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O microssistema de ações coletivas

No documento Felipe Evaristo dos Santos Galea (páginas 54-59)

2 A EFETIVIDADE NAS AÇÕES COLETIVAS

2.3 O microssistema de ações coletivas

Não restam dúvidas de que o CDC é uma lei bastante avançada em prol dos direitos do consumidor e traz relevantes contribuições quanto aos processos coletivos. Todavia, em função da relevância das matérias ali tratadas, não se pode considerá-lo autossuficiente para a melhor promoção desses direitos, podendo – e devendo – o magistrado recorrer também a outras fontes para a máxima proteção do consumidor nas respectivas ações coletivas.

Já em seu artigo 7º o CDC esclarece que os direitos previstos no código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, e dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. Com isso, podem-se somar ao CDC quaisquer direitos aproveitáveis aos consumidores, independentemente de sua fonte, pois o legislador não exauriu as suas possibilidades.

Ainda assim, também foi expressamente disposta no artigo 90 do CDC a aplicabilidade subsidiária das normas do Código de Processo Civil e da Lei nº 7347/1985, a Lei da Ação Civil Pública.

Diante dessa interação das fontes do direito do consumidor, considerarmos que o CDC é um sistema permeável que permite o uso da norma mais favorável ao consumidor, esteja ela no CDC ou em outra lei geral, lei especial ou tratado. Após fazer essa ponderação, Claudia Lima Marques emenda:

Esta abertura é tanta que o art. 7º do CDC permite a utilização de equidade para preencher lacunas em favor dos consumidores. Como se sabe, essa justiça para o caso concreto, mesmo fora do sistema, só pode ser usada pelo juiz brasileiro quando autorizada por lei (art. 4º da LICC), e aqui abre-se o sistema do CDC ao uso deste instrumento maior para alcançar a justiça e a igualdade entre os desiguais.74

Logo, depreendemos a possibilidade de ao consumidor e suas respectivas ações coletivas serem aplicadas normas favoráveis de outras leis igualmente relevantes, mas que não serão foco de detalhamento do nosso estudo, como a Lei nº 4.717/1965, da ação popular, a Lei nº 7.853/1989, que dispôs sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social, a Lei nº 7.913/1989, acerca da ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores do mercado financeiro, a Lei nº 12.016/2009, do mandado de segurança, que traz as disposições sobre o respectivo processo coletivo, e a Lei nº 8069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Sobre essa última, o STJ já expressamente se referiu interagir com o CDC justamente em função do diálogo das fontes do direito do consumidor. Vejamos a ementa do acórdão em questão:

DIREITO CIVIL E CONSUMIDOR. RECUSA DE CLÍNICA CONVENIADA A PLANO DE SAÚDE EM REALIZAR EXAMES RADIOLÓGICOS. DANO MORAL. EXISTÊNCIA. VÍTIMA MENOR. IRRELEVÂNCIA. OFENSA A DIREITO DA PERSONALIDADE.

- A recusa indevida à cobertura médica pleiteada pelo segurado é causa de danos morais, pois agrava a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito daquele. Precedentes - As crianças, mesmo da mais tenra idade, fazem jus à proteção irrestrita dos direitos da personalidade, entre os quais se inclui o direito à integridade mental, assegurada a indenização pelo dano moral decorrente de sua violação, nos termos dos arts. 5º, X, in fine, da CF e 12, caput, do CC/02.

- Mesmo quando o prejuízo impingido ao menor decorre de uma relação de consumo, o CDC, em seu art. 6º, VI, assegura a efetiva reparação do dano, sem fazer qualquer distinção quanto à condição do consumidor, notadamente sua idade. Ao contrário, o art. 7º da Lei nº 8.078/90 fixa o chamado diálogo de fontes, segundo o qual sempre que uma lei garantir algum direito para o consumidor, ela poderá se somar ao microssistema do CDC, incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma preferência no trato da relação de consumo.

- Ainda que tenha uma percepção diferente do mundo e uma maneira peculiar de se expressar, a criança não permanece alheia à realidade que a cerca, estando igualmente sujeita a sentimentos como o medo, a aflição e a angústia.

74 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código

- Na hipótese específica dos autos, não cabe dúvida de que a recorrente, então com apenas três anos de idade, foi submetida a elevada carga emocional. Mesmo sem noção exata do que se passava, é certo que percebeu e compartilhou da agonia de sua mãe tentando, por diversas vezes, sem êxito, conseguir que sua filha fosse atendida por clínica credenciada ao seu plano de saúde, que reiteradas vezes se recusou a realizar os exames que ofereceriam um diagnóstico preciso da doença que acometia a criança. Recurso especial provido. (STJ, REsp 1037759/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/02/2010, DJe 05/03/2010)

De forma reflexa, o artigo 21 da LACP, com a redação dada justamente pela Lei nº 8078/90, dispõe serem aplicáveis às ações civis públicas, no que couber, os dispositivos do Titulo III do Código de Defesa do Consumidor acima referidos, que tratam de questões processuais das ações coletivas75.

Na ausência de uma lei uniforme para todas as ações coletivas, as referências cruzadas entre as diferentes leis reforçam a existência de um microssistema de ações coletivas e o argumento de que as normas processuais do Código de Defesa do Consumidor são, em regra, aplicáveis a todos os tipos de direitos coletivos e seus respectivos processos.

Esse sistema é salutar justamente por viabilizar uma maior efetividade das ações coletivas, conforme ensina Bruno Miragem ao comentar o artigo 90 do CDC:

O recurso a outras fontes de direito processual, portanto, deve ser pautado pela mesma lógica [do diálogo das fontes do direito material, especialmente entre Código Civil e CDC], sobretudo se tomarmos o CDC como um microssistema com fundamento e hierarquia constitucionais, e, neste sentido, tem em suas normas processuais instrumentos adequados à promoção da efetividade dos direitos do consumidor. Assim, observada em função do art. 7º, do CDC, a aplicação das normas processuais de outros corpos legislativos como o CPC e a Lei da Ação Civil Pública deve privilegiar necessariamente a efetividade dos direitos do consumidor consagrados pela Lei especial.76 Em sentido semelhante, ensina Patricia Miranda Pizzol:

75 Muito embora a possibilidade de inversão do ônus da prova esteja prevista no CDC em título diferente daquele

a que a LACP faz remissão, não restam dúvidas de sua aplicabilidade às ações civis públicas, por se tratar de norma processual mais benéfica ao consumidor, conforme também ensinam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery: “(...) são aplicáveis às ações ajuizadas com fundamento na LACP as disposições processuais que encerram todo o Tít. III do CDC, bem como as demais disposições processuais que se encontram pelo corpo do CDC, como, por exemplo, a inversão do ônus da prova (...). Este instituto, embora se encontre topicamente no Tít. I do Código, é disposição processual e, portanto, integra ontológica e teleologicamente o Tít. III, isto é, a defesa do consumidor em juízo. Há, portanto, perfeita sintonia e interação entre os dois sistemas processuais, para a defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.” (NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 12.ed. revista, atualizada e ampliada até 13 de julho de 2012. São Paulo: RT, 2012, p.1693)

76 MARQUES, Cláudia Lima, BENJAMIN, Antônio Herman V. e MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código

Conforme afirmamos anteriormente, antes do advento do CDC, já havia leis que disciplinavam, de forma esparsa, a tutela dessa categoria de direitos e interesses. O legislador, ao estabelecer normas materiais e processuais relativas aos direitos dos consumidores, sentiu necessidade de criar mecanismos de adaptação entre os sistemas já existentes e o do Código, sob pena de ‘ensejar duplicidade de regimes ou, o que seria pior, conflitos normativos com as disposições processuais do CDC’. Por conta dessa interação entre o CDC e esses outros diplomas legais, especialmente a LACP, foi dedicada a última parte do Código à tarefa de adaptá-los, o que ensejou o surgimento de um microssistema único, destinado à tutela de todos os direitos e interesses ‘coletivos’, com base no qual se vem sustentando a existência da denominada ‘jurisdição civil coletiva’.77

A jurisprudência também reconhece, há algum tempo, a necessidade de interpretação conjunta das leis sobre direitos e processos coletivos, conforme extraímos dos julgados abaixo:

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA. LITISCONSORTES. PRAZO EM DOBRO PARA APRESENTAÇÃO DE DEFESA PRÉVIA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO NA LIA. UTILIZAÇÃO DOS INSTITUTOS E MECANISMOS DAS NORMAS QUE COMPÕEM O MICROSSISTEMA DE TUTELA COLETIVA. ART. 191 DO CPC. APLICABILIDADE. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.

1. Os arts. 21 da Lei da Ação Civil Pública e 90 do CDC, como normas de envio, possibilitaram o surgimento do denominado Microssistema ou Minissistema de proteção dos interesses ou direitos coletivos amplo senso, no qual se comunicam outras normas, como o Estatuto do Idoso e o da Criança e do Adolescente, a Lei da Ação Popular, a Lei de Improbidade Administrativa e outras que visam tutelar direitos dessa natureza, de forma que os instrumentos e institutos podem ser utilizados para "propiciar sua adequada e efetiva tutela" (art. 83 do CDC).

2. A Lei de Improbidade Administrativa estabelece prazo de 15 dias para a apresentação de defesa prévia, sem, contudo, prever a hipótese de existência de litisconsortes. Assim, tendo em vista a ausência de norma específica e existindo litisconsortes com patronos diferentes, deve ser aplicada a regra do art. 191 do CPC, contando-se o prazo para apresentação de defesa prévia em dobro, sob pena de violação aos princípios do devido processo legal e da ampla defesa.

3. Recurso especial não conhecido. (STJ, REsp 1221254/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/06/2012, DJe 13/06/2012)

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INDISPONIBILIDADE DE BENS. DEFERIMENTO DE LIMINAR. AGRAVO DE INSTRUMENTO. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA. SÚMULA 07/STJ. AUSÊNCIA

DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. VIOLAÇÃO A DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. COMPETÊNCIA DO STF. UTILIZAÇÃO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONTRA ATO DE IMPROBIDADE. CABIMENTO.

1 A probidade administrativa é consectário da moralidade administrativa, anseio popular e, a fortiori, difuso.

2. A característica da ação civil pública está, exatamente, no seu objeto difuso, que viabiliza mutifária legitimação , dentre outras, a do Ministério Público como o órgão de tutela, intermediário entre o Estado e o cidadão. 3. A Lei de Improbidade Administrativa, em essência, não é lei de ritos senão substancial, ao enumerar condutas contra legem, sua exegese e sanções correspondentes.

4. Considerando o cânone de que a todo direito corresponde um ação que o assegura, é lícito que o interesse difuso à probidade administrativa seja veiculado por meio da ação civil pública máxime porque a conduta do Prefeito interessa à toda a comunidade local mercê de a eficácia erga omnes da decisão aproveitar aos demais munícipes, poupando-lhes de noveis demandas.

5. As consequências da ação civil pública quanto aos provimento jurisdicional não inibe a eficácia da sentença que pode obedecer à classificação quinária ou trinária das sentenças

6. A fortiori, a ação civil pública pode gerar comando condenatório, declaratório, constitutivo, autoexecutável ou mandamental.

7. Axiologicamente, é a causa petendi que caracteriza a ação difusa e não o pedido formulado, muito embora o objeto mediato daquele também influa na categorização da demanda.

8. A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiam-se.

9. A doutrina do tema referenda o entendimento de que ‘A ação civil pública é o instrumento processual adequado conferido ao Ministério Público para o exercício do controle popular sobre os atos dos poderes públicos, exigindo tanto a reparação do dano causado ao patrimônio por ato de improbidade quanto à aplicação das sanções do art. 37, § 4º, da Constituição Federal, previstas ao agente público, em decorrência de sua conduta irregular.

(...) Torna-se, pois, indiscutível a adequação dos pedidos de aplicação das sanções previstas para ato de improbidade à ação civil pública, que se constitui nada mais do que uma mera denominação de ações coletivas, às quais por igual tendem à defesa de interesses meta-individuais. (...)’ (Alexandre de Moraes in ‘Direito Constitucional’, 9ª ed., p. 333-334) (...)” (STJ, REsp 1085218/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/10/2009, DJe 06/11/2009)

Muito embora o microssistema de ações coletivas inclua diversos tipos de ações, nossa dissertação irá enfatizar as ações pelo rito ordinário, mais comumente utilizadas para a proteção do direito coletivo do consumidor, decorrentes do Código de Defesa do Consumidor ou da Lei da Ação Civil Pública, ainda que determinados assuntos nos exijam recorrermos aos demais regramentos.

2.4 Principais características diferenciadoras das ações coletivas de consumo em prol

No documento Felipe Evaristo dos Santos Galea (páginas 54-59)