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Introdução

Apesar de a área dos estudos eleitorais estar ainda relativamente subde- senvolvida em Portugal,1há um certo consenso entre os estudiosos do

comportamento eleitoral dos portugueses sobre alguns traços fundamentais da forma como votam os cidadãos lusos (Gunther e Montero 2001; Gunt- her 2007; vários outros estudos em Freire, Lobo e Magalhães 2007a e 2007b). Primeiro, apesar de existirem algumas diferenças entre os votantes dos diversos partidos (tendo o PCP uma base social mais definida do que a das outras forças partidárias), o voto dos portugueses está fracamente an- corado na estrutura de clivagens sociais (classe social, religião, região, habi-

tat) e tal é um traço que remonta ao período de transição para a democracia

e às estratégias dos partidos nessa fase fundacional. Segundo, as identidades ideológicas (e partidárias) têm um peso primordial na estruturação das op- ções de voto dos portugueses. Ou seja, o posicionamento na escala es- querda-direita (tal como as simpatias partidárias, embora o estatuto episte- mológico da variável «identificação partidária» face ao próprio voto esteja muito pouco estudado em Portugal) tem sido evidenciado como o factor com maior peso na explicação do voto dos portugueses: os eleitores que

1Foram apenas realizados, até à presente data, três «Estudos Eleitorais Nacionais»

(EENP), isto é, estudos académicos pós-eleitorais baseados em inquéritos a amostras re- presentativas da população – 2002, 2005 e 2006, estando os dois últimos em análise apro- fundada e extensa apenas no presente volume; embora haja mais evidência para além dessa sobre o comportamento eleitoral dos portugueses, v., nomeadamente, os estudos de Freire, Lobo e Magalhães (2007a e 2007b), bem como as referências inclusas.

se auto-identificam como sendo de esquerda tendem a votar mais no BE, no PCP e no PS, independentemente das suas posições na «estrutura de clivagens» e dos «factores de curto prazo» (v. figura 6.3); os eleitores que se auto-identificam como sendo de direita tendem a votar mais no PSD e no CDS-PP, ceteris paribus. Terceiro, os chamados «factores de curto prazo» (avaliação das políticas públicas propostas pelos partidos, avaliação da per-

formance dos governos, avaliação do estado da economia, avaliação dos lí-

deres) têm também um peso muito importante na explicação do voto dos portugueses, mas apenas os chamados «temas consensuais», ou «temas de desempenho» , isto é, aqueles que estão relacionados com a avaliação do estado da economia, com a performance dos governos e a avaliação dos can- didatos (Gunther e Montero 2001; Freire 2004a e 2004b; Freire e Lobo 2005; Lobo 2007a e 2007b). Pelo contrário, a parca evidência existente sobre o caso português neste domínio tem revelado que os chamados «temas de posição» , isto é, as preferências em matéria de políticas públicas e/ou as orientações valorativas subjacentes, apresentam um muito reduzido impacto nas opções de voto (Freire 2004 e 2007).

No caso português, também o posicionamento dos indivíduos na es- cala esquerda-direita (auto-identificação ideológica) se tem revelado rela- tivamente pouco ancorado nas orientações valorativas dos eleitores, ao contrário do que se passa noutros países europeus (Freire 2006a e 2006b). Uma das explicações avançadas para a fraca ancoragem do voto e das identidades ideológicas nos sistemas de valores dos indivíduos tem sido a fraca polarização ideológica ao nível da oferta partidária: Portugal, tal como alguns outros países, apresenta uma oferta pouco diferenciada ideo- logicamente e, nestes casos, geralmente, o impacto dos valores no voto/nas identidades é mais reduzido (Freire 2004b, 2006a, 2007 e 2008; v. também Freire, Lobo e Magalhães 2007c). Outros estudos comparati- vos e longitudinais, embora aplicados a um número bastante mais redu- zido de países, apontam no mesmo sentido (Knutsen e Kumlin 2005).

Independentemente da pertinência da tese da (fraca) polarização ideo- lógica ao nível do sistema partidário, que, aliás, subscrevemos e temos de- fendido, há outros factores a ter em conta para explicar o fraco impacto dos «temas de posição» e dos valores nas identidades ideológicas e no voto. Nomeadamente, muitos dos estudos referidos basearam-se em dados se- cundários; logo os indicadores usados para medir os temas de posição e/ou para as orientações valorativas eram necessariamente limitados: os únicos disponíveis para os utilizadores secundários, mas não necessariamente os mais apropriados e/ou em número suficiente para se obterem medidas su- ficientemente validadas das variáveis subjacentes. Mesmo no caso do es-

tudo de Freire (2004b), baseado no «Estudo Eleitoral Nacional» (EENP) de 2002 (desenhado pelo próprio e pelos coordenadores do presente livro), a verdade é que o número de indicadores dos temas de posição e/ou dos sistemas de valores subjacentes era muito limitado, nomeadamente porque o estudo teve de ser preparado em tempo recorde, dada a antecipação das eleições de Março de 2002 (que só estavam inicialmente previstas para final de 2003) (Freire e Lobo 2002). Idênticas dúvidas são extensíveis a outros estudos (comparativos e/ou longitudinais) sobre a extensão e a validade das medidas referentes aos temas de posição e aos valores subjacentes, bem como, consequentemente, quanto ao nível do seu impacto no voto (e nas identidades ideológicas). Aliás, o importante estudo longitudinal centrado nos seis países europeus com a mais longa tradição de «Estudos Eleitorais Nacionais» (Alemanha, Dinamarca, Holanda, Noruega, Reino Unido e Suécia) revelou também que os «temas consensuais» são bastante mais im- portantes do que os «temas de posição» na explicação do voto (Thomassen 2005, 257-265). Porém, também neste caso as questões metodológicas per- mitem levantar algumas dúvidas quanto à força das relações, isto é, em que medida é que estes magros resultados se devem à utilização de baterias de indicadores insuficientes para medir os «temas de posição» e/ou os valores subjacentes?

O «Estudo Eleitoral Nacional» de 2005 (N = 3001), sobre as eleições legislativas desse mesmo ano, permite-nos avançar bastante nesta discus- são porque inclui uma extensa bateria de «temas de posição» e/ou das orientações valorativas subjacentes, cobrindo praticamente todas as grandes questões do conflito político nas sociedades modernas (v. anexo). A larga maioria destas questões foi retirada da 2.ª edição do inquérito

Comparative National Election Project – CNEP (a fundamentação teórica

da escolha dos diferentes itens, bem como a sua pertinência empírica nos vários países onde a bateria tinha já sido testada, podem ser encontradas em Gunther e Kuan 2007). Todas as questões, excepto as seguintes, foram retiradas do CNEP: p6.17, p6.18, p6.19, p7, p8 e bateria dos valores pós- -materialistas (p9.1 e p9.2). Ou seja, com este extenso conjunto de indi- cadores podemos estar seguros de testar com rigor o impacto dos valores e dos «temas de posição» sobre o voto em Portugal sem que se possam levantar dúvidas sobre se estamos a utilizar um número e uma diversi- dade de indicadores suficientes para medir as variáveis subjacentes que pretendemos efectivamente medir. O facto de o «Estudo Eleitoral Na- cional» de 2006, sobre as eleições presidenciais desse ano, ser uma pes- quisa de painel (N = 1002 indivíduos, dos quais 803 tinham sido entre- vistados já no estudo de 2005) permite-nos também testar o impacto dos

«temas de posição» e dos valores sobre o voto nas eleições presidenciais, embora neste caso com uma amostra bastante menor. Portanto, o pri- meiro objectivo deste artigo é o de aferir o impacto dos «temas de posi- ção» e dos valores sobre o voto nas legislativas de 2005 e nas presidenciais de 2006. O segundo objectivo é o de testar o modelo em diferentes con- textos institucionais e políticos (eleições legislativas versus presidenciais; eleições com diferentes níveis de polarização ideológica).

E por que é que é vale a pena estudar este assunto? Bom, para além de tentar resolver alguns puzzles da literatura internacional sobre a matéria, referidos atrás, ou pelo menos tentar esclarecer algumas dúvidas que le- gitimamente se podem levantar quanto aos resultados de anteriores pes- quisas, este assunto é relevante por um motivo central adicional. As de- mocracias modernas são fundamentalmente representativas (Dahl 1998; Przeworksi, Stokes e Manin 1999) e, por isso, as eleições são o mecanismo fundamental que assegura a representação das preferências dos eleitores no sistema político e a responsabilização dos agentes políticos pelos elei- tores. E estes são dois mecanismos fundamentais numa democracia re- presentativa. Anteriores estudos revelaram já que o mecanismo da res- ponsabilização funciona relativamente bem em Portugal: v. a punição (ou a recompensa) dos governos/partidos pelos maus (ou bons) resulta- dos da economia, do desempenho do governo, da apresentação de líderes fracos/impopulares (ou fortes/populares) – é isso que revela o impacto dos «temas consensuais». Porém, os estudos anteriores revelaram que a função de representação parece não funcionar tão bem, pois as preferên- cias dos eleitores em matéria de políticas públicas («temas de posição» e valores subjacentes) parecem não ter impacto relevante nas escolhas elei- torais. É isso que pretendemos agora aprofundar com nova e, suposta- mente, mais sólida evidência empírica. Em primeiro lugar, iremos bre- vemente abordar o contexto das eleições de 2005 e 2006. Em segundo lugar, apresentaremos sumariamente a definição dos conceitos e do mo- delo teórico. Em terceiro lugar, descrevemos as preferências dos eleitores («temas de posição») em 2005, bem como as suas avaliações dos incum- bentes e da economia do país (2005 e 2006). Em quarto lugar, testamos os modelos em 2005 e 2006. Finalizamos com as conclusões.