• Nenhum resultado encontrado

Orçamento Participativo – OP: Porto Alegre enquanto referência de sucesso

CAPÍTULO I – NOÇÕES TEÓRICAS SOBRE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NA

I.3 Orçamento Participativo – OP: aspetos teóricos

I.3.2 Orçamento Participativo – OP: Porto Alegre enquanto referência de sucesso

O orçamento participativo – OP do município de Porto Alegre3, iniciado em 1989, é

considerado modelo de boa prática administrativa e de democracia direta, com potencial para inovar a democracia representativa e, com isso, fortalecer a própria democracia. Por essa razão, há mais de duas décadas tem sido usado como referência na matéria por estudiosos de várias partes do mundo, como por exemplo Santos (2003), Avritzer (2003), Fernández e Fortes (2010), Fung e Wright (2001), Patsias, Latendresse e Bherer (2013), Sintomer, Herzberg e Röcke (2012), além de instituições de abrangência internacional como é o Banco Mundial (2008). Pelas mesmas razões, também tomamos como exemplo o OP de Porto Alegre para contextualizar a existência dessa prática no Brasil.

A institucionalização do orçamento participativo em Porto Alegre teria ocorrido em consequência de fatos diversos que convergiram para a adoção dessa prática administrativa pelo governo municipal. No ano de 1988, o Brasil voltou a ser, constitucionalmente, um Estado

3 O município de Porto Alegre, que é a capital do Estado do Rio Grande do Sul, aqui tomado como exemplo, teve sua população estimada em 1.481.019 habitantes (IBGE), ano de 2016.

31

democrático. Na Constituição de 1988, os municípios foram alçados à condição de entes da federação, com autonomia política e administrativa (CRFB, artigos 1º e 18). Com isso, foram instituídas garantias constitucionais para dar sustentação à referida autonomia. Dentre elas, destacam-se: 1. os municípios passaram a ter seus representantes políticos eleitos direta e democraticamente; prefeito e vice-prefeito à frente do executivo e vereadores no Legislativo; 2. a competência para legislar sobre questões de interesse local, inclusive para suprir lacunas de legislação federal ou do estado no qual o município está inserido; 3. a competência para estabelecer e arrecadar tributos, constitucionalmente definidos para o âmbito municipal; 4. o estabelecimento da não intervenção de estados e da União nos municípios como regra; 5. o compartilhamento de receitas tributárias dos estados com seus respetivos municípios (CRFB, artigos 29, 30, 35 e 156). Tais garantias constitucionais, dirigidas aos municípios brasileiros, foram necessárias para que essas unidades da federação pudessem desempenhar suas funções de legislar, planejar e executar serviços públicos no âmbito de seu território, notadamente em relação à educação infantil, limpeza e reparos de vias e praças públicas, coleta de resíduos, fornecimento de água potável e de rede de esgoto, disponibilização de transporte coletivo. As novas atribuições dos municípios conjugadas com a carência de recursos da maioria do povo brasileiro e com a possibilidade de alcançar os direitos sociais [definidos na Constituição] como a educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, assistência aos desamparados, dentre outros (CRFB, art. 6º) provavelmente tenham contribuído para o aumento de demandas da sociedade ao poder público municipal.

Durante o processo de redemocratização, no município de Porto Alegre a sociedade se organizou e procurou conhecer seus direitos e as competências do poder público municipal, como pode ser percebido pelo boletim informativo nº 10, de maio de 1986, divulgado pela União das Associações de Moradores de Porto Alegre – UAMPA. Nesse documento, a associação observa que o povo está livre da repressão do regime militar e, com isso, pode lutar por seus direitos. O direito reivindicado nesse boletim é o de participação do povo na definição das ações a serem executadas pelo governo municipal, de participar das decisões sobre o gasto do dinheiro público, por meio das associações existentes na sociedade. Para a UAMPA, em 1986 já era “hora de avançar no debate e nas propostas de como interferir no controle da arrecadação, distribuição e aplicação dos recursos públicos.” Para tanto, as propostas da UAMPA, no referido boletim, foram as seguintes: “PARTICIPAR DE QUÊ? 1. O mais importante na prefeitura é a arrecadação e a definição de para onde vai o dinheiro público. É a partir daí que vamos ter ou não verbas para o atendimento das reivindicações das vilas e bairros populares. Por isso, queremos interferir diretamente na definição do orçamento municipal e

32

queremos controlar a sua aplicação. 2. Queremos decidir sobre as prioridades de investimento em cada vila, bairro e na cidade em geral. 3. Queremos decidir sobre as alternativas em relação aos problemas do transporte coletivo, da educação, da saúde, da moradia, do esporte, da cultura, etc. 4. Queremos controlar e fiscalizar a execução das obras e dos serviços públicos (creches, escolas, postos, etc.). COMO QUEREMOS PARTICIPAR? A base da participação popular na administração municipal deve ser o movimento comunitário. 5. A definição do orçamento da prefeitura deve dar-se a partir do MC [...].” (UAMPA4, 1986). Nesse sentido, observa Silva

(1999) que o OP nasceu de discussões e reivindicações das organizações comunitárias existentes em Porto Alegre para viabilizar a participação das pessoas da sociedade na definição do orçamento público. Para esse autor, foram essas organizações que atuaram para pressionar o governo municipal, eleito em 1988, a legitimar a proposta da UAMPA de compartilhamento de decisões políticas com a população local, especialmente aquelas relativas às despesas públicas.

Nesse contexto, o Partido dos Trabalhadores – PT, à frente de uma coligação de partidos de esquerda intitulada de “Frente Popular”, advogando a ampliação da participação do cidadão nas decisões tomadas pelo governo municipal, venceu as eleições municipais de 1988 em Porto Alegre. O PT manteve-se à frente do Executivo de Porto Alegre de janeiro de 1989 até 31 de dezembro de 2005. De início, em 1989, implantou a participação da sociedade na definição do orçamento público. A partir dessa medida, o orçamento participativo surge como uma forma de atender às reivindicações das associações comunitárias do município, no sentido de que o orçamento público fosse definido com a participação dos cidadãos. O contexto evidencia que OP de Porto Alegre “não nasceu pronto e não deve ser compreendido como mera dedução programática da Frente Popular5. Ao contrário, necessitou de aprendizagem coletiva,

tanto dos governantes, como dos atores da sociedade civil.” (Fedozzi, 1998:227).

4Centro de documentação e Pesquisa Vergueiro, disponível em:

www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PUAMPRS051986010.pdf (acesso em 11-02-2017) 5 “Em 1989, a Frente Popular (uma coligação do Partido dos Trabalhadores com o então Partido

Comunista Brasileiro) assumiu a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, instaurando o que ficou conhecida como Administração Popular, a qual se reelegeu por mais duas gestões consecutivas (em 1992 e em 1996). No bojo desse processo, desenvolveu-se, a partir daí, uma modalidade de gestão pública, baseada na participação direta da população na elaboração e na execução do orçamento público, especialmente para a escolha das prioridades dos investimentos municipais (Fedozzi. Luciano (1998). Esfera pública e cidadania: a experiência do orçamento participativo de Porto Alegre. Ensaios FEE, Porto Alegre, v.19, n. 2, p. 237.

33

Esse aprendizado, que resultou na implantação do OP de Porto Alegre, foi possível pela convergência de quatro fatores, segundo Fedozzi (1988): vontade política, eficiência, disponibilidade financeira e associativismo crítico, como se discorre a seguir.

Refere-se o primeiro fator à vontade política dos governantes em inserir no processo decisório da gestão pública a participação direta do cidadão. No início, essa vontade foi sustentada por meio da Lei Complementar nº 195, de 30 de novembro de 1988 (revogada pela Lei Complementar nº 661/2010). Nessa LC 195/1988, a participação do povo no governo municipal tinha por objetivo:6 criar condições para a mobilização permanente, conscientização

e auto-organização do povo mediante do fortalecimento do movimento comunitário; assegurar a participação do povo, por meio dos conselhos populares, desde a discussão e elaboração, até a formulação de projetos, planos, programas e serviços; fiscalizar os atos da Administração desde a elaboração dos projetos até a execução das obras e serviços; opinar e decidir sobre as políticas setoriais da administração municipal e definir, em assembleia da comunidade, as reivindicações e prioridades de cada zona comunitária. A norma contida no artigo 20 da LC 195/1988, o poder decisório do povo, por meio de conselhos comunitários, incluía poder de derrubar veto do prefeito à resolução emitida pelos conselhos (artigo 20). Na lei nova, LC 661/2010, as prerrogativas dos conselhos municipais foram restringidas, mas, ainda assim, manteve-se a participação direta das pessoas em decisões no âmbito público, como pode ser percebido nos dispositivos a seguir: “Art. 3º Os Conselhos Municipais têm por competência geral: I – estimular a participação popular nas decisões do Município de Porto Alegre e no aperfeiçoamento democrático de suas instituições; II – atuar nas formulações e no controle da execução da política setorial da Administração Municipal que lhe afeta; III – estabelecer as diretrizes a serem observadas na elaboração dos planos e dos programas de ações setoriais no âmbito municipal; IV – deliberar sobre políticas, planos e programas referentes à política setorial;” (LC nº 661/2010).

O segundo fator citado por Fedozzi é a eficiência: as decisões resultantes de processo democrático participativo deveriam ser executadas pela administração pública de forma eficiente. Com isso, o governo teria dado credibilidade à participação direta. A eficiência na administração pública é um princípio contido na Constituição do Brasil, art. 37, caput, que orienta a Administração Pública direta e indireta e seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente,

6 Objetivos contidos nos incisos de I a V do art. 2º da LC 195/1988, revogada pela Lei pela Lei Complementar nº 661/2010.

34

participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-se maior rentabilidade social. Note-se que não se trata da consagração da tecnocracia, muito pelo contrário, o princípio da eficiência dirige-se para a razão e fim maior do Estado, a prestação dos serviços essenciais à população, visando à adoção de todos os meios legais e morais possíveis para a satisfação do bem comum (Moraes, 2007: 310).

O terceiro fator, segundo aquele autor, é a disponibilidade de reserva financeira para responder às demandas priorizadas no orçamento participativo e, com isso, possibilitar a emergência de um ciclo virtuoso.

Refere-se o quarto fator mencionado por Fedozzi à necessidade de existência prévia de um tecido associativo crítico, condição fundamental que exerce a necessária pressão “‘de fora para dentro do Estado’” (Fedozzi, 2009: 45).

A partir dessas características, Porto Alegre passou a ser considerado referência de prática democrática participativa, no Brasil e no mundo. O orçamento participativo de Porto Alegre ganhou mesmo notoriedade mundial como modelo de prática democrática participativa após ter sido selecionado pela Organização das Nações Unidas – ONU, na Conferência Habitat II realizada em Istambul – Turquia, em 1995, como uma das 40 experiências de gestão local de maior sucesso. Essa condição foi reforçada no ano de 2001, ocasião em que aconteceu em Porto Alegre o primeiro evento do Fórum Social Mundial7. Esse fórum, com a presença de pessoas e

de organizações sociais de várias partes do mundo e de todo o Brasil, propôs discutir e apresentar propostas para problemas sociais de impacto transnacional. Esse acontecimento foi uma oportunidade para que o governo de Porto Alegre divulgasse e mostrasse in loco a inovação democrática que estava desenvolvendo, o orçamento participativo. A partir daí, essa prática participativa foi disseminada por governos locais em várias partes do mundo. E o orçamento participativo de Porto Alegre, segundo informação do Executivo local, já teria servido de modelo para a implantação dessa prática administrativa participativa em mais de 1000 cidades pelo mundo (Mensagem PPA 2014/2017).

7 O Fórum Social Mundial tem na sua origem a pretensão de servir como um contraponto às discussões do Fórum Econômico Mundial que ocorre anualmente em Davos, na Suíça.

35