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2.6 – O Significado da Posse da Terra para as Mulheres

Durante os três anos de conflito, as mulheres trabalhadoras rurais do Vale da Esperança, desejaram imensamente o acesso e a garantia de possuir a terra, pois a mesma era carregada de significados. Para essas mulheres e suas famílias a terra significava segurança, moradia, lugar de ver os/as filhos/as crescerem, felicidade, proteção e principalmente fonte de trabalho. Esse era o fundamento e o sustentáculo da luta.

A forma de distribuição da terra cria e recria uma forma de sociabilidade na qual homens e mulheres aparecem na condição de “sem terra”. Os depoimentos abaixo revelaram uma perspectiva de mudanças positivas para suas vidas que tem como base a autonomia advinda da posse da terra. Percebe-se uma determinação e um esforço de permanecer na luta para alcançar a conquista de uma vida melhor. É nesse processo que uma nova identidade vai se formando. Aos poucos vão deixando de ser “sem terra” e construindo a identidade de “assentado/a”, um

sentimento de pertencimento àquela comunidade, iniciado com a desapropriação. Os depoimentos de Francisquinha, Branca e Chico são nesse sentido representativos:

Que a gente não tinha terra, a gente tinha uma barraquinha na praia pra morar, mas não tinha terra pra trabalhar. (Francisquinha, assentada, entrevista realizada em sua casa no assentamento Novo Horizonte II, em 01/02/2005)

Porque a gente já era uma família, já estávamos juntos, tínhamos três filhos e não tínhamos onde morar. Então surgiu esse acampamento. Surgiu essa idéia de entrarmos na terra pra lutar pela terra, pra conseguir uma terra pra trabalhar, conseguir uma casa pra morar e daí por diante. Então a gente conversamos e decidimos entrar junto com o pessoal na terra pra lutar pelo um futuro melhor para os nossos filhos. (Branca assentada, entrevista realizada em sua casa no assentamento Novo Horizonte II, em 01/02/2005)

A questão era adquirir condições para manter minha família, então foi aí na hora que apareceu o convite e eu resolvi a ir porque eu acreditava que quando eu chegasse na terra eu ia ter uma vida melhor, ia ter uma casinha melhor, ia ter recurso pra trabalhar, ia ter a própria terra pra trabalhar, não ser sujeito a ninguém, por isso todo mundo me motivou a eu partir pra essa luta. (Chico, assentado, entrevista realizada em sua casa no assentamento Novo Horizonte II, em 03/04/2004)

Em entrevista com uma ex-educadora do SAR, a mesma reflete como a terra é um desejo fundante na vida das mulheres ali acampadas:

Era possível perceber o desejo das famílias de terem uma terra para morar e trabalhar. Os contatos com as mulheres traziam a possibilidade de observar que a integração delas, arriscando não só suas vidas mas a dos maridos e filhos/as na luta pela terra, era uma ordem de primeira necessidade para a sobrevivência, com a perspectiva de segurança para um futuro mais tranqüilo. Outro aspecto possível de observar foi que o envolvimento delas teve forte conotação de cumplicidade com os maridos [...] o exercício do desejo, do sonho com o futuro expressado nas reuniões, nas negociações com o INCRA, em conversas entre as famílias, contribuiu para que muitas delas pudessem compreender o direito de reivindicar a terra como exercício de sua cidadania na realização da Reforma Agrária. (Socorro do Vale, ex-educadora do SAR e atual membro da equipe técnica do CEAHS, entrevista realizada em 16 de maio de 2005).

As mulheres do Vale da Esperança experimentaram durante três anos a dura vida num acampamento para conquistar terra, tencionando o processo de desenvolvimento que as exclui do direito ao acesso à propriedade territorial no seu local de origem, no seu mundo social e cultural;

querem terra para trabalhar e sustentar suas famílias, atribuindo novos significados econômicos a sua exploração que se dá de forma familiar e não patronal.

Os depoimentos abaixo retratam como as mulheres se identificam com a terra de trabalho.

A alegria melhor foi que nós ganhemos a terra pra trabalhar. Achei bom porque a gente tinha terra pra trabalhar, eu trabalho muito, vivo doente nessa luta, mas os meus filhos e Reginaldo. Nós trabalhamos no pau, nós trabalhamos na farinhada que nós fazemos aqui, já plantemos feijão, milho, roça. (Rosa assentada, entrevista realizada em sua casa no assentamento Novo Horizonte II, em 17/04/2004)

Eu porque não tinha casa e não tinha terra para trabalhar e no meio disso tudo a gente necessitava tanto da terra como de moradia, porque eu morava na casa da minha sogra e eu não tinha casa, nem terra pra trabalhar. (Nalva, assentada, entrevista realizada em sua casa no assentamento Novo Horizonte II, em 17/04/2004)

O pedaço de terra pra trabalhar, o pedaço de alagadiço que o meu sonho é adquirir um pedaço de alagadiço pra plantar macaxeira, batata, a gente ter a liberdade da gente e era isso que nós num tinha. A gente morava em Rio do Fogo, mas nós num tinha um pedaço de alagadiço, que a terra de Rio do Fogo num ajuda ninguém, é arisco, ela só dá alguma coisa se chover muit [...] Ter a liberdade de plantar alguma coisa pra comer. (Nailde assentada, entrevista realizada em sua casa no assentamento Novo Horizonte II, em 08/04/2004).

Uma outra questão que sugerem esses depoimentos é o acesso à moradia. A alegria da desapropriação das fazendas deu-lhes a segurança de ter onde morar e trabalhar, saindo muitas vezes da dependência da casa de outros familiares, onde em vários casos reside mais de uma família. A desapropriação garantiu o acesso ao direito de se reintegrar como trabalhador/a rural na sociedade.

Ao considerar a terra como bem natural, (“a terra mãe que dá sentido a vida”, “a terra é uma benção de Deus”), as mulheres trabalhadoras rurais estão se referindo à natureza própria da terra que não tem dono, terra de todos, terra sem cerca, terra socializada, terra patrimônio comum. Nessa perspectiva, a terra é considerada uma propriedade não-capitalista, pois “ela não é produto do trabalho, por isso mesmo não pode ser produto do capital”. (MARTINS, 1991).

O que legitima a posse da terra é o trabalho, nele reside o direito de propriedade. Para as mulheres trabalhadoras rurais do Vale da Esperança, esse significado de terra para trabalhar, concorda com o que MARTINS (1991, p. 55) chama de terra de trabalho e não terra de negócio.

Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. São regimes distintos de propriedade, em aberto conflito um com o outro. Quando o capitalista se apropria da terra, ele o faz com intuito do lucro, direto ou indireto. Ou a terra serve para explorar o trabalho de quem não tem terra; ou a terra serve para ser vendida por alto preço a quem dela precisa para trabalhar e não tem. Por isso, nem sempre a apropriação da terra pelo capital se deve à vontade do capitalista de se dedicar á agricultura.

Da mesma forma, ao contrário desse aspecto da apropriação da terra pelo capital, como analisa Martins (1991, p.54), as mulheres trabalhadoras rurais do Vale da Esperança consideram a propriedade da terra como unidade familiar para desenvolver o trabalho na agricultura.

A propriedade familiar não é propriedade de quem explora o trabalho de outrem; é propriedade direta de instrumentos de trabalho por parte de quem trabalha. Não propriedade capitalista; é propriedade de trabalhador. Seus resultados sociais são completamente distintos, porque neste caso a produção e reprodução das condições de vida dos trabalhadores não regulada pela necessidade de lucro do capital, porque não se trata de capital no sentido capitalista da palavra. O trabalhador e lavrador não recebem lucro. Os seus ganhos são ganhos do seu trabalho e do trabalho de sua família e não ganhos do capital, exatamente porque esses ganhos não provêm da exploração de um capitalista sobre um trabalhador expropriado dos instrumentos de trabalho.

As mulheres do Vale da Esperança concebem a terra permeada de relações familiares para sua exploração a fim de manter o seu autoconsumo e comercialização dos produtos num sistema cooperativo e associativo. Nesse sentido, a luta pela terra se constitui na luta contra a expropriação e expansão do capital no campo.

O significado da luta pela terra para as mulheres trabalhadoras rurais do Vale da Esperança, transformada no Assentamento Novo Horizonte II está inscrito na luta pelos direitos na sociedade brasileira. Os direitos de cidadania, o direito à terra, ao trabalho, à moradia são um

parâmetro fundamental para a construção da vida em sociedade e refletem conquistas dos movimentos sociais rurais, através da ação política.

A luta pelo direito à terra do Vale da Esperança conforme assinalado envolveu um significativo número de atores sociais que se comprometeram na busca de solução para o conflito agrário em favor dos sem terra. Da perspectiva das famílias participantes do processo de ocupação, em sintonia com suas representações e aliados, foram capazes de gerar uma prática política que contemplou a formação das lideranças; a articulação de entidades e movimentos sociais urbanos; mobilização de recursos financeiros e materiais; uma vivência de novos valores que poderão contribuir para a construção de uma outra sociabilidade. Entretanto, no que se refere à questão de gênero há indícios de que os processos de luta, organização e conquista das classes subalternas não tem incorporado estrategicamente a necessidade de superar a desigualdade de gênero. Nesse sentido, a experiência em análise parece indicar a perspectiva da subalternidade da mulher em relação ao homem, mesmo quando constroem juntos os movimentos sociais libertários.

No capítulo a seguir será analisada a construção do assentamento Novo Horizonte II, momento por excelência para apreender como as mulheres se inserem no cotidiano do assentamento, seja no trabalho agrícola, doméstico ou nos mecanismos políticos relacionados ao processo de construção e desenvolvimento do assentamento, particularmente a associação.

CAPÍTULO 3:

AS MULHERES NO ASSENTAMENTO: