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Profunda busca de provas pelo magistrado

No documento Felipe Evaristo dos Santos Galea (páginas 157-163)

4 A ATUAÇÃO DO JUIZ PELA EFETIVIDADE DAS AÇÕES COLETIVAS

4.2 A atuação do juiz nas diferentes fases do processo coletivo

4.2.3 Fase instrutória

4.2.3.1 Profunda busca de provas pelo magistrado

Iniciamos este capítulo com uma ressalva. Não defendemos que a atividade judicial instrutória proativa ocorra em favor do colegitimado ativo que busca defender os direitos do consumidor. Da mesma forma, não entendemos deva o juiz buscar evidências de que o fornecedor não praticou ilegalidades apontadas na ação coletiva.

Pensamos que o juiz deve, isso sim, procurar se cercar de todos os cuidados para que a prova direcionada ao processo – portanto, não a qualquer das partes – seja a mais elucidativa possível, independentemente de quem dela se beneficiará. Naturalmente, pelo fato de os consumidores serem presumivelmente vulneráveis perante o fornecedor, na maior parte das vezes supõe-se que a atividade instrutória proativa do magistrado poderá beneficiar a coletividade cujos interesses são tutelados na ação, no sentido de possibilitar o acesso à instrução. No entanto, o resultado da prova produzida ex officio não pode ser antevisto, e isso ratifica a isonomia da prática, conforme também ensina Patricia Miranda Pizzol237.

Defendemos essa postura judicial por acreditarmos que no processo civil (especialmente nas ações coletivas, tão fundamentais ao acesso dos consumidores à justiça efetiva), tal como no penal, a verdade buscada pelo processo deve ser a verdade real, pela

237 “Il giudice ha quelli che noi chiamamo poteri istrutori. Il giudice non diventa parziale a causa

dell’utilizzazione dei poteri istrutori, perché egli non sa quale sarà il risultato della realizzazione della prova (ad esempio, una perizia)” (PIZZOL, Patricia Miranda. I poteri del giudice nell`ordinamento brasiliano. In: Davanti al giudice – studi sul processo societario. LANFRESCHI, Lucio e CARRATTA, Antonio (cura). Torino: G. Giappichelli Editore, 2005, p.603).

qual realmente se atinge efetividade processual, e não aquela meramente formal à qual a maior parte dos processualistas e magistrados antigamente costumava se apegar.

É na fase instrutória dos processos coletivos que o juiz parece ganhar a sua maior maleabilidade para direcionar o procedimento a um caminho seguro para aprofundar as evidências das alegações das partes e chegar a essa verdade real. Isto porque, diferentemente de outras posturas que adotamos nesta dissertação, acreditamos que a esse respeito o magistrado possui autorização (ou dever) legal expressa para agir independentemente da vontade da parte e como julgar necessário, conforme o artigo 130 do Código de Processo Civil, segundo o qual: “Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias”.

Corroborando essa esperada proatividade do juiz na determinação e realização das provas necessárias, o CPC prevê, dentre outras atividades, (1) no artigo 418, a possibilidade de o magistrado, de ofício, ordenar a inquirição de testemunhas referidas nas alegações das partes ou de outras testemunhas, ou ainda determinar a acareação entre duas testemunhas ou de uma delas com a parte; (2) no artigo 440, a inspeção judicial igualmente ex officio; (3) no artigo 420, corroborando a confiança depositada pelo legislador na atividade judicial para delimitar a extensão das provas, a permissão para o magistrado indeferir prova pericial julgada desnecessária; e (4) no artigo 426, a formulação de quesitos entendidos necessários ao esclarecimento da causa.

Se o CPC, aplicável subsidiariamente às ações coletivas, desestimula a assunção da função de mero espectador pelo juiz e admite a determinação de produção de provas por ele independentemente do requerimento das partes238, realmente não há qualquer impedimento à busca de uma verdade mais próxima possível da realidade.

Mesmo na doutrina clássica é possível encontrar defensores de postura mais consciente e participativa do juiz na instrução do processo. Nesse sentido, Chiovenda, embora bastante afeito ao princípio dispositivo em sua tradicional concepção de limitar a atuação judicial espontânea, já reconhecia o avanço do entendimento de que o juiz pode ter postura mais participativa na produção da prova:

La prevalenza del principio dispositivo sulla iniziativa del giudice nella formazione delle prove, cioè nell’accertamento della verità dei fatti, si fonda

238 Não há lei sobre processos coletivos em vigor que expressamente autorize a busca de provas de ofício pelo

in parte anche qui, come nel campo della scelta dei fatti da accertare, sulla natura della lite civile e degli interessi che abitualmente vi si agitano: nessuno è miglior giudice della parte circa le prove di cui può disporre, circa i suoi interessi individuali. Tuttavia non si può disconoscere che l’atteggiamento passivo del giudice nella formazione delle prove può apparire meno giustificato che nella scelta dei fatti poichè, fissati i fatti da accertare, il modo di accertali non può dipendere dalla volontà delle parti, una sola essendo la verità. Si aggiunge che l’atteggiamento passivo del giudice si connette anche indiscutibilmente alle forme del processo scritto. Onde s’intende che nelle leggi moderne, particolarmente in quelle che hanno attuato più largamente l’oralità, va determinandosi uma reazoni contro il principio dispositivo, a favore dell’iniziativa del giudice. 239

Igualmente, José Almagro Nosete240, mesmo considerando o princípio dispositivo como a “alma” do processo civil, já há bastante tempo argumentava:

Por supuesto que hoy nadie duda de la conveniencia de establecer efugios que permitan al juez em el orden de los hechos, solicitar las aclaraciones o precisiones acerca de los mismos o de lo pedido, necessarias para su cabal conocimiento de éstos, y en el orden de las pruebas, autorizarle para que de oficio pueda ordenar la práctica de aquellas que considere atinentes a la mejor obtención de la verdad, base de su convencimiento, mejorando el actual sistema de diligencias para mejor proveer.

Realmente, a resistência a isso demonstra o ranço da tradição, da época das Ordenações, em que, segundo José Roberto dos Santos Bedaque241, o juiz deveria julgar “segundo o que achar provado de uma e de outra parte, ainda que a consciência lhe dite outra coisa, e saiba ele a verdade ser em contrário do que no feito for provado”. Nas lides – inclusive naquelas coletivas – relacionadas a direito do consumidor, o juiz ainda tem o poder de inverter o ônus da prova para descobrir a verdade real, conforme já apontamos com relação à fase postulatória do processo. E não há mesmo motivos para o magistrado negligenciar a possibilidade de exaurir provas visando à efetividade do processo de maneira justa.

João Batista Lopes já esclareceu que a direção material do processo pelo juiz e a paridade de armas são ideias afins quando se busca a efetividade da tutela jurisdicional. Embora defenda que o magistrado não pode auxiliar a parte mais fraca e praticar assistencialismo judicial, ressalva a necessidade de uma postura diferenciada quando se tratar de ações sobre direitos indisponíveis (exemplificados como os direitos de um menor), em que

239 CHIOVENDA, Giuseppe. Principii di Diritto Processuale Civile – Le azione. Il processo di cognizione.

Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1965, p.732.

240 NOSETE, José Almagro. Garantías constitucionales del proceso civil. In: RAMOS, Francisco (edición). Para

un proceso civil eficaz. Barcelona: Servicio de publicaciones de la Universidad Autónoma de Barcelona, 1982, p.11-12.

“não se afigura razoável(...) o mero apego ao princípio dispositivo, razão por que o juiz deverá exercer seus poderes instrutórios, determinando diligências para apuração dos fatos”242. Vê-se, pois, não existir esse rigor absoluto ao princípio da inércia do juiz, como indicaremos em maior detalhe no capítulo seguinte, sobre a fase decisória do processo.

Realmente, a prática do direito processual não poderia levar a conclusão diferente, na linha do que tem sido admitido pela jurisprudência:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DO DEVEDOR À EXECUÇÃO FUNDADA EM TÍTULO JUDICIAL. ÔNUS DA PROVA. INICIATIVA PROBATÓRIA DO JULGADOR. ADMISSIBILIDADE.

- Os juízos de 1º e 2º graus de jurisdição, sem violação ao princípio da demanda, podem determinar as provas que lhes aprouverem, a fim de firmar seu juízo de livre convicção motivado, diante do que expõe o art. 130 do CPC.

- A iniciativa probatória do juiz, em busca da verdade real, com realização de provas de ofício, é amplíssima, porque é feita no interesse público de efetividade da Justiça.

- Embora recaia sobre o devedor-embargante o ônus de demonstrar a inexatidão dos cálculos apresentados pelo credor-exequente, deve-se admitir a iniciativa probatória do julgador, feita com equilíbrio e razoabilidade, para aferir a exatidão de cálculos que aparentem ser inconsistentes ou inverossímeis, pois assim se prestigia a efetividade, celeridade e equidade da prestação jurisdicional. Recurso especial improvido. (STJ, REsp 1012306/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/04/2009, DJe 07/05/2009)

DESAPROPRIAÇÃO. APRECIAÇÃO DO LAUDO PERICIAL. DEFICIÊNCIA NA VALORAÇÃO DA PROVA. MATÉRIA PREJUDICIAL AO EXAME DO RECURSO ESPECIAL A TEOR DA SÚMULA N.º 07/STJ. ART. 130, DO CPC. APRECIAÇÃO DA PROVA. 1. Ausência de valoração da prova impeditiva da análise pelo STJ do malferimento dos dispositivos legais invocados. Prejudicial ao exame do recurso especial.

2. O art. 130, do CPC, é aplicável a todas as instâncias por isso que ao STJ é lícito, antes da analise à violação da lei, determinar a baixa dos autos à instância de origem para que valore a prova produzida, prejudicial à análise do meritum causae porquanto à Corte está interditada a análise do contexto fático-probatório.

3. "(...) O Código de Processo Civil, atento aos reclamos da modernidade quanto ao ativismo judicial, dispôs no seu art. 130, “caber ao juiz de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis e protelatórias” Dessume-se, do dispositivo citado, que esse poder de iniciativa conspira em favor da busca da verdade, habilitando o juiz a proferir uma sentença restauradora do statu

242 LOPES, João Batista. Contraditório, paridade de armas e motivação da sentença. In: MEDINA, José Miguel

Garcia; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; CERQUEIRA, Luís Otávio Sequeira de Cerqueira; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. (Coord). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais – estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: RT, 2008, p.266.

quo ante à violação, carreando notável prestígio para o monopólio da jurisdição que, ao limitar a autotutela, promete ao jurisdicionado colocá-lo em situação igual à que se encontrava antes do inadimplemento. E, para isso, é preciso aproximar a decisão da realidade da qual o juiz, evidentemente, não participou, e a ela é conduzido através da atividade probatória.(...)"(Luiz Fux, in "Curso de Direito Processual Civil" Forense, 2001).

4. Não obstante, em respeito à função uniformizadora desta E. Corte, acompanho o posicionamento das Turmas de Direito Público, ressalvado o meu entendimento no sentido da possibilidade da determinação ex officio do retorno dos autos à instância de origem para que valore a prova produzida. 5. Os critérios para fixação do quantum indenizatório estão adstritos às instâncias ordinárias, ante a necessária análise do conjunto fático-probatório (Súmula 07/STJ), insindicável por esta Corte. Precedentes das Turmas de Direito Público.

6. Recurso especial não conhecido, com ressalva do relator. (STJ, REsp 540179/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/12/2003, DJ 14/06/2004, p. 170)

O voto condutor do segundo julgado esclarece a intimidade entre a busca da verdade real pelo exercício do ativismo judicial e a efetividade do processo a ser igualmente perseguida pelo julgador:

De tudo quanto foi exposto, revela-se evidente que, à luz do moderno Direito Processual Civil, prestigia-se o ativismo judicial a fim de se alcançar a efetivação da justiça, por isso que incumbia ao Tribunal de origem, uma vez verificada a divergência na valoração da prova pericial, determinar a realização de nova perícia ou requerer esclarecimentos ao vistor oficial.

Nessa mesma linha, em obra específica sobre a atuação do juiz nas ações coletivas, posiciona-se Swarai Cervone de Almeida, após recriminar a postura passiva do juiz na fase instrutória, indiferente ao andamento da produção das provas pelas partes, e lembrar que o interesse público exige o esclarecimento dos fatos levados a juízo, devendo ser suprida qualquer debilidade na produção de provas sem que isso afete a imparcialidade do magistrado:

Não há qualquer risco à imparcialidade do juiz nesse tipo de conduta. Em primeiro lugar, porque os processos coletivos se afeiçoam à imagem de um processo civil objetivo, onde a vontade das partes – subjetividade – se localiza em plano inferior e a atuação da vontade concreta da lei é de muito maior relevância. Em segundo lugar, porque, como enfatizado pela doutrina mais conceituada, imparcialidade não se confunde com passividade, imobilidade. Ser imparcial não significa ser passivo, mas sim, analisar as provas de forma não tendenciosa, sem a intenção de beneficiar uma ou outra parte...mesmo porque, antes de produzida a prova, não se sabe qual será o

resultado atingido. Ademais, a submissão da prova ao contraditório legitima a atuação do juiz, pois garante a participação das partes no processo. 243 Para aqueles que eventualmente suscitassem que essa postura proativa do juiz na busca de provas para o processo coletivo implicaria parcialidade daquele, lembramos que o Código de Ética da Magistratura Nacional244, no seu artigo 8º, dispõe que o magistrado imparcial é aquele que “busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.”

Ora, quando o magistrado se preocupa com as provas que o levarão a proferir determinada decisão, conforme já expusemos acima, isso não se trata de favoritismo a uma ou outra parte, mas justamente de busca da verdade envolvendo os fatos, para se assegurar de que o equilíbrio da relação de consumo, tão relevante para o legislador e para o mercado, não ficará relegado por ausência de evidências processuais.

Isso seria impensável, dado que a efetividade do processo implica colocar quem tem determinado direito ameaçado ou violado exatamente na posição em que estaria caso tal direito tivesse sido respeitado sem a necessidade de um processo judicial, e não ao contrário, ou seja, o processo não pode se prestar a encampar uma situação de desrespeito ao direito do consumidor ou de benefício excessivo a este. A atitude do juiz na busca de provas somente favorecerá o consumidor se este realmente estiver sendo lesado, porque, esclarecida a verdade (que o juiz desconhece), por exemplo, não será equivocadamente condenado o fornecedor se este age corretamente, embora as provas originalmente apresentadas nos autos não deixassem isso claro.

Portanto, o magistrado, ao buscar objetivamente as provas (não para condenar o fornecedor, mas para se certificar de que este respeitou o direito do consumidor), não estará sendo parcial, mas cauteloso, o que beneficia até mesmo o fornecedor, que terá todas as oportunidades de demonstrar a sua conduta zelosa perante os consumidores, e não deverá temer pela profunda instrução processual.

243 OLIVEIRA, Swarai Cervone. Poderes do juiz nas ações coletivas. São Paulo: Atlas, 2009, p. 85-86. 244 Aprovado na 68ª Sessão Ordinária do Conselho Nacional de Justiça, do dia 6.8. 2008, nos autos do Processo

No documento Felipe Evaristo dos Santos Galea (páginas 157-163)