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3 A UNIÃO EUROPEIA E AS RELAÇÕES INTER-REGIONAIS E O MERCOSUL

3.2 O posicionamento da União Europeia no Mundo – que tipo de poder?

Para se analisar o posicionamento da UE no cenário global, ou ainda, qual o tipo de poder 54 que esta exerce no mesmo, é preciso ter em conta algumas características peculiares da UE, entre as quais a complexa estrutura de sua política externa, como visto na Seção anterior, baseada na estrutura dos três pilares, envolvendo diferentes políticas, processos decisórios e atores.

No contexto desta complexa estrutura, torna-se, por vezes, difícil a análise do posicionamento da UE no cenário internacional, principalmente nos acontecimentos de crise, como ilustrou o episódio do Iraque, em 2003, quando houve uma divisão entre os Estados-membros da UE quanto ao apoio à decisão dos EUA de invadirem aquele país. Neste episódio, por exemplo, Alemanha e França se posicionaram contra a decisão norte-americana e Espanha e Inglaterra a favor. A falta de coesão interna entre os Estados-membros, em alguns casos como este, por exemplo, ilustra a dificuldade da UE em agir - e ser percebida internacionalmente - como um Estado único, a uma só voz, principalmente quando comparada aos EUA.55

Ao se tomar como referência o episódio anteriormente citado, poder- se-ia deduzir que a UE ocupa uma posição secundária em relação aos Estados Unidos na cena internacional. Com efeito, Marsh e Mackenstein (2005), ao se referirem ao episódio do Iraque, argumentam que quando olhamos para a UE no sistema global, por vezes é fácil, especialmente durante os períodos de crise, como já referido, sermos “seduzidos” pela mídia sobre o grande poder dos EUA e a fraqueza internacional da UE.

54 Segundo Nogueira e Messari (2005), coexistem várias definições de poder nas Relações Internacionais, sendo que alguns autores o definem como a soma das capacidades do Estado em termos políticos, militares, econômicos e tecnológicos, enquanto outros estabelecem uma definição de poder em termos relativos, ao definirem o poder de um Estado em relação aos demais Estados com os quais compete. Outros autores, como Waltz (1979), afirmam ainda que o poder é a capacidade de influenciar o sistema internacional, mais do que ser influenciado por ele e defini o poder como um meio para garantir sua segurança e a sobrevivência. Para uma completa discussão sobre o poder e suas definições ver Nogueira e Messari (2005, p. 28-31).

55 Esta dificuldade deve ser contextualizada na estrutura dos três pilares, como visto na Seção 3.1. Isso significa que as decisões relativas à política externa são tomadas no âmbito do segundo pilar e requer a cooperação entre seus Estados-membros. Neste caso, é necessária a coordenação de 27 países (EMs) sobre qual posição a ser tomada e, portanto, não é difícil prever a dificuldade inerente deste processo decisório.

Contudo, é preciso igualmente ter em conta as diferentes dimensões do poder para se analisar o posicionamento da UE no mundo (consoante a dimensão em questão). Usualmente, as dimensões do poder estão associadas às capacidades militares e econômicas dos Estados, principalmente às capacidades militares (aqui referida aqui como Hard Power), entretanto, há outras dimensões que igualmente devem ser tomadas em conta, como o poder de persuasão e a atração dos Estados (Soft Power).56

Do ponto de vista econômico a UE pode ser considerada como um superpoder devido, igualmente, ao seu peso econômico no comércio mundial e à crescente importância que vem assumindo sua moeda comum (o Euro) (HILL E SMITH, 2005). Por exemplo, como visto no Capítulo 1 (Tabela 1), a UE possuía, em 2003, 21,3% do Mercado Mundial, enquanto os EUA possuíam 10,5% e o Japão 10.5%. Em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), a UE, em 2003, igualmente estava entre os três maiores PIB mundiais, com 26,5% do PIB global, seguida pelo Japão, com 12,3%, mas abaixo ainda dos EUA, com 32,3% (MARSH; MACKENSTEIN, 2005). No que se refere ao IDE, como igualmente visto no Capítulo 1, entre 2002 e 2004, a UE representou 32% do FDI global, enquanto os EUA 38%. Ainda que os EUA sejam considerados como a primeira potência econômica mundial,57 não se pode deixar de reconhecer a UE igualmente como uma grande potência neste aspecto.

Do ponto de vista militar (Hard Power) a perspectiva é diferente, ou seja, nesse aspecto os EUA permanecem reconhecidamente como potência militar no cenário internacional, sem a concorrência direta da UE, por assim dizer. Segundo

56 O conceito de Soft Power (poder brando) em oposição ao conceito de Hard Power (poder duro) foi introduzido por Joseph Nye, em meados da década de 1980, ao analisar a política externa dos Estados Unidos. Para NYE (2004) no centro do conceito de Soft Power estão as capacidades de um país de persuasão e atração. Soft Power is the ability to get what you want through attraction rather than coercion or payments.

It arises from the attractiveness of a country’s culture, political ideals, and policies. When our policies are seen as legitimate in the eyes of others, our soft power is enhanced”. Em oposição ao Soft Power, encontra-se

o Hard Power que Nye não caracteriza como uma entidade única, ao contrário, o poder duro teria duas dimensões, econômica e militar. No que se refere à dimensão militar, o poder duro seria exercido pela diplomacia coercitiva, guerra e alianças e o uso de ameaças é uma constante. No que se refere à dimensão econômica, o poder duro seria aplicado por meio de políticas de apoio financeiro, suborno e sanções. Contudo, segundo HILL E SMITH (2005) o Hard Power está mais associado às capacidades militares dos Estados, e aqui adota-se esta perspectiva, ou seja, entende-se Hard Power quanto às capacidades militares dos Estados.

57 Os EUA se mantiveram como a maior potência econômica durante o período compreendido por esta pesquisa, 1990 a 2005. Não se discutirá aqui se a crise financeira iniciada no segundo semestre de 2008, nos EUA, colocará em questão o poder econômico deste país.

Hill e Smith (2005), há ainda um longo caminho a ser percorrido nas áreas de coordenação, gastos e tecnologia militares antes que a UE consiga atingir um nível de coordenação e autonomia, compatível com o seu tamanho e riqueza. Contudo, de acordo com os autores, a PESC e PESD têm evoluído com considerável velocidade. Inclusive, na Conferência de Cúpula de Saint Malo, em 1998, a UE decidiu que apenas possuir o Soft Power não seria mais suficiente, embora reconheça que alcançar uma notória capacidade militar levará ainda, pelo menos, uma geração (HILL e SMITH, 2005).58

Marsh e Mackenstein (2005), em uma visão mais otimista em relação às capacidades militares da UE, apontam alguns dados que exaltam tais capacidades, como o fato de que 19 dos 26 membros da OTAN correspondem aos EMs da UE ou, ainda, que em termos relativos alguns EMs continuam militarmente fortes e influentes no mercado global de armas, sendo que a França e a Inglaterra são reconhecidamente potências nucleares. Entretanto, ainda que as capacidades militares da UE tenham se desenvolvido ao longo do tempo, estas não são suficientes para caracterizá-la como uma potência nesta área, permanecendo certa distância entre suas capacidades econômicas e militares.

Há ainda outras dimensões de poder em que a UE se destaca. O conceito mais comumente utilizado para definir a política externa da UE é o de Civilian Power, originalmente popularizado por François Duchêne, no início dos anos 1970. A concepção de Duchêne sobre o Civilian Power da UE destaca nesta outros fatores de poder que não o militar, como por exemplo, a capacidade de utilizar a diplomacia para resolver conflitos e a concordância entre os Estados-membros em não impor sua visão empregando o uso da força. Smith (2003a) refere ainda o significado de civilian como “não-militar”, incluindo elementos de política econômica, cultural e diplomática.59

58 Em 1998, a Inglaterra mudou de atitude em relação à dimensão da política de defesa da UE e em dezembro daquele ano, conjuntamente com a França, foi assinada a declaração de Saint Malo, na qual destaca-se que a UE deve ser capaz de responder às crises internacionais por meio de ações autônomas, sustentada por críveis forças militares. Esta posição teve, inclusive, o apoio de EMs neutros, o que ilustra a insatisfação dos EMs da UE em relação à sua capacidade militar. Relevante ainda destacar que, mesmo sobre tal declaração, França e Inglaterra apresentaram divergências, pois a Inglaterra considerava que a UE deveria agir somente quanto a OTAN não quisesse agir, enquanto que para a França a OTAN não teria este papel principal. Contudo, ainda que houvesse divergências entre estes dois EMs, ambos pelo menos concordaram sobre a necessidade de desenvolver as capacidades militares da UE.

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Nota-se que não há consenso na literatura sobre o significado de Civilian Power, sendo o denominador comum, a ausência de força militar nesse tipo de poder.

Como analisado, embora a UE busque, cada vez mais, outras dimensões do poder, para além do Soft Power - como ilustrou o episódio de Saint Malo, e pelo objetivo crescente dos EMs em fortalecer a PESC -, o bloco continua a ser reconhecido como um Civilian Power. De acordo com Saraiva (2004), os Estados-membros da UE “desenvolveram entre si relações especiais e formas comuns de comportamento com vistas a alcançar objetivos e resolver disputas que escapam ao modelo de política de poder”. Ainda segundo a autora, “vis-à-vis o exterior, a UE atua como centro de difusão de princípios democráticos, dando prioridade a instrumentos econômico-comerciais e a atuações nos marcos multilaterais” (SARAIVA, 2004, p. 87).60

Outro tipo de poder, que se aplicaria exclusivamente à UE, foi recentemente introduzido por Mark Leonard (2005): o poder transformador. Segundo este autor, o poder transformador está relacionado à capacidade da UE em influenciar e “moldar” o mundo, e é medido não por meio de seus orçamentos militares ou tecnologias de guerra, mas antes por seus tratados, constituições e leis (e cita como exemplo a adesão dos países da Europa de Leste à UE e futuramente uma possível adesão da Turquia - sem que guerras militares fossem travadas - e os vários acordos/diálogos estabelecidos com diversas regiões entre as quais, com a América Latina e o Mercosul).

Pode-se igualmente exemplificar a execução desse tipo de poder “transformador” por meio do apoio que a UE prestou ao processo de integração do Mercosul, desde o seu início. Como será visto no Capítulo 4, a UE viu no Mercosul uma instituição similar, capaz de promover a democracia e o desenvolvimento regional, e entendeu que seu apoio seria importante para fortalecer e aprofundar o processo de integração deste bloco, quase que à sua semelhança.

Do ponto de vista das relações externas da UE com terceiros países, é notório o incremento de tais relações, e relembra-se que após a fase de instituição do mercado interno, o principal instrumento da política comercial da UE passou a ser constituído pelos acordos que ela celebra. (D’ARCY, 2002). De acordo com Smith

60 Inclusive, no sítio eletrônico da própria UE está referido que a base da política externa e de segurança comum da UE continua a ser o "poder suave", ou seja, o recurso à diplomacia, se necessário apoiada pelo comércio, ajuda e outras medidas, de forma a tentar resolver conflitos regionais ou locais e evitar a ocorrência de novos conflitos. Disponível em: < http://europa.eu/pol/cfsp/overview_pt.htm >. Acesso em: 13.2.2009.

(2003b), no início do século XXI, a UE já conduzia relações econômicas e políticas com quase todos os países ou regiões do globo (bilateralmente ou biregionalmente), para além de ter um papel preponderante nas negociações multilaterais de comércio da OMC. Nesse contexto, as relações com a América Latina e, posteriormente, com o Mercosul, tomaram um novo impulso, como se verá na Seção seguinte.