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Origem e aplicação da ideia de democracia participativa com poder de decisão

CAPÍTULO I – NOÇÕES TEÓRICAS SOBRE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NA

I.2 Democracia representativa – universalização da participação política

I.2.4 Origem e aplicação da ideia de democracia participativa com poder de decisão

Macpherson (1978), Pateman (1992) e Held (1987) observaram que essa teoria de democracia participativa [de participação (igual) na tomada de decisões] surgiu a partir da década de 60, como resposta às reivindicações populares pela ampliação da participação do cidadão comum em decisões políticas e, ainda, por maior igualdade econômica e social entre as classes sociais. Tais reivindicações teriam sido iniciadas em universidades, principalmente nos Estados Unidos da América e na França e, impulsionadas por estudantes e professores, foram assimiladas pelos trabalhadores e pela imprensa. Com isso, muitos e diferentes grupos sociais passaram a demonstrar insatisfação com o afastamento do povo da política e, consequentemente, pleitear maior participação dos cidadãos em decisões políticas, principalmente naquelas que afetassem suas vidas de forma mais direta.

Pateman (1992) atribui ao pensamento de Rousseau a base da teoria da democracia participativa com poder de decisão, uma vez que nas ideias de democracia de Rousseau predominava a participação direta do povo nas decisões de interesse público (Pateman, 1992:33). Sobre a participação direta do cidadão no governo, Rousseau, na obra “Do Contrato Social Discurso Sobre a Economia Política”, sustentou ser importante, para o fortalecimento do estado soberano, a participação direta do povo no estabelecimento de limites (leis) que definissem a atuação do Estado e dos próprios cidadãos no espaço público. Com isso, a democracia seria uma forma de governo que atribuía ao povo, em conjunto ou à sua maioria, poder de participar diretamente das decisões do governo. Mas Rousseau reconhecia ser possível a existência de governos verdadeiramente democráticos apenas em pequenas comunidades.

Para Pateman (1992), na linha de Stuart Mill, a participação política seria educativa quando tivesse por finalidade mudar os padrões psicológicos que impulsionam as pessoas à apatia política para, com isso, levá-las ao desenvolvimento de habilidades e práticas democráticas participativas. Argumenta Pateman que os teóricos desse modelo se ocuparam em apresentar “uma série de prescrições específicas e planos de ação necessários para se atingir a

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democracia política”, tendo por base dois requisitos: ‘educação pública’ e participação em ‘atividades políticas’, agindo em constante interação (Pateman, 1992:62).

A mesma autora conclui pela viabilidade da ampliação da participação direta dos cidadãos em decisões de interesse público. Segundo ela, diferentemente do sustentado pela teoria democrática liberal representativa, “nem as reivindicações por mais participação nem a própria teoria da democracia participativa baseia-se, como se diz com tanta frequência, em ilusões perigosas ou sobre fundamentos teóricos ultrapassados e fantasiosos” (Pateman 1992:147).

Fung e Writght (2001) entendem que práticas democráticas participativas implantadas no âmbito institucional, poderiam servir para desenvolver e fortalecer nas pessoas [cidadãos não eleitos] um sentimento de que têm “poder” de decisão sobre questões de interesse público. Para tanto, Fung e Wright defenderam que práticas participativas que dão ao cidadão poder de decisão deveriam ter por objetivo: garantir a efetividade na resolução dos problemas; promover a equidade; promover a ampla participação [com ênfase na participação contínua e significativa dos cidadãos comuns]. Deram como exemplo de práticas desenvolvidas com tais objetivos: 1. Conselhos em Chicago – escolar e de polícia; 2 – Planejamento de Conservação de Habitats - EUA; 3 – O orçamento participativo de Porto Alegre - Brasil ; 4 – Reforma no governo de Bengala Ocidental e de Kerala - Índia. Essas experiências possuiriam semelhanças de formato institucionais que indicariam um modelo de democracia participativa com poder de decisão. Fung e Writght observam ainda que, para existir democracia participativa inserida em sistema político representativo, os governos deveriam criar condições compatíveis com seus respetivos ordenamentos jurídicos, para que o povo pudesse participar de decisões políticas de forma direta, com poder para decidir sobre questões de interesse comum (Fung e Writght, 2001: 5- 41). Percebe-se que o poder de decisão referido por Fung e Writght remete à imprescindibilidade de que ações decididas pelos cidadãos, em processos democráticos participativos institucionalizados, sejam compatíveis com o sistema político e administrativo do governo. Essa compatibilidade seria necessária para que fossem viabilizados os meios à execução de tais ações. Nesse sentido, o orçamento participativo - OP, por exemplo, política pública institucionalizada, só iria ao encontro da teoria da democracia participativa nos casos em que as ações priorizadas pelos cidadãos, muitas vezes depois de inúmeras reuniões, fossem incluídas no orçamento público de forma expressa, com indicação do OP enquanto origem da decisão, descrição de obras ou serviços decididos pelo OP e valor orçado pelo poder público para atender tais demandas. Essa inclusão demonstraria o poder de fato dos participantes do OP

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de decidirem sobre o gasto de dinheiro público e, com isso, evidenciaria a participação plena [direta] do povo em governos democráticos representativos.

Macpherson (1978) busca demonstrar que seria possível inovar a democracia representativa para alcançar uma democracia mais participativa. Para tanto, propõe dois modelos abstratos que possibilitariam operacionalizar a participação direta de pessoas comuns em decisões políticas: o Modelo 4A e o Modelo 4B.

No Modelo 4A ou piramidal, a proposta é de “democracia direta na base e democracia por delegação (indireta) em cada nível depois dessa base” do processo decisório, proposto na forma de pirâmide. A democracia direta seria exercida por pequenos grupos de pessoas com interesses locais e comuns. A democracia indireta seria praticada nos níveis acima da base: delegados decidiriam as questões públicas de acordo com a competência do respetivo nível da pirâmide no qual estivessem posicionados e escolheriam outros delegados para decidirem no próximo nível. Assim seria até o vértice da pirâmide. Na base, as decisões se dariam sobre questões de interesse local e no vértice as decisões seriam sobre questões de interesse nacional (Macpherson, 1978:110/113).

O fundamento democrático do Modelo 4A estaria, segundo Macpherson, na possibilidade de exclusão daquelas pessoas que decidissem em desacordo com interesses comuns da coletividade. Essa possibilidade de exclusão garantiria a responsabilidade dos eleitos em harmonizar suas decisões com os interesses do povo. Mas existiriam três circunstâncias capazes de comprometer o fundamento democrático do modelo e, por isso, sua implementação. A primeira delas seria a impossibilidade de concretização da democracia participativa piramidal em contexto pós-revolucionário. Momento como esse requereria um governo central para tornar as decisões mais céleres, mesmo que em prejuízo de decisões mais democráticas. A segunda circunstância seria a inviabilização do modelo em face da divisão e da oposição de classes na sociedade. Menos desigualdade social e econômica promoveria maior igualdade na distribuição do poder político e, com isso, estimularia a participação democrática presumida no modelo piramidal. Essa distribuição do poder político, nos vários níveis da pirâmide, seria fundamento para que uma sociedade pudesse ser considerada plenamente democrática. A terceira e última circunstância que poderia afetar de forma negativa a concretização do Modelo 4A seria a apatia do povo em relação às questões políticas.

Sobre a aplicabilidade prática do Modelo 4A, Macpherson observa que por não ter sido formulado a partir de uma base empírica, a proposta de democracia participativa piramidal seria “uma primeira aproximação no sentido de um modelo plausível” para possibilitar a participação

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das pessoas nas decisões políticas. (Macpherson, 1978:113). O autor elabora, por último, o Modelo 4B, que considera uma proposta mais adequada à realidade democrática do ocidente.

A democracia participativa proposta no Modelo 4B resultaria da conjugação do Modelo 4A [estrutura piramidal, com democracia direta na base e indireta nos níveis seguintes à base] com o sistema partidário próprio da democracia representativa. Nesse modelo, os partidos políticos atuariam para garantir a introdução e a manutenção de mais participação direta no sistema político. Macpherson pontua que uma opção mais fácil para operacionalizar o Modelo 4B “seria manter a atual estrutura de governo e confiar nos próprios partidos para operar pela participação piramidal. [...]” (Macpherson, 1978:115).

Para Macpherson, o Modelo 4B iria ao encontro dos valores éticos do modelo de democracia liberal desenvolvimentista, proposto por John Stuart Mill, por pretender a prevalência de direitos iguais ao autodesenvolvimento. Assim, a democracia participativa proposta no Modelo 4B serviria para qualificar a participação das pessoas na política e, com isso, inovar a democracia representativa. Mas o autor observa que um sistema com mais participação, por si, não afastaria todas as iniquidades da sociedade. Todavia, estava convencido de que a baixa participação e a iniquidade social encontravam-se interligados, tanto que para existir uma sociedade mais equânime e mais humana seria preciso um sistema político que viabilizasse mais participação política (Macpherson, 1978).

Teóricos da democracia participativa no modelo apresentado acima, aqui com destaque para Macpherson (1978) e Pateman (1992), disseminaram a ideia de viabilidade da participação direta do povo em decisões políticas como uma forma de inovar a democracia representativa. Defenderam que seria possível que as democracias ocidentais conseguissem compatibilizar, em um mesmo governo, a democracia representativa e práticas de democracia participativa [aqui no mesmo sentido de democracia direta], de modo que coexistissem e se complementassem. A coexistência partiria do pressuposto de que as duas formas de democracia seriam praticadas em um mesmo sistema político democrático. Por sua vez, a complementaridade requereria articulação profunda entre democracia representativa e democracia participativa, ou seja, implicaria em que a sociedade política decidisse ampliar a participação a nível local por meio da “transferência ou devolução para formas participativas de deliberação de prerrogativas decisórias a princípio detidas pelos governantes.” (Santos, 2003:64/65).

Percebe-se, a partir dos posicionamentos acima, que o foco do pensamento democrático participativo, no modelo aqui enfatizado, é no sentido de que os políticos eleitos compartilhem o poder de decisão, que legitimamente alcançaram pelo voto, com o cidadão não

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eleito. Com isso, haveria uma ampliação daqueles com poder para decidir sobre os negócios públicos. Essa ampliação atenderia às reivindicações populares por uma democracia mais inclusiva sem colocar em risco a democracia representativa, uma vez que a implantação de instrumentos de democracia participativa direta, segundo seus idealizadores, não pretende suplantar a democracia representativa, mas complementá-la. Essa complementação se daria seja “alargando os espaços da participação, seja propondo processos decisórios piramidais de articulação entre participação e representação, o certo é que, de alguma maneira, a introdução da participação, para essa vertente, influencia relações de poder e hierarquias, propiciando a formação de cidadãos mais críticos e interessados na coisa pública” (Lüchmann, 2012).