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Sobre a legitimidade da Defensoria

No documento Felipe Evaristo dos Santos Galea (páginas 82-87)

2 A EFETIVIDADE NAS AÇÕES COLETIVAS

2.4 Principais características diferenciadoras das ações coletivas de consumo em prol da

2.4.2 Legitimidade ativa

2.4.2.3 Sobre a legitimidade da Defensoria

A principal questão jurídica sobre a legitimidade da Defensoria Pública para propor ações coletivas em defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos se refere à obrigação de o conteúdo da ação envolver interesses de necessitados. Isso porque, segundo o artigo 134 da Constituição da República, “a defensoria é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV”.

O Código de Defesa do Consumidor não previu expressamente no artigo 82 a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ações coletivas visando defender interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos120. Apenas referiu-se, no inciso II, a “entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses protegidos por este Código”.

Embora o artigo 4º da Lei Complementar nº 80/94, que organiza a Defensoria Pública, tenha previsto como uma de suas funções institucionais “patrocinar os direitos e interesses do consumidor lesado”, sempre se discutiu muito a possibilidade de a Defensoria Pública propor ações coletivas para a defesa de tais direitos e interesses, especialmente porque o órgão não estava incluído no taxativo rol do artigo 5º da LACP e não era “especificamente destinado à defesa dos interesses” dos consumidores, mas à defesa dos necessitados em geral.

No julgamento da ADI-MC 558/RJ121 sobre dispositivos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, inferimos ter o Supremo Tribunal Federal consignado que a Defensoria Pública agia, nas ações coletivas, não em nome próprio, mas conforme lhe cabe

120 O PLS 282/2012, entretanto, corrige essa omissão ao prever a inclusão da defensoria pública no rol de

legitimados daquele dispositivo do CDC.

121 STF, ADI-MC 558/RJ, Rel. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, Órgão Julgador: TRIBUNAL PLENO.

constitucionalmente, assistindo pessoas legitimadas à propositura da ação civil pública que não tenham condições econômicas de fazê-lo. Observemos trecho do julgado:

A Constituição Federal impõe, sim, que os Estados prestem assistência judiciária aos necessitados. Daí decorre a atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública. Não, porém, o impedimento a que os seus serviços se estendam ao patrocínio de outras iniciativas processuais em que se vislumbre interesse social que justifique esse subsídio estatal. Não me impressiona, de sua vez, a increpação de que as atribuições aí deferidas à defensoria pública implicaram invasão de áreas de atuação reservadas ao Ministério Público. Essa suposição – que está subjacente a quase toda a presente ação direta e explica a sua origem –, parte, data venia da confusão indevida entre a legitimação ativa do Ministério Público para a promoção, em nome próprio e incondicionada, da ação civil pública (CF, art. 129, III), [e] a função de assistência judiciária, confiada à Defensoria Pública para a representação em juízo de outras pessoas físicas ou jurídicas concorrentemente legitimadas pela lei federal à defesa de interesses difusos ou coletivos (CF, art. 129, §1º).

O STF também apontou a possibilidade de a Defensoria Pública propor, nessa qualidade, ação civil pública para a tutela de direitos difusos, por conta de seu caráter “altruístico”, ainda que a sentença atinja terceiros não necessitados, mas negou a possibilidade de isso acontecer em relação à tutela de direitos coletivos e individuais homogêneos (hipóteses em que as partes beneficiadas podem ser determinadas, em tese) quando houvesse, entre essas partes, pessoas não necessitadas.

A esse respeito, o voto do ministro relator ressaltou que a atuação da Defensoria Pública nesses casos “pode traduzir-se em privilégio de defesa gratuita de interesses privados de uma série de titulares não necessitados, o que não só desabordaria dos deslindes da vocação constitucional da Defensoria Pública, como caracterizaria afronta à isonomia das partes do processo”.

Esse entendimento do STF inspirou julgado bastante semelhante do STJ em recurso especial, conforme transcrevemos:

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA DOS INTERESSES DOS CONSUMIDORES DE ENERGIA ELÉTRICA. ILEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE. NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO. INOCORRÊNCIA.

I - O Tribunal a quo julgou satisfatoriamente a lide, pronunciando-se sobre o tema proposto, tecendo considerações acerca da demanda, tendo apreciado a questão afeita à tempestividade da apelação interposta pelo ora recorrido, entendendo que lhe é assegurado o prazo em dobro para recorrer, não havendo, portanto,que se falar em nulidade do acórdão hostilizado.

II - A hipótese em tela diz respeito a ação civil coletiva, ajuizada pelo Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro - NUDECON, em defesa dos consumidores de energia elétrica daquele Estado, contra Light Serviços de Eletricidade S/A e CERJ - Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro, em que postula a ilegalidade de artigos da Portaria nº 466/97 do DNAEE, com a abstenção das rés em suspender o fornecimento de energia elétrica, bem como em calcular a dívida dos consumidores com base em tal regramento legal, condenando aquelas na repetição de valores pagos indevidamente.

III - A Defensoria Pública não possui legitimidade para propor ação coletiva, em nome próprio, na defesa do direito de consumidores, porquanto, nos moldes do art. 82, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor, não foi especificamente destinada para tanto, sendo que sua finalidade institucional é a tutela dos necessitados.

IV - O Supremo Tribunal Federal, reforçando o entendimento sufragado, por meio da ADIN nº 558-8/MC, exarou entendimento no sentido da legitimidade da Defensoria Pública para intentar ação coletiva tão-somente para representar judicialmente associação desprovida dos meios necessários para tanto, não possibilitando a atuação do referido órgão como substituto processual, mesmo porque desprovido de autorização legal, a teor do art. 6º do CPC.

V - Recursos especiais providos, para determinar a ilegitimidade ativa ad causam do NUDECON, com a conseqüente extinção do processo sem julgamento de mérito, restando prejudicada a apreciação acerca do prazo em dobro para o recorrido apelar.” (STJ, REsp 734176/RJ, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/03/2006, DJ 27/03/2006, p. 196).

Ocorre que ambos os julgados aconteceram antes da alteração da LACP pela Lei nº 11.448/2007, a qual inseriu a Defensoria Pública como um dos entes legitimados à propositura da ação civil pública, conforme o artigo 5º, II. A ausência da Defensoria Pública desse rol é inclusive um dos fundamentos do acórdão referente à ementa a qual transcrevemos. Após a alteração legislativa, parece ter se solidificado, a nosso ver com razão, o entendimento a favor da legitimidade da defensoria pública:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ART. 134 DA CF. ACESSO À JUSTIÇA. DIREITO FUNDAMENTAL. ART. 5º, XXXV, DA CF. ARTS. 21 DA LEI 7.347/85 E 90 DO CDC.

MICROSSISTEMA DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS

TRANSINDIVIDUAIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INSTRUMENTO POR EXCELÊNCIA. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA RECONHECIDA ANTES MESMO DO ADVENTO DA LEI 11.448/07. RELEVÂNCIA SOCIAL E JURÍDICA DO DIREITO QUE SE PRETENDE TUTELAR. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. A Constituição Federal estabelece no art. 134 que "A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV". Estabelece, ademais, como garantia fundamental, o

acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF), que se materializa por meio da devida prestação jurisdicional quando assegurado ao litigante, em tempo razoável (art. 5º, LXXVIII, da CF), mudança efetiva na situação material do direito a ser tutelado (princípio do acesso à ordem jurídica justa).

2. Os arts. 21 da Lei da Ação Civil Pública e 90 do CDC, como normas de envio, possibilitaram o surgimento do denominado Microssistema ou Minissistema de proteção dos interesses ou direitos coletivos amplo senso, com o qual se comunicam outras normas, como os Estatutos do Idoso e da Criança e do Adolescente, a Lei da Ação Popular, a Lei de Improbidade Administrativa e outras que visam tutelar direitos dessa natureza, de forma que os instrumentos e institutos podem ser utilizados para "propiciar sua adequada e efetiva tutela" (art. 83 do CDC).

3. Apesar do reconhecimento jurisprudencial e doutrinário de que "A nova ordem constitucional erigiu um autêntico 'concurso de ações' entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais" (REsp 700.206/MG, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 19/3/10), a ação civil pública é o instrumento processual por excelência para a sua defesa.

4. A Lei 11.448/07 alterou o art. 5º da Lei 7.347/85 para incluir a Defensoria Pública como legitimada ativa para a propositura da ação civil pública. Essa e outras alterações processuais fazem parte de uma série de mudanças no arcabouço jurídico-adjetivo com o objetivo de, ampliando o acesso à tutela jurisdicional e tornando-a efetiva, concretizar o direito fundamental disposto no art. 5º, XXXV, da CF.

5. In casu, para afirmar a legitimidade da Defensoria Pública bastaria o comando constitucional estatuído no art. 5º, XXXV, da CF.

6. É imperioso reiterar, conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que a legitimatio ad causam da Defensoria Pública para intentar ação civil pública na defesa de interesses transindividuais de hipossuficientes é reconhecida antes mesmo do advento da Lei 11.448/07, dada a relevância social (e jurídica) do direito que se pretende tutelar e do próprio fim do ordenamento jurídico brasileiro: assegurar a dignidade da pessoa humana, entendida como núcleo central dos direitos fundamentais.

7. Recurso especial não provido.” (STJ, REsp 1106515/MG, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/12/2010, DJe 02/02/2011)

Essa alteração da LACP tem provocado bastante controvérsia, especialmente por parte de membros do Ministério Público, essencialmente legitimado a propor a ação civil pública. O principal argumento desses críticos é justamente que a Defensoria Pública teria se afastado de sua função constitucional, razão pela qual a Lei nº 11.448/2007 seria inconstitucional.

Pensamos estarem corretas apenas as críticas à inclusão irrestrita da Defensoria Pública dentre os entes legitimados a propor a ação coletiva nos moldes do artigo 5º da LACP, sem cogitar a presença ou não de necessitados dentre aqueles potencialmente beneficiados pela ação coletiva. Não nos parece razoável supor que a Lei nº 11.448/2007 pretendia que a Defensoria Pública pudesse patrocinar ações coletivas sem que um único necessitado fosse beneficiado, em face da sua função constitucional.

De qualquer maneira, a Defensoria Pública tem legitimidade em ações coletivas nas quais represente interesses de colegitimados economicamente necessitados, inclusive associações, como é o caso de julgado do STJ que transcrevemos.

Da mesma forma, entendemos ser plausível que esse órgão patrocine ações coletivas em prol de uma massa de consumidores mesmo se alguns deles não forem necessitados, desde que haja ao menos a possibilidade de outros o serem. Assim, não podemos negar à Defensoria Pública a propositura de ações coletivas tutelando direitos difusos, pois os consumidores beneficiados nem sequer podem ser determinados, e, portanto, jamais saberemos se há ou não necessitados dentre os favorecidos pela medida.

Mesmo em ações a respeito de direitos coletivos stricto sensu e direitos individuais homogêneos, se houver dúvida sobre a existência de necessitados entre os consumidores beneficiados, apoiamos a legitimidade ativa da Defensoria Pública. Diante dos princípios da efetividade e do acesso à justiça, realmente não faria sentido extinguir ações coletivas apenas por conta de uma dúvida, inclusive porque provavelmente o fato de haver consumidores não necessitados dentre aqueles protegidos não causará maior complexidade ou lentidão no trâmite processual.

Todavia, parece-nos claro que a Defensoria Pública não tem legitimidade para propor ações em que os únicos beneficiados não sejam necessitados, como uma ação coletiva contra determinada montadora de automóveis de luxo, com base no fato de alguns dos itens dos veículos adquiridos não estarem em conformidade com a publicidade veiculada. Naturalmente, não vislumbramos óbices a que associações e até o Ministério Público sejam autores de uma lide como essa, mas não a Defensoria Pública, pois aí sim haveria abuso de suas funções constitucionais.122

122 A propósito, em artigo intitulado “A inconstitucionalidade da Lei nº 11.448/2007”, publicado pela Associação

Nacional de Membros do Ministério Público, os promotores do Rio Grande do Sul Karin Sohne Genz e Julio Cesar Finger utilizam outro julgamento do STF para apontar a necessidade de a Defensoria Pública vincular-se a sua função de auxílio aos necessitados. Nele, indica-se a inconstitucionalidade do dispositivo legal acerca da possibilidade de a Defensoria Pública, com atribuição do encargo do Estado (previsto no artigo 45 da Constituição Estadual Gaúcha), defender os servidores públicos estaduais processados civil e criminalmente em razão de regular exercício do cargo. Para tanto, utilizam excertos do voto condutor do Ministro Joaquim Barbosa:

“Sr. Presidente, o art. 134 da Constituição Federal é claro ao restringir a finalidade institucional da Defensoria Pública à orientação jurídica e defesa dos necessitados, clareza essa reforçada pela remissão desse dispositivo ao art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, o qual impõe ao Estado o dever de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. (...) A meu ver, porém, não basta a afirmação de que o Constituinte estadual se desviou das referências da Carta Magna. É necessário também ressaltar que, ao alargar as atribuições da Defensoria estadual, ele – o Constituinte estadual - extrapolou o modelo institucional preconizado pelo Constituinte de 1988. É de se indagar em que extensão essa extrapolação viola o modelo federal. Pode-se argumentar que em nada a assistência jurídica gratuita tenha sido prejudicada pelo acréscimo de atribuições contido na legislação gaúcha. Mas entendo, Sr. Presidente, que a atribuição de quaisquer outras

No documento Felipe Evaristo dos Santos Galea (páginas 82-87)