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Proibição da prova ilícita

No documento Felipe Evaristo dos Santos Galea (páginas 123-127)

4 A ATUAÇÃO DO JUIZ PELA EFETIVIDADE DAS AÇÕES COLETIVAS

4.1 Princípios norteadores da função jurisdicional em ações coletivas

4.1.2 Princípios fundamentais

4.1.2.6 Proibição da prova ilícita

O princípio da proibição da prova ilícita está previsto no artigo 5º, LVI, da Constituição da República, e implica o não reconhecimento da prova obtida dessa forma e, pela teoria dos frutos da árvore envenenada, também das provas decorrentes daquela originalmente ilícita179.

176 “Art. 262. O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial.”

177 “Art. 2º Salvo exceções previstas em lei, o processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por

impulso oficial.”

178 WAMBIER, Luiz Rodrigues, TALAMINI, Eduardo e ALMEIDA, Flávio Renato Correia de. Curso

avançado de direito processual civil. v.1. teoria geral do processo e processo de conhecimento. 10.ed.revista, atualizada e ampliada. Coordenador Luiz Rodrigues Wambier. São Paulo: RT, 2008, p. 83.

179 Embora os tribunais brasileiros prestigiem a teoria dos frutos da árvore envenenada, vale ressaltar que, em

determinadas circunstâncias, as provas teoricamente lícitas decorrentes de uma outra ilicitamente produzida podem ser admitidas quando se conclua que se teria acesso a elas inevitavelmente, por outros meios lícitos. A esse respeito, veja-se julgado do STF: “HABEAS CORPUS. NULIDADES: (1) INÉPCIA DA DENÚNCIA; (2) ILICITUDE DA PROVA PRODUZIDA DURANTE O INQUÉRITO POLICIAL; VIOLAÇÃO DE REGISTROS TELEFÔNICOS DO CORRÉU, EXECUTOR DO CRIME, SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL; (3) ILICITUDE DA PROVA DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS DE CONVERSAS DOS ACUSADOS COM ADVOGADOS, PORQUANTO ESSAS GRAVAÇÕES OFENDERIAM O DISPOSTO NO

Evidentemente, não se deve estimular a produção de prova por (ou decorrente de) meios ilícitos ou a reprodução destas em qualquer tipo de processo, de forma que doutrina180 e jurisprudência181, em regra, apoiam este princípio constitucional. Todavia, em

ART. 7º, II, DA LEI 8.906/96, QUE GARANTE O SIGILO DESSAS CONVERSAS. VÍCIOS NÃO CARACTERIZADOS. ORDEM DENEGADA. 1. Inépcia da denúncia. Improcedência. Preenchimento dos requisitos do art. 41 do CPP. A denúncia narra, de forma pormenorizada, os fatos e as circunstâncias. Pretensas omissões – nomes completos de outras vítimas, relacionadas a fatos que não constituem objeto da imputação –- não importam em prejuízo à defesa. 2. Ilicitude da prova produzida durante o inquérito policial - violação de registros telefônicos de corréu, executor do crime, sem autorização judicial. 2.1 Suposta ilegalidade decorrente do fato de os policiais, após a prisão em flagrante do corréu, terem realizado a análise dos últimos registros telefônicos dos dois aparelhos celulares apreendidos. Não ocorrência. 2.2 Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode interpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no sentido de proteção aos dados enquanto registro, depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e não dos dados. 2.3 Art. 6º do CPP: dever da autoridade policial de proceder à coleta do material comprobatório da prática da infração penal. Ao proceder à pesquisa na agenda eletrônica dos aparelhos devidamente apreendidos, meio material indireto de prova, a autoridade policial, cumprindo o seu mister, buscou, unicamente, colher elementos de informação hábeis a esclarecer a autoria e a materialidade do delito (dessa análise logrou encontrar ligações entre o executor do homicídio e o ora paciente). Verificação que permitiu a orientação inicial da linha investigatória a ser adotada, bem como possibilitou concluir que os aparelhos seriam relevantes para a investigação. 2.4 À guisa de mera argumentação, mesmo que se pudesse reputar a prova produzida como ilícita e as demais, ilícitas por derivação, nos termos da teoria dos frutos da árvore venenosa (fruit of the poisonous tree), é certo que, ainda assim, melhor sorte não assistiria à defesa. É que, na hipótese, não há que se falar em prova ilícita por derivação. Nos termos da teoria da descoberta inevitável, construída pela Suprema Corte norte-americana no caso Nix x Williams (1984), o curso normal das investigações conduziria a elementos informativos que vinculariam os pacientes ao fato investigado. Bases desse entendimento que parecem ter encontrado guarida no ordenamento jurídico pátrio com o advento da Lei 11.690/2008, que deu nova redação ao art. 157 do CPP, em especial o seu § 2º. 3. Ilicitude da prova das interceptações telefônicas de conversas dos acusados com advogados, ao argumento de que essas gravações ofenderiam o disposto no art. 7º, II, da Lei n. 8.906/96, que garante o sigilo dessas conversas. 3.1 Nos termos do art. 7º, II, da Lei 8.906/94, o Estatuto da Advocacia garante ao advogado a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia. 3.2 Na hipótese, o magistrado de primeiro grau, por reputar necessária a realização da prova, determinou, de forma fundamentada, a interceptação telefônica direcionada às pessoas investigadas, não tendo, em momento algum, ordenado a devassa das linhas telefônicas dos advogados dos pacientes. Mitigação que pode, eventualmente, burlar a proteção jurídica. 3.3 Sucede que, no curso da execução da medida, os diálogos travados entre o paciente e o advogado do corréu acabaram, de maneira automática, interceptados, aliás, como qualquer outra conversa direcionada ao ramal do paciente. Inexistência, no caso, de relação jurídica cliente-advogado. 3.4 Não cabe aos policiais executores da medida proceder a uma espécie de filtragem das escutas interceptadas. A impossibilidade desse filtro atua, inclusive, como verdadeira garantia ao cidadão, porquanto retira da esfera de arbítrio da polícia escolher o que é ou não conveniente ser interceptado e gravado. Valoração, e eventual exclusão, que cabe ao magistrado a quem a prova é dirigida. 4. Ordem denegada.” (STF, HC 91867, Rel.Ministro GILMAR MENDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-185 DIVULG 19-09-2012 PUBLIC 20-09- 2012)

180 “A proibição de se admitir, no processo, provas obtidas por meios ilícitos se harmoniza com a exigência de

um processo contraditório, em que se assegure ampla defesa, porque falecerá à vítima do ilícito a oportunidade de contestá-las eficazmente. O direito de ampla defesa envolve, sem dúvida, a faculdade de o acusado escapar a provas que o comprometam. A obtenção ilícita de uma prova tem implicações éticas e fere a exigência de seriedade e de lealdade processual” (SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 5.ed. de acordo com a Emenda Constitucional 56, de 19.12.2007. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 155).

181 “Habeas Corpus. 2. Quebra de sigilo bancário e telefônico. Alegação de que as decisões proferidas pelo

magistrado de primeiro grau não foram devidamente motivadas, por terem apresentado mera menção às razões expostas pelo Parquet. 3. Ausência de decisão com fundamentos idôneos para fazer ceder a uma excepcional situação de restrição de um direito ou garantia constitucional. 4. Prova ilícita, sem eficácia jurídica. Desentranhamento dos autos. 5. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nesta parte, deferido.” (STF, HC

casos excepcionalmente graves, considerando o princípio da máxima efetividade do processo coletivo e a necessidade da busca da verdade real dos fatos envolvidos na lide, inclusive por imposição do interesse social, entendemos que a prova ilícita não deve ser descartada de plano nas ações coletivas (e nem mesmo nas ações individuais, em certas situações, as quais não aprofundaremos neste estudo por não serem o objeto de pesquisa).

Antes de a prova produzida ilicitamente ser desconsiderada, precisa haver uma rigorosa análise, por parte do magistrado, da gravidade dos fatos que aquela auxilia a esclarecer. O juiz deverá, à luz do princípio da proporcionalidade (amplamente aceito pela doutrina e pela jurisprudência, nesse contexto), sopesar os direitos fundamentais em jogo e decidir qual deles merece ser prestigiado, avaliando a garantia constitucional da proibição da prova ilícita à luz do direito coletivo do consumidor ferido ou ameaçado.

Imaginemos uma ação coletiva movida contra uma empresa alimentícia, com o propósito de que esta cesse a utilização de determinada substância nos alimentos destinados ao consumo infantil (no leite em pó para recém-nascidos, por exemplo). O autor colegitimado alega que tal substância tem alto potencial cancerígeno, o que o fornecedor do produto refuta com veemência. Nesse contexto, um funcionário da empresa ré clandestinamente recolhe na indústria amostras da substância que seria misturada ao leite em pó, e essas amostras são isoladamente analisadas em laboratórios que confirmam a suposição do autor, ou seja, o seu consumo pode causar danos irreversíveis à saúde dos recém-nascidos.

O juiz, então, deverá sopesar a proibição da prova ilicitamente obtida (dado que oriunda de um potencial ato de furto da substância da indústria pelo funcionário) à luz do direito básico do consumidor (artigo 6º, I do CDC) e de qualquer ser humano à proteção da vida, da saúde e da segurança, nesse caso contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.

Nesse caso hipotético, certamente ninguém duvidará de que a prova ilicitamente produzida não pode ser simplesmente descartada pelo julgador, sacrificando direitos tão fundamentais dos consumidores, mas, ao contrário, contribuirá para determinar a cessação da prática ilícita pelo fornecedor. Outras situações podem levar à mesma conclusão, ainda que não sejam tão extremadas como propositalmente elegemos para ilustrar a situação.

Essa função jurisdicional deve ser realizada com ainda mais cautela nos processos coletivos, nos quais o impulso oficial merece ser elevado ao seu grau máximo, em

96056, Rel. Ministro GILMAR MENDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/06/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-089 DIVULG 07-05-2012 PUBLIC 08-05-2012 RT v. 101, n. 922, 2012, p. 710-718)

virtude do interesse social envolvido, de forma que, em prol da efetividade e sopesados os interesses apresentados na demanda, o magistrado deve razoavelmente decidir se aceitará ou não determinada prova.

Mesmo quando a prova ilícita for admitida no processo, à luz do princípio da proporcionalidade, é preciso que as autoridades competentes investiguem e, se for o caso, punam civil e criminalmente aqueles que ilegalmente produziram a prova, como forma de manter o Estado de Direito e evitar a banalização dessa conduta sob o argumento muitas vezes falacioso de que os fins justificam os meios. Mas é possível que, no contexto de um processo civil ou criminal contra os autores da prova ilícita ou os que participaram desta, ou então contra os autores da conduta provada por um meio inicialmente considerado ilícito, entenda-se que nem sequer houve ilicitude na produção da prova.

Com efeito, Alexandre de Morais ensina que

as liberdades públicas não podem ser utilizadas como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Dessa forma, aqueles que ao praticarem atos ilícitos inobservarem as liberdades públicas de terceiras pessoas e da própria sociedade, desrespeitando a própria dignidade da pessoa humana, não poderão invocar, posteriormente, a ilicitude de determinadas provas para afastar suas responsabilidades civil e criminal perante o Estado182.

Em função disso, aponta ainda que, no caso de desrespeito aos direitos humanos fundamentais, a ilicitude na colheita da prova pode ser afastada, por ter sido produzida em legítima defesa, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

‘Habeas corpus’. Utilização de gravação de conversa telefônica feita por terceiro com a autorização de um dos interlocutores sem o conhecimento do outro quando há, para essa utilização, excludente da antijuridicidade. - Afastada a ilicitude de tal conduta - a de, por legítima defesa, fazer gravar e divulgar conversa telefônica ainda que não haja o conhecimento do terceiro que está praticando crime -, é ela, por via de conseqüência, lícita e, também conseqüentemente, essa gravação não pode ser tida como prova ilícita, para invocar-se o artigo 5º, LVI, da Constituição com fundamento em que houve violação da intimidade (art. 5º, X, da Carta Magna). "Habeas corpus" indeferido. (STF, HC 74678, Rel. Ministro MOREIRA ALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/06/1997, DJ 15-08-1997 PP-37036 EMENT VOL- 01878-02 PP-00232).

182 MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 28.ed. revista e atualizada até a EC No. 68/11 e súmula

Portanto, o fato de a prova ter sido produzida ilicitamente não significa que simplesmente não poderá ser considerada pelo julgador da ação coletiva, que deverá analisar concretamente a situação dos autos para proferir uma decisão razoável e baseada no princípio da proporcionalidade.

No documento Felipe Evaristo dos Santos Galea (páginas 123-127)