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CAPÍTULO III – A FORMALIZAÇÃO DO OP NA LOA: BASE TEÓRICA PARA A

III.3 OP – A razão da necessidade de formalização

Formalização do OP, já se disse, é o ato de fazer constar na LOA o resultado advindo da parte do processo de eleição de prioridades em OP, isto é, o registo, em LOA, da descrição da obra ou serviço priorizados pelos cidadãos, a título de OP ou denominação homóloga, juntamente com o valor monetário necessário à posterior execução. É a transposição, para uma norma jurídica, do resultado das discussões, no âmbito próprio para isso, levadas a efeito para priorização, pelos cidadãos comuns, de ações a serem executadas com dinheiro público. Entende-se aqui que a partir do OP já formalizado, pode-se então afirmar, de forma objetiva e com base em um documento público válido, que cidadãos comuns realmente decidiram diretamente sobre o gasto de dinheiro público. Neste estudo, portanto, o OP formalizado implica poder de decisão enunciado, de forma direta, dos participantes do OP na definição de despesas orçamentárias e, por que não dizer, implica concretização da democracia direta no sistema político representativo brasileiro de forma transparente.

No Brasil, a lei orçamentária anual – LOA, por meio da qual é prevista a receita e fixada a despesa dos entes federados [União, estados, Distrito Federal e municípios], é processada pelos poderes Executivo e Legislativo de cada ente, sempre, como já fundamentado

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acima, com prevalência da vontade política do Executivo. Nas últimas décadas, o OP tem sido implantado em municípios brasileiros como um espaço institucionalizado para possibilitar que cidadãos comuns decidam, diretamente, sobre despesas a serem fixadas no orçamento público, definindo obras e serviços a serem realizados com recursos públicos, de modo a caracterizar o efetivo compartilhamento do poder de decisão entre os políticos eleitos e os cidadãos participantes do OP quanto à definição do referido orçamento público.

Em Estados democráticos representativos, como o Brasil, por exemplo, é normal que, no ordenamento jurídico [Constituição, leis e outras normas institucionais], estejam claramente estabelecidos os limites do poder político e identificadas as autoridades com legitimidade para impor tal poder à sociedade (Bobbio, 2014: 86-91). Essa é uma das razões para que, com o advento da democracia representativa, a formalização de regras de conduta social, política e econômica fosse considerada imprescindível para a continuidade e a estabilidade de governos democráticos. Isso porque a formalização, de um lado, conferiria significados que norteariam, justificariam e limitariam as ações do Estado na sociedade e, de outro lado, serviria de orientação para que as ações dos indivíduos na sociedade tivessem como referência “obrigações culturais e normas sociais” e não interesses e vontades individuais ou de governantes, destaca Porta (2003: 40). Talvez por isso, a base institucional formal seja considerada por alguns teóricos como uma das características de poder político democrático legítimo, ou seja, “poder exercido na forma jurídica, não mediante comandos isolados, mas mediante regras criadas e aplicadas segundo procedimentos regulares e relativamente estáveis, de tal maneira que cada comando individualmente dirigido a um sujeito se apresenta sempre como a aplicação de uma regra anterior” (Canotilho, 1999: 6).

O Brasil é uma democracia representativa que primou pela formalização minuciosa das atividades estatais sobre matéria orçamentária. Dentre as normas que compõem o sistema orçamentário constitucional, a lei orçamentária anual – ou simplesmente LOA – é o documento público formal que dispõe sobre o orçamento público, orçamento esse que deve conter as despesas do governo correspondentes à cada uma das ações que pretende realizar, em determinado período, juntamente com as receitas a serem arrecadadas para custear tais ações, com as respetivas fontes devidamente especificadas [tributos ou recursos próprios do governo]. A LOA é decidida pelos poderes Executivo e Legislativo, com prevalência do Executivo.

A obrigatoriedade de se formalizar decisões sobre o orçamento público em um documento acessível a todos os cidadãos é uma prática identificada com governos democráticos representativos. Essa formalização serviria para orientar as ações futuras do governante, dar transparência e previsibilidade às ações do Poder Público na sociedade, e possibilitar o controlo

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e responsabilização dos agentes públicos em relação ao orçado. Nesse contexto, o registo do OP em LOA é de fundamental relevância por dois motivos: (i) primeiro, porque é absolutamente necessário à posterior execução, pela Administração Pública, da ação priorizada pelos cidadãos (CRFB, art. 165,§ 8º c/c art. 167, I e II), sob pena de frustar não só a execução do serviço ou da obra priorizada, mas também de desacreditar todo o anterior processo de participação direta; (ii) depois, porque é por meio desse registo que se oficializa, que se institucionaliza, enfim, o resultado do referido processo, ao mesmo tempo em que se possibilita a ampla divulgação [transparência] acerca da existência de um processo em que teria havido compartilhamento de poder decisório sobre uso de dinheiro público, o que obviamente requer que haja clara indicação, na LOA, de que se trata de ação priorizada em processo de OP.

A formalização do OP transcende, portanto, a questão meramente legalista. Tem importante alcance político e social na medida em que a publicidade decorrente da formalização dá transparência às demandas priorizadas pela população e às respostas políticas dadas a elas. Assim, a formalização é considerada neste estudo como relevante para fortalecimento do OP seja enquanto instrumento de democracia participativa com poder de decisão seja como prática administrativa voltada à melhoria da gestão pública, eis que enuncia para a sociedade, por exemplo: 1. a resposta estatal às demandas priorizadas pelos cidadãos, de modo a possibilitar que sejam realizadas com recursos públicos; 2. a possibilidade de responsabilização política desses cidadãos sobre suas decisões; 3. que os representantes políticos que detêm o poder de decisão sobre matéria orçamental realmente compartilharam desse poder.

Além disso, a transparência dada com a formalização – transparência que, aliás, é um dos requisitos das normas orçamentárias – facilita o controlo da sociedade, especialmente daqueles que participaram do OP, sobre a resposta dos políticos quanto à inclusão ou não na LOA das ações priorizadas, ao mesmo tempo em que evidencia a vontade política para execução dessas ações. A propósito, vale ressaltar a fundamentação adotada pelo Município de Porto Alegre, segundo a qual essa formalização é imprescindível para a “garantia da realização das obras e serviços demandados pelo Orçamento Participativo” (Porto Alegre, LOA 2016 – apresentação: XLVII) [destacamos] haja vista que enuncia o “reconhecimento jurídico formal”20 (Santos, 2002:24) do poder de decisão dos cidadãos participantes do OP sobre matéria

orçamental, tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo municipal.

20 Santos (2002:24) referiu-se a “reconhecimento jurídico formal” para afirmar que o OP de Porto Alegre não tinha, à época, reconhecimento do Poder Legislativo daquele Município.

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Segundo Bobbio (2014: 40), a “função das instituições políticas é a de dar respostas às demandas provenientes do ambiente social [...]. As respostas das instituições políticas são dadas sob a forma de decisões coletivas vinculatórias para toda a sociedade”. No Brasil, decisões vinculatórias à toda à sociedade sobre matéria orçamentária estão contidas na LOA. Não há decisão vinculatória sobre orçamento público fora da lei orçamentária. Pode-se, portanto, afirmar que cidadãos só decidem em orçamento participativo se suas decisões estiverem registadas na LOA como decisões do OP. OP como tal não inserido na LOA fica resumido ao ciclo participativo, etapa importante, mas não suficiente para mostrar o poder de decisão dos cidadãos sobre matéria orçamental e, tão pouco, causa qualquer impacto na gestão do orçamento público

Como se mostra a seguir, entretanto, é possível que se desdobre processo de discussão que culmine na priorização, pelos cidadãos comuns, de obras ou serviços a serem executados com dinheiro público, inclusive com registo em LOA da correspondente informação, mas sem que se caracterize a formalização do OP conforme definida neste trabalho.