas.

A sociedade brasileira, em especial os setores privilegiados economicamente, passada a transição de família patriarcal em família nuclear burguesa, era agora atrelada à substituição de um ideário naturalista por uma compreensão leiga, racional e científica, o que implicou num processo de

separação entre o público e o privado, uma segregação social com espaços delimitados.

O tempo dos compadres de aparente entrelaçamento das classes sociais havia passado. O sentimento de intimidade, o sentimento de infância, a separação da criança do adulto (colégios internos), o confinamento da mulher no lar, a mudança na arquitetura das casas são fatos que expressam essa transformação. Na base de todo esse processo, encontra-se o modo de produção específico da sociedade capitalista. Ao separar os meios de produção do trabalhador, ao estabelecer uma profunda divisão social do trabalho, ao separar ricos e pobres, essa sociedade não podia correr o risco de permitir o desenvolvimento de outras formas de solidariedade no interior das instituições. Todos precisavam adotar a mesma racionalidade em nome do progresso e da ordem. (PINHEIRO, 2002, p. 70).

É nesse contexto que o Estado passa a controlar com veemência a educação da classe trabalhadora, combatendo a insalubridade e promiscuidade nas moradias, presentes nos cortiços e favelas, intervindo num ato de repressão social para uniformizar a representação dos papéis e dos modelos ideais.

Aos poucos, o isolamento da família, o caráter autoritário mesclado à ideia de propriedade dos pais em relação aos filhos e do marido para com a mulher, formou um pano de fundo para a constância das atitudes inadequadas dos pais perante os filhos, alterando a visão de infância, no nível formal das instituições (leis, decretos, estatutos) e nos aspectos ligados à cultura, valores e educação na família.

Nesse contexto, a mulher adquire importância no interior da casa ao assumir o papel de iniciadora da educação, deixando de ser apenas a guardiã do patrimônio, assim como o Estado é o mediador das relações familiares, que, embora regulamentadas, não romperam com o princípio de autoridade masculina.

A razão instrumental – pensamento desenvolvido pelas ideias protestantes do período liberal – permeava o comportamento dos indivíduos, os quais deviam ajustar-se e subordinar-se para não se perderem ou enfraquecerem. Quem não era submisso estava fadado ao fracasso. É deste contexto que se valoriza a educação (familiar) que garantisse a reprodução da autoridade (paterna) e a compreensão das diferenças naturais como desígnios

de Deus, assim como as diferenças sociais, tomadas como acontecimentos naturais.

Horkheimer (1990) pontua que essa razão instrumental era reforçada pelo senso de responsabilidade econômica e social para com a mulher e os filhos que, no mundo burguês, tornou-se um traço característico do homem e fez parte de uma das funções aglutinadoras da família, como ainda se encontra hoje. Para exercer sua função influente na família, o homem necessita exercer seu papel de provedor. Ao perder dinheiro, ele também perde o poder.

Para Da Matta (1987), o sistema familiar muitas vezes é heterogêneo, ou seja, pode ser matrifocal, liderado pela mãe, ou patriarcal, guiado pelo pai. Assim, em alguns contextos o mundo social é englobado pela mulher, ao passo que, em outros, pelo homem. Aquilo que diz respeito ao universo da casa, os valores religiosos, morais e éticos, é submetido à mãe, e o que pertence ao mundo da rua, dos negócios, política e formalidades, é incumbido ao pai.

A funcionalidade do sistema reside na própria capacidade de manter diversas categorias englobadoras que venham a ser utilizadas em situações e propósitos distintos. Nesse sentido, o sistema pode ser ao mesmo tempo matrifocal e patriarcal, desde que se refira respectivamente à casa ou à rua, pois é considerado de relevância superior o exercício daquilo que pertence à rua, aos negócios, e, portanto, a necessidade e a importância do trabalho da mulher fora de casa não destroem as concepções sobre inferioridade e submissão.

Por meio de uma base histórica e social, buscou-se evidenciar, no capítulo, as relações estabelecidas entre família, criança, escola e sociedade, pois são campos interligados nos dias de hoje. Assim, traçou-se uma esfera de reflexões acerca das transformações sociais que modificaram o conceito de criança e, consequentemente, de família no mundo ocidental, especialmente a partir da Idade Moderna, salientando o surgimento da escola, da burguesia e o papel da família no contexto dessas mudanças. Por sua vez, essas considerações servem como base para a compreensão dos próximos conceitos acerca de arte, educação, deficiência, inclusão e classe social, a serem trabalhados nos capítulos posteriores.