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O modelo tradicional de sistemas partidários e alinhamentos partidá- rios de Lipset e Rokkan (1967) sugere que, para a generalidade da Europa ocidental, estes se baseiam em linhas de clivagem históricas. Destas, des-

taca-se a clivagem da classe social, que no modelo de Lipset e Rokkan (1967, 14) representa essencialmente a oposição entre o trabalho e o ca- pital. Esta clivagem é vista, quer em Lipset e Rokkan, quer em trabalhos posteriores, como o de Bartolini e Mair (1990), como a clivagem univer- salizante na Europa ocidental. Assim, a divisão entre a esquerda e a di- reita, vista como «o grande conflito universal da política de massas mo- derna na Europa ocidental» (Bartolini e Mair 1990, 65), será um reflexo dos alinhamentos históricos na clivagem da classe social.

O modelo de Lipset e Rokkan deixou de gerar consenso a partir da década de 70, reflexo da crescente volatilidade eleitoral (pelo menos a nível individual dos partidos) e aparente desalinhamento partidário, e na sua sequência têm surgido (ou sido reabilitados) modelos alternativos do comportamento eleitoral. Alguns autores apontam assim para um comportamento eleitoral crescentemente desancorado das estruturas so- ciais, com o voto a ser reflexo da avaliação de temas políticos, da con- juntura económica ou da avaliação que os eleitores fazem dos líderes partidários (por exemplo, Borre 2001, Lewis-Beck 1988 e Dalton 2002; para uma análise crítica, v. Aardal e van Wijnen 2005, Listhaug 2005 e Curtice e Holmberg 2005; para o caso português, v. Freire e Lobo 2003, Freire 2004 e Lobo 2004). Outros autores reabilitam o argumento central do modelo sociológico do voto de Lipset e Rokkan (e do modelo sócio- -psicológico, que é, de certa forma, um seu descendente directo), mas sugerem uma alteração na estruturação social e nos valores dominantes. Assim, para Inglehart (1977 e 1990), as atitudes políticas (e, consequen- temente, também o comportamento eleitoral) seriam crescentemente pautadas pelas oposições geradas pela «silenciosa» revolução pós-mate- rialista, cuja mudança de valores é também reflexo de transformações sociais e políticas seculares (maiores níveis educacionais, maior segurança e declínio da participação religiosa, inter alia). Esta ideia geral é poste- riormente adaptada e revista por outros autores, gerando a ideia de uma clivagem entre «nova esquerda» e «nova direita» (Dalton 1996, 332-333) ou de «guerras culturais» (culture wars) entre «autoritários» e «liberais» (Flanagan e Lee 2003).

A força explicativa destes modelos alternativos está longe de ser idêntica e a diferença do seu peso é acentuada quando temos em conta a diversi- dade de padrões de comportamento eleitoral em democracias. De igual modo, vários autores têm argumentado contra a noção de uma irrelevância das clivagens sociais, quer em termos da clivagem da classe social (Evans 1999a e 1999b; Weakliem e Heath 1999a e 1999b; Hout, Brooks e Manza 2001; Weakliem 2001), quer da clivagem religiosa (Montero e Calvo 2000).

Aliás, é importante salientar que já Lipset e Rokkan (1967) tinham re- conhecido as limitações contextuais do seu modelo explicativo, apon- tando para a existência de «poucas, mas significativas excepções» a este. Se a existência de excepções no contexto da Europa democrática era vi- sível em meados da década de 60, ela terá inevitavelmente tendido a au- mentar posteriormente, mesmo na ausência de alterações na estrutura social ou dos sistemas partidários dos países analisados por Lipset e Rok- kan – mais não seja porque, quarenta anos depois, o número de demo- cracias na Europa mais do que duplicou, à medida que a terceira vaga da democracia iniciada em Portugal se estendeu a leste. Como tal, aumenta o número potencial de excepções, sobretudo se tivermos em conta que muitas das condições na génese dos alinhamentos eleitorais estáveis iden- tificados por Lipset e Rokkan não se reuniam nestas novas democracias: a industrialização, uma «densa rede de organizações sociais» (Allum 1995, 175), onde se destacam os sindicatos e os partidos trabalhistas, capaz de estruturar os interesses de classe e partidos de massas, com um elevado número de militantes, organizados em estruturas permanentes e activa- mente envolvidas na vida partidária a nível subnacional.

O comportamento eleitoral português é um bom exemplo da excepcio- nalidade potencial das democracias da terceira vaga, confirmando a previ- são de Mainwaring (1999) de que modelos teóricos existentes, derivados a pensar em democracias mais antigas, podem ser inaplicáveis (ou pelo menos requerer reformulação) em democracias mais recentes. Como indi- cam Gunther e Montero (2001, 124), Portugal constituiu um caso algo anómalo em termos da explicação do voto. Por um lado, as diferenças de classe social (ainda que não propriamente da classe operária tradicional identificada por Lipset e Rokkan) ou de religião parecem ser substanciais. Efectivamente, Portugal é um dos países mais desiguais da Europa em ter- mos de distribuição de rendimento e riqueza (figura 5.1). Em 2005, Portu- gal apresentava o maior nível de discrepância entre o rendimento do quintil superior (os 20% da população com rendimentos mais elevados) e o do quintil inferior (os 20% da população com rendimentos mais baixos) da União Europeia (figura 5.1). Estas diferenças são também aplicáveis noutras formas de capital – por exemplo, o capital escolar, com Portugal a apre- sentar dos níveis mais baixos da UE e da OCDE.2

2Em 2004, a proporção de abandono escolar em Portugal era a segunda mais elevada

da UE, sendo estimada em 39,4% dos jovens entre os 18 e os 24 anos de idade. A pro- porção é superior unicamente em Malta e, com as excepções da Espanha (31,1%) e da Itália (22,3%), os valores são inferiores a 20% para os demais países da UE (Comissão

Figura 5.1 – Desigualdade de rendimento (2005)

(rácio de rendimento entre o quintil superior e o inferior)

Fonte: Eurostat (2007). Suécia D ina m arca Islândia Finlândia R ep. C heca Lu xe m bur go Áustria E slováquia França Hu n gria H olanda Bél gica Ale m anha N orue ga Malta Chipre Zona euro U E -15 U E -25 Irlanda E spanha Itália R eino Unido

Grécia Estónia Polónia

P ortu gal 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 3,3 3,5 3,53,6 3,7 3,8 3,8 3,9 4,0 4,0 4,04,1 4,1 4,1 4,2 4,3 4,7 4,84,9 5,0 5,4 5,6 5,65,8 5,9 6,6 8,2

De igual modo, Portugal apresenta índices de religiosidade potencial- mente relevantes, com uma proporção relativamente elevada de «crentes nucleares» – cidadãos que «estão claramente empenhados nas crenças e práticas religiosas, comparecem com frequência aos serviços religiosos, rezam regularmente e têm posições conservadoras sobre um amplo leque de questões sob a tutela do sistema de valores religiosos» – e uma propor- ção mais ou menos semelhante (ainda que inferior) de «não-crentes» – cuja associação «às práticas e valores religiosos chegou ao fim» (Calvo et

al. 2007).

No modelo de Lipset e Rokkan, estas diferenças poderiam configurar a base do comportamento eleitoral. Contudo, elas parecem exercer pouca influência sobre as escolhas dos eleitores portugueses. Tal foi confirmado na análise do peso das clivagens nas eleições legislativas de 2002 (Jalali 2004). Este padrão seria essencialmente explicado com base em antece-

Europeia 2005). Em 2005 Portugal apresentava de igual modo a segunda mais baixa pro- porção de cidadãos com idades entre os 25 e os 64 anos que concluíram o ensino se- cundário pós-obrigatório da OCDE – 29%, substancialmente abaixo da média de 68% da OCDE, e superior apenas ao México (OCDE 2007). Em termos de detentores de graus superiores, Portugal apresentava no mesmo ano 13% de licenciados em cidadãos com idades entre os 25 e os 64 anos, com a média da OCDE a ser de 19% (OCDE 2007).

dentes históricos. Assim, a religião e a classe social terão sido sobrepostas por uma outra dimensão de conflito – em concreto, a da escolha de regime – no contexto revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril de 1974. Na medida em que este foi também o período em que se começou a delinear o sistema de partidos e os alinhamentos eleitorais, as suas cir- cunstâncias peculiares teriam um impacto directo no comportamento elei- toral, estabelecendo dependências de caminho que subsistiriam posterior- mente.

Posteriormente foi testada a evolução do peso das clivagens no com- portamento eleitoral após a democratização, procurando compreender se esta influência das clivagens teria enfraquecido ao longo do regime de- mocrático (Jalali 2007). A experiência comparativa prevê um declínio acentuado, na medida em que os processos de mudança social e de secu- larização tendem a minar a força das velhas clivagens (Niewbeerta e Graaf 1999), e tais processos foram particularmente intensos no pós-25 de Abril. Contudo, no caso português, o declínio é relativamente pequeno. Se é verdade que a influência da classe social e da prática religiosa no compor- tamento eleitoral declina, estes já eram fracos determinantes do compor- tamento eleitoral na primeira década da democracia portuguesa.

A ausência de poder explicativo das clivagens sociais é particularmente evidente nos dois partidos centristas, o PS e o PSD. Estes partidos têm dominado o sistema de partidos português desde a democratização, mas este domínio tem sido acentuado nos últimos vinte anos. Efectivamente, a governação constitucional até 1983 teve uma configuração relativamente tripartida. Ainda que a liderança no governo tenha sempre cabido ao PS ou ao PSD, a verdade é que o CDS foi uma presença frequente nos go- vernos constitucionais até 1983. O CDS fez parte do governo durante 1493 dias no período entre 1976 e 1983, mais do que os 1253 dias no poder do PSD ou os 767 dias do Partido Socialista. Desde então, a sua presença foi relativamente fugaz entre 2002 e 2005, contrastando com o virtual duopólio governativo do PS e do PSD, que formaram governos (juntos ou sozinhos) durante vinte dos vinte e três anos do período 1983- -2005. Este efeito sistémico tem também correspondência a nível eleitoral, com o PS e o PSD a verem a sua proporção do voto aumentar substancial- mente a partir das legislativas de 1987, permitindo também a obtenção de maiorias absolutas monopartidárias, que o sistema eleitoral português de representação proporcional supostamente impossibilitaria. Metade das le- gislativas entre 1987 e 2005 gerou uma maioria absoluta monopartidária – primeiro do PSD e mais tarde do PS. A estes podemos acrescentar o pe- culiar resultado do PS em 1999, em que os socialistas obtiveram exacta-

mente metade dos 230 mandatos parlamentares – o que, não sendo uma maioria parlamentar, também não era uma minoria.

Este reforço da principal dimensão de competição entre o PS e o PSD gera, assim, um sistema essencialmente bipartidário. São as implicações desta crescente bipartidarização do sistema de partidos e do comporta- mento eleitoral que pretendemos aqui investigar. Alguns dos contornos deste fenómeno começam a ser identificados, em larga medida, devido à bateria de dados e de investigação resultante do projecto Comportamento

Eleitoral e Atitudes Políticas dos Portugueses.

Um destes tem a ver com a descodificação do eleitorado que vota no PS e no PSD. Este tem sido visto como decisivo – quer pela classe polí- tica, quer por grande parte dos estudiosos do sistema político português – para os padrões de formação e alternância no poder, sobretudo desde meados dos anos 80. Hoje é possível confirmar a relativa inexistência de diferenças em termos de classe ou religiosidade entre os eleitorados dos dois partidos dominantes do sistema partidário português. Antes a esco- lha entre estes partidos é sobretudo determinada por variáveis políticas de curto prazo – como a avaliação dos líderes dos dois partidos ou a ava- liação do desempenho do governo (Lobo 2004; Jalali 2004 e 2007).

De igual modo, embora o autoposicionamento ideológico dos inqui- ridos seja uma variável explicativa significativa da opção entre o PS e o PSD, o peso desta variável tem declinado ao longo do tempo, sendo substancialmente menos importante do que as variáveis políticas de curto prazo nas legislativas de 2002 (Jalali 2007). Ao mesmo tempo vale a pena salientar que as legislativas de 2002 produziram uma repartição relativa- mente equilibrada do voto no centro, o que tenderá a gerar um maior impacto da variável do autoposicionamento ideológico dos inquiridos. Em eleições como as de 2005 – em que o pêndulo eleitoral favorece subs- tancialmente um dos dois partidos centristas – será de esperar que o peso desta variável decresça ainda mais.

Parece confirmar-se assim a existência de um eleitorado que opta entre o PS e o PSD, não devido a constrangimentos de classe ou prática religiosa – e cada vez menos pela sua autodefinição no espectro político – mas cuja escolha partidária é decisivamente influenciada pela avaliação das lideran- ças partidárias e do desempenho do governo. Tal seria parcialmente con- firmador da noção adquirida da classe política de que não é a oposição que ganha eleições, mas sim o governo que as perde, e ajuda a explicar a abordagem dos dois principais partidos ao papel da oposição, com a arti- culação de alternativas de política claras a serem subordinadas a uma es- tratégia de «esperar» para que o governo se depare com dificuldades.

A oferta e a procura nos sistema de partidos