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Origem e desenvolvimento das ações coletivas

No documento Felipe Evaristo dos Santos Galea (páginas 43-49)

2 A EFETIVIDADE NAS AÇÕES COLETIVAS

2.1 Origem e desenvolvimento das ações coletivas

O surgimento das ações coletivas remonta a duas fontes principais: primeiramente, o reconhecido antecedente romano da ação popular em defesa das rei sacrae, rei publicae, em que os cidadãos, imbuídos dos sentimentos de defesa da república (que tinham noção de a eles pertencer) e de responsabilidade sobre os bens públicos, buscavam a proteção da coisa pública; em segundo lugar, as ações coletivas das classes, antiga prática judiciária anglo-saxã que teria antecedido as atuais class actions americanas e a evolução das ações coletivas do Brasil, tão acostumado à visão individualista dos direitos e do processo54.

53 Dada a relevância dos conceitos para este trabalho, vale transcrever o citado dispositivo legal: “Art. 81. A

defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”

54 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. Processo Coletivo. v.4.7.ed.

O antecedente romano também é lembrado por Rodolfo de Camargo Mancuso55, que destaca a actio popularis para a proteção da coisa pública (de certa forma confundida com a particular) entre ações de uma cultura jurídica e processual eminentemente individualista, e que relegava ao Estado tudo o que ultrapassasse a órbita direta e pessoal dos particulares.

Após a queda do Império Romano, não parece haver convincentes indícios da prática de ações coletivas na Idade Média, aponta o doutrinador, ao indicar que apenas medidas mais tímidas são referidas no período até meados do século XIX, quando a nova organização social, resultante de fatores como a sindicalização e a revolução industrial criavam um ambiente mais propício para as ações coletivas e fez surgirem as class actions do direito norte-americano, com uma primeira regulamentação em 1842, a que se seguiram alterações em 1938 e 1966.

No Brasil, embora a Constituição da República de 1934 pela primeira vez fizesse referência à ação popular, objeto de lei específica em 1965 (Lei nº 4.717), Sérgio Seiji Shimura56 aponta que somente com o advento da Lei nº 7.347/1985

se instituiu um instrumento processual mais vigoroso, abrangente e eficaz no combate à lesão dos direitos coletivos lato sensu, disciplinando a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, por infração à ordem econômica e urbanística, assim como a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

O instrumento da ação civil pública57 foi reforçado em 1988 com a promulgação da vigente Constituição da República, que não apenas expressamente se referiu a ela no artigo 129, III, como também atribuiu legitimidade ao Ministério Público para promovê-la na defesa de interesses difusos e coletivos. A Carta ainda instituiu no artigo 5º, LXX, o mandado de segurança coletivo, corroborando a defesa coletiva de direitos, e conferiu, nos artigos 5º, XXI e 8º, III, legitimidade às associações e sindicatos para a defesa de interesses de seus respectivos associados e filiados.

55 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada. São Paulo: RT, 2006, p.23-28. 56 SHIMURA, Sérgio Seiji. Tutela coletiva e sua efetividade. São Paulo: Método, 2006, p.20.

57 Segundo a lição de José dos Santos Carvalho Filho, na expressão ação civil pública não se identifica

propriamente a pretensão que constitui o seu objeto. O adjetivo civil serve apenas para distingui-la da ação penal, e o adjetivo pública funciona para permitir sua deflagração por órgão do próprio Estado, como o Ministério Público (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública. 3.ed. revista, ampliada e atualizada – comentários por artigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.2-3).

Com a promulgação da Lei nº 8078/1990, o Código de Defesa do Consumidor, o instituto das ações coletivas ganhou contornos detalhados com a inclusão do Título III – Da Defesa do Consumidor em Juízo que, além de conceituar direitos ou interesses difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, estabeleceu a legitimidade ativa para as ações, previu amplas espécies de ações tutelando o direito do consumidor, esclareceu regras de competência e execução de sentenças e ainda especificou o instituto da coisa julgada nas ações coletivas.

Ou seja, o Código de Defesa do Consumidor transformou-se em ferramenta de estabelecimento de igualdade entre os dois polos da relação de consumo, levando em conta a fragilidade do consumidor e a necessidade de garantia de seu acesso à justiça. Segundo Ada Pellegrini Grinover, na época da promulgação desse código:

Exigia-se, de um lado, o fortalecimento da posição do consumidor em juízo – até agora pulverizada, isolada, enfraquecida perante a parte contrária que não é, como ele, um litigante meramente eventual – postulando um novo enfoque da par conditio e do equilíbrio das partes, que não fossem garantidos no plano meramente formal; e, de outro lado, fazia-se necessária a criação de novas técnicas que, ampliando o arsenal de ações coletivas previstas pelo ordenamento, realmente representassem a desobstrução do acesso à justiça e o tratamento coletivo de pretensões individuais que isolada e fragmentariamente poucas condições teriam de adequada condução58. Estava definitivamente mitigada, portanto, a visão individualista do direito processual civil.

Somando essas alterações às maiores possibilidades de propositura de ações de controle concentrado de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade) e de arguições de descumprimento de preceito fundamental (regulamentada pela Lei nº 9.882/1999), além de relembrar as constantes modificações do Código de Processo Civil a partir de 1994, Teori Albino Zavascki classifica os mecanismos de tutela jurisdicional em três grandes grupos:

(a) mecanismos para tutela de direitos subjetivos individuais, subdivididos entre (a.1) os destinados a tutelá-los individualmente pelo seu próprio titular (disciplinados, basicamente, no Código de Processo Civil) e (a.2) os destinados a tutelar coletivamente os direitos individuais, em regime de substituição processual (as ações civis coletivas, nelas compreendido o mandado de segurança coletivo);

58 GRINOVER, Ada Pellegrini. O Código de Defesa do Consumidor no sistema socioeconômico brasileiro. In:

(b) mecanismos para tutela de direitos transindividuais, isto é, direitos pertencentes a grupos ou a classes de pessoas indeterminadas (ações coletivas); e

(c) instrumentos para tutela da ordem jurídica, abstratamente considerada, representados pelos vários mecanismos de controle de constitucionalidade dos preceitos normativos e das omissões legislativas59.

E segue o doutrinador, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal:

Bem se vê, mesmo a um primeiro olhar sobre esse modelo classificatório da tutela jurisdicional, que, à medida que se passa de um para outro dos grupos de instrumentos processuais hoje oferecidos pelo sistema do processo civil, maior ênfase se dá à solução dos conflitos em sua dimensão coletiva. É o reflexo dos novos tempos, marcados por relações cada vez mais impessoais e mais coletivizadas. O conjunto de instrumentos hoje existentes para essas novas formas de tutela jurisdicional, decorrentes da primeira onda de reformas, constitui, certamente, um subsistema processual bem caracterizado, que se pode, genérica e sinteticamente, denominar de processo coletivo. Mas, sem a tradição dos mecanismos da tutela individual dos direitos subjetivos, os instrumentos de tutela coletiva, trazidos por leis extravagantes, ainda passam por fase de adaptação e de acomodação, suscitando, por isso mesmo, muitas controvérsias interpretativas. O tempo, a experimentação, o estudo e, eventualmente, os ajustes legislativos necessários sem dúvida farão dos mecanismos de tutela coletiva uma via serena de aperfeiçoamento da prestação da tutela jurisdicional.

A evolução dos mecanismos de proteção dos direitos coletivos nada mais é do que um reflexo da evolução dos direitos individuais para os sociais, dentre os quais estão incluídos os direitos do consumidor. Conforme ensina Galeno Lacerda60, essa abertura para o social supera, em definitivo, a formação individualista que sempre caracterizou a cultura jurídica da Europa continental, com reflexo geral nas instituições brasileiras.

Nisso, sem dúvida, estava presente a marca indelével do Direito Romano, insculpida logo ao umbral das Institutas: ‘Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere’ (Inst., pr. § 3º)....Ocorre que as exigências da vida moderna foram rompendo as barreiras do conservadorismo jurídico. No momento em que os homens passaram a conviver numa sociedade de massas, muitas das regras básicas do relacionamento perderam sentido (...)

59 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo. Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos.

5.ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2011, p. 21.

60 LACERDA, Galeno. Eficácia da prestação jurisdicional no atendimento às demandas sociais. Revista da

Realmente, os contratos foram se desumanizando ao longo do tempo (para usar um termo talhado por Giorgio Oppo61). A sociedade se massificou e passou a demandar formas diferenciadas de proteção jurídica e atuação do Estado. Em decorrência da fabricação em série, característica da indústria contemporânea, observou-se uma crescente desindividualização não só dos produtos, tornados genéricos (e não tipificados), como também do adquirente, que se transformou em um consumidor anônimo. Daí a insuficiência das técnicas concebidas pela ordem jurídica para enfrentar o fenômeno da produção e do consumo em massa. 62

Mauro Cappelletti e Bryant Garth classificam como uma das “ondas” do movimento de acesso efetivo à justiça, a partir especialmente da década de 1960 nos Estados Unidos, as providências para a defesa dos interesses difusos, que forçou a reflexão sobre o papel dos tribunais, apontada como uma revolução no processo civil. Explicam eles:

A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares 63.

Dentre tais direitos difusos e coletivos, as normas de proteção dos direitos do consumidor estabelecidas na Lei nº 8078/90 são tão relevantes que Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery defendem a natureza principiológica desta, explicando:

Não é lei geral nem lei especial. Estabelece os fundamentos sobre os quais se erige a relação jurídica de consumo, de modo que toda e qualquer relação de consumo deve submeter-se à principiologia do CDC...Como o CDC não é lei geral, havendo conflito aparente entre suas normas e a de alguma lei especial, não se aplica o princípio da especialidade (lex specialis derrogat generalis): prevalece a regra principiológica do CDC sobre a lei especial que o desrespeitou. Caso algum setor queira mudar as regras do jogo, terá de fazer modificações no CDC e não criar lei à parte, desrespeitando as regras

61 OPPO, Giorgio. Disumanizzazione del contratto? Rivista di Diritto Civile. anno XLIV, 1998, Parte Prima.

Padova: CEDAM – Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1998, p.525.

62 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. As relações de consumo e o crédito ao consumidor. In: Aspectos

polêmicos da ação civil pública. Coordenador Arnoldo Wald. São Paulo: Saraiva, 2003, p.258.

63 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto

principiológicas fundamentais das relações de consumo, estatuídas no CDC64.

Tendo em vista a crescente massificação dos direitos e da sociedade, de um lado, e a carência de normatização mais abrangente sobre processos coletivos, por outro lado, a legislação a respeito de ações coletivas tende a continuar evoluindo, ainda que com certa lentidão, infelizmente natural para institutos que quebram paradigmas, mesmo em prol de motivos nobres como aqueles que decorrem das ações coletivas.

Está em trâmite, desde 2009, na Câmara do Deputados, o projeto de lei nº 5139/2009, oriundo do Anteprojeto do Código Brasileiro de Processo Coletivo, com o objetivo de aperfeiçoar o instituto das ações coletivas, unificando os dispositivos sobre o assunto, inclusive mediante a revogação da LACP e a modificação em parte do CDC.

Conforme a exposição de motivos do então Ministro da Justiça, Tarso Genro65, o anteprojeto tem por objetivo ser uma adequação às significativas e profundas transformações econômicas, políticas, tecnológicas e culturais em âmbito global, substancialmente aceleradas no século XX, para prever a proteção de direitos que dizem respeito à cidadania, mas que não estão plenamente protegidos pela LACP e pelo Código de Processo Civil de 1973. Este último está fundado na concepção do liberalismo individualista, que não responde ao estágio de evolução jurídico-científica e ao alto grau de complexidade e especialização exigidos para disciplinar os direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos.

O projeto foi apreciado pela comissão de constituição e justiça e considerado constitucional, mas, no mérito, foi rejeitado. Conforme extraímos do parecer vencedor

64 Dentre os princípios fundamentais inderrogáveis do CDC, os professores em questão exemplificam os

seguintes: “a) equidade e equilíbrio nas relações de consumo (CDC 4º III); b) boa-fé objetiva (CDC 4º III); c) revisão de cláusula ou do contrato de consumo (CDC 6º V); d) responsabilidade objetiva pela reparação dos danos patrimoniais, morais, individuais, coletivos e difusos (CDC 6º VI); e) proteção contra publicidade ilegal (enganosa e abusiva) (CDC 37); f) proteção contra práticas comerciais abusivas (CDC 6º IV, 39 e 44); g) proteção contratual integral (CDC 46); h) proteção contra cláusulas abusivas (CDC 6º e 51); i) acesso à ordem jurídica justa, individual ou coletivamente (CDC 81 caput); j) facilitação da defesa do consumidor em juízo (CDC 6º VIII); l) prerrogativa de propor e de responder ação em seu domicílio (CDC 6º VIII); m) benefício da coisa julgada erga omnes ou ultra partes, sempre in utilibus, independentemente de rol de beneficiados, do lugar de seu domicílio ou da competência territorial do juiz (CDC 103)...” (NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. 2.ed. São Paulo: RT, 2003, p. 181).

65 Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=651669&filename=Tramitacao- PL+5139/2009>. Acesso em: 28 jul. 2013.

daquela comissão66, de 17.3.2010, o legislador resiste a conferir ao magistrado maior poder no controle das ações coletivas:

A proposta cria processo em que o réu recebe tratamento desigual de um juiz que terá liberdade para tomar partido sempre e somente em favor do autor, inclusive alterando a ordem das fases processuais, e concedendo liminares (e antecipações de tutela) sem que o autor as tenha pedido e sem que tenha sido dada oportunidade de defesa ao réu (...) A ação poderá seguir seu curso mesmo que o pedido do autor e o motivo de ele ter ido a juízo não tenham sustentação técnica, jurídica ou factual: o juiz pode chamar alguém para entrar no lugar dele e procurar outro motivo e outro pedido para continuar com a demanda.

Mais recentemente, em 2012, passou a tramitar no Senado Federal o projeto de lei nº 282 (PLS 282/2012), que visa a alterar o CDC para aperfeiçoar a disciplina das ações coletivas em diversos aspectos, aos quais faremos referência ao longo desta dissertação.

Nesse contexto, nossa pesquisa visa contribuir para as discussões sobre a aplicação dos mecanismos de tutela coletiva como forma de proteção e busca da efetividade do direito do consumidor, sob o enfoque de um fundamental agente do processo: o magistrado, a quem é confiado julgar causas com enorme repercussão tais quais as ações coletivas.

Proporemos regras gerais de atuação do juiz e também medidas específicas que estes já estão aptos a praticar, mas que certamente sofreriam um reforço caso os referidos projetos de lei ou outros semelhantes fossem aprovados.

No documento Felipe Evaristo dos Santos Galea (páginas 43-49)